Então digo à Dona Maria que a lousa é azul e teima em que é anil. Que diferença faz, pelo amor de Deus? Mas teima, insiste, discorre sobre o assunto incessantemente, azucrinando-me a todo e qualquer momento.
Partirei a lousa em sua cabeça, abrirei um rasgo imenso, por ele enfiarei minhas mãos e lá dentro procurarei o switch que diz que azul é anil e o inverterei. Oras, se não vou! Aproveitarei para consertar algumas outras coisinhas erradas. Esta mania de ser dona da verdade. Sim… Corrigirei todos os defeitos mentais de Dona Maria.
Corra… Os lobos estão quase te alcançando. Perto, muito perto. Nos calcanhares. Belos calcanhares têm você. Onde os comprou? Agora os perderá. Os lobos os comerão, estraçalharão. E será uma pena. São muito belos.
De onde vieram estes lobos? Tudo estava calmo, muito calmo. Dormíamos. Um sono cheio de sonhos. Sonhávamos juntos, em uníssono. O que não é lá muito comum, diria mesmo que é bastante raro. E o conseguíramos. Seria o cansaço, talvez. Quando estamos cansados baixamos as guardas, as barreiras todas e o impossível acontece.
Corremos tanto, uma vida, duas vidas, tantas vidas. Minhas vidas todas, que vivi por outros. Por você também. Não viveu você. Porque não viveu, meu amor?
Onde estão suas estórias? Quem as viveu por você? Estarão talvez arquivadas em um canto qualquer de seu tão bem organizado armário? É possível. É vero. Guardadas em caixinhas, pequenas caixinhas, novas, perfumadas. Arrumadas segundo a cor.
E eu? Porque vivi tanto? Não poderia talvez não ter vivido como você? Manter-me pura e inocente à tua espera? Não. Vivi. Mergulhei na poluída e promíscua vida. Todos estes bandidos, putas, vagabundos, poetas, místicos, bêbados, ignorantes, egoístas, malvados, loucos, irracionais eu os conheci muito bem. Não me conheceram. Não me viram. Como não me vê você, como não me vê ninguém. Sou invisível. Oh… Horror!
Os lobos! Eles me vêem. E me perseguem. Corro, corro, corro! E também você!
Venha, amor, aqui. Abrirei meu peito, como um capote de chuva. Entre. Abrigo-te e me preencho.
É agradável estar em mim? Sente-me? Diga. Diga que me sente. Diga que me percebe. Que dentro de mim existo, tenho cor, jeito, consistência e que sou real e visível.
Estique-se. Ultrapasse meu peito. Coloque seus pés dentro dos meus. Suas mãos nas minhas, sua mente na minha. Seja minha camada interior. Eu te levarei pelos caminhos todos, assim, aconchegado, agasalhado.
Conduzirei os lobos bobos até Dona Maria. Que a engulam, comam, destruam. Que me importa a Dona Maria e seus intermináveis achaques? Que me importa os milhões de Marias? E todos os Joãos? Nada! Nenhuma Dona ou Maria me interessa. Nenhum Dom, nenhum João, exceto um, o primeiro, o único. Que morram os outros todos, desapareçam, extinguam-se. Nenhuma falta farão.
Quero a terra despovoada, limpa de toda esta escória, minha e tua, para que a fecundemos com nosso amor.
Até que cheguem os deuses. Os gigantes deuses. Os tolos, burros, inconseqüentes deuses. E julguem-nos por nosso crime: devassar o jardim do éden.
Abrirão minha barriga, eu sei, sinto. E devolverão à Terra os milhões de Marias e Joões que entreguei aos lobos e que depois devorei. E você em mim, também.
Que importa ainda isto? Deixe que volte toda esta gente.
Nossa estória, esta não a destruirão jamais. Fizemos marcas indeléveis, eternas nesta terra ostra. Nosso sangue, nosso riso, nossas lágrimas a possuiram, fecundaram. Veja os sulcos. Aqui. Ali. Mais à frente. E atrás e aos lados. E lá. E lá. E lá. Infinitos. Incontáveis.
Que farão com isto? Nada! Nada podem fazer. Destruam-nos, mas nossas marcas da terra não retirarão. Aqui vivemos, aqui amamos. Aqui estamos e aqui ficaremos. Derrotamos os deuses gigantes.
Viveremos eternizados nesta terra fértil que nos procriará.
Que continue a Dona Maria a dizer que a lousa é anil. É azul, eu sei.
Escrito em 2002
Texto registrado no Literar.
…
Encontrei revisitando textos antigos. Este é da época em que escrevia com o inconsciente. Apenas um drops. Para suavisar a pausa. Ou não. Sei lá. 😀
Bom final de semana para todos.