Adriel não via a passagem do tempo, mergulhado no desespero por não saber como encontrar Maise.
Aos poucos, percebeu que conseguia dilatar sua forma, atingindo uma área maior na busca de sinais de sua essência. No início fez isto timidamente com receio de perder a consciência, mas logo descobriu que conseguia concentrar-se todo em uma centelha base, podendo enviar as demais tão longe quando quisesse sem perder o controle.
Assim passou dois meses vasculhando todo o planeta, dispersando-se por períodos cada vez maiores e indo mais e mais distante até que não houvesse um único recanto não visitado por uma minúscula parte sua.
Ao fim estava de volta ao ponto de partida, mais uma vez derrotado. Maise não existia na Terra, estava certo disto. Teria morrido ou estaria em Etera, em uma dimensão da qual não tinha acesso. Acreditaria nisto por enquanto, decidiu incapaz de lidar com a hipótese restante.
Sem mais onde procurar, sem ter como ir a Celes, todas as possibilidades esgotadas, sentindo-se desesperar já, lembrou-se de Deus e rezou, pedindo ajuda.
Nada aconteceu exceto sentir-se um pouco mais tranqüilo. Deixou-se pairar sobre a cama de ambos, com os pensamentos soltos, recordando momentos de sua vida com Maise: o primeiro encontro quando fugiu assustada com a visão de suas asas, o encontro para a festa de Antônio, a queda da árvore, no golpe do gatinho e do olhar compreensivo e divertido de Eliah quando chegou com ela ao colo.
– Eliah!!! – Como não pensara em Eliah? Ele era um anjo, mas transitava igualmente entre a Terra, Celes e Etera. Onde estaria que não o encontrara ainda?
Em frêmitos de excitação disparou-se por todas as direções, buscando agora ao amigo, com a esperança estrondeando em suas células. Encontrou seu rastro energético em Paris e rumou para lá, enquanto indagava sobre o motivo deste paradeiro tão distante de Portal do Sol.
Ainda era dia quando entrou no apartamento de um prédio baixo em uma área residencial nos arredores de Paris. O imóvel estava vazio, mas fotos mostravam Eliah sorridente e sem asas, sempre ao lado de Michelle, sua ex-assistente no complexo.
– Ah, deixou as asas! É humano agora. – Compreendeu. Como humano não poderia igualmente ir a Celes ou a Etera, mas talvez soubesse de Maise, do final da batalha ou como ajudá-lo e por isto aguardou até seu retorno.
Era já início da noite quando a chave virou na porta e Eliah e Michelle entraram, carregando pacotes de supermercado, em uma cena íntima que causou uma pontada de dor e inveja, lembrando de Maise e das vezes que fizeram o mesmo.
Só depois, quando Eliah não o viu é que lembrou seu estado completamente imaterial, sem corpo e sem voz. Como falaria com ele? Rodeou, atravessou, envolveu e até mesmo entrou na mente do amigo, sem sucesso aparente. Eliah continuava agindo normalmente, apenas demonstrando-se incomodado, sem identificar a origem ou estabelecer comunicação.
Continuou tentando por toda a noite e até mesmo quando ele estava na cama adormecido. Viu quando o espírito saiu do corpo e projetou toda luz que conseguiu, tentando iluminar-se o suficiente para ser visto.
– Eliah, ajude-me. – Dizia em seus pensamentos.
– Adriel, é você? – Perguntou ele.
– Sim, sou eu, Adriel. – Respondeu agitado e com receio de perder o momento, emendou em seguida. – Eliah, o que houve? Onde está Maise?
– Hei, calma, amigo. Não se preocupe. Ela está bem e em Etera, ao menos estava quando nos despedimos em frente ao Portal há quase 2 anos atrás. E você? Pensamos que sua consciência estivesse perdida para sempre, espalhada pelo cosmo. Procuramos por sua essência por todo universo, sem encontrar
– Eu estava morto. Espalhado, como imaginaram. Não sei como ou porque, mas voltei à consciência, consegui reagrupar-me e voltar para casa, mas não tem ninguém lá e o Portal para Etera foi fechado. Como terminou a batalha?
– Quando você foi atingido, Maise projetou uma força que jogou a todos longe. Os elfos negros e os demônios fugiram. Nós voltamos o mais rápido possível, mas era tarde para você. Coitada, ela não se conformava e durante uma semana ainda acreditou que estava vivo em Celes e quando entendeu… – Deixou a frase inacabada, mas Adriel podia imaginar.
– Preciso voltar para ela, Eliah! Você tem que me ajudar! – A voz mental expressava a angústia pela dor de Maise.
– Não sei o que posso fazer, amigo, sinto muito. Sou humano agora. Não tenho asas, não tenho poderes, nenhum contato com Celes e tampouco saberia como localizar Etera.
– Vamos pensar juntos. Deve haver algo que estamos esquecendo.
– Sem contar que você nem humano é. Sem corpo, de que adiantaria encontrar Maise? Acho que nem mesmo como estamos fazendo agora vocês conseguiriam comunicar-se. Eu estou conseguindo pelo passado de anjo que deixou vestígios em minha percepção, mas penso que ela sequer sai do corpo, quanto mais identificar sua luz e ouvir sua voz mental.
– Tinha esperanças de que soubesse como falar com Celes. Eles saberiam o que fazer para conseguir outro corpo. – Adriel soava mais abatido agora.
– Desculpe por isto, meu amigo. Se soubesse que retornaria nesta situação, creio que teria aguardado antes de deixar as asas.
– Não tem o quê desculpar, ninguém imaginaria isto. E como resolveu deixar as asas? Parecia tão bem encaixado lá. E justo com Michelle? Uma ex-anjo tão tímida?
– Quando era anjo, conhecíamo-nos. Tínhamos perdido o contato entre as várias missões que executamos, mas desde que reencontramo-nos no complexo reavivamos o contato e acabamos por descobrir-nos apaixonados. Deixar as asas para viver ao seu lado foi uma conseqüência natural.
– Compreendo. Eu teria feito o mesmo por Maise, se pudesse. E por que a França?
– Michelle viveu aqui em sua última encarnação. É um local pelo qual tem amor e desejava retornar. Montamos uma pequena empresa de investigação e vivemos bem. Falta apenas um filho para estarmos completamente felizes.
– Acha que é possível? Que possam ter filhos? – Adriel imaginou uma criancinha de cabelos cacheados e olhos claros como os deles. Seria de uma beleza quase irreal.
– Fizemos todos os exames e fisicamente não existem obstáculos. Entretanto ainda não engravidou. – Eliah estava um tanto quanto sério e distraído enquanto dizia isto.
– O que houve? Algum problema?
– Pensei em algo. Adriel, a única forma de conseguir um corpo é renascendo de um ventre humano. Você pode ser nosso filho.
– Renascer? Criança? E Maise?
– Temos que resolver um problema por vez. Não há como entrar em contato com Maise e mesmo que leve mais tempo, você ganhará um corpo novamente. Enquanto você cresce posso continuar buscando uma solução.
– Não sei, Eliah. Perder minha memória desta vida, como os humanos? Esquecer Maise? Impossível.
– Não creio que esqueça Maise. Os detalhes sim, mas o sentimento, o amor persistirá e continuará a chamar por ela.
– Não posso. Não quero esquecer. E, também, deixarei de ser eu. Sem a consciência de quem sou e com as novas influências que receberei, serei outro, diferente. É difícil até mesmo considerar a possibilidade.
– Não consigo pensar em nada mais, Adriel. Vamos refletir por uns dias e depois voltamos a conversar. Quem sabe não temos outra idéia para restabelecer seu corpo ou para contatar Etera e Maise?
– Está certo, Eliah. Voltarei para Portal do Sol e daqui há uma semana encontraremo-nos aqui novamente.
– Combinado. Boa sorte.
– Obrigado pelo apoio.
Durante aquela semana Adriel apenas pensou, buscando por toda e qualquer possibilidade diferente, sem encontrar nada, mas também sem decidir-se pelo renascimento.
Além de tudo que já questionara com Eliah, havia a questão do tempo. A diferença de idade entre ambos seria muito grande. Não que ele deixaria de amá-la por estar mais velha do que ele, mas seu tempo na Terra seria mais curto e, depois que se fosse, como ele viveria?
Outra questão preocupante era a diferença entre espírito e alma. Entendendo pelo primeiro o ser imortal que era e pelo segundo o espírito encarnado e sendo ambos o mesmo ser poderia supor-se que fossem iguais e, entretanto, não eram, constituindo personalidades diferenciadas, onde um poderia ser mais tranqüilo, calmo, reflexivo e outro agitado, tenso, nervoso, por exemplo, ou tendo a alma atitudes que o espírito jamais teria.
Era como uma esponja de vários metros comprimida em um pequeno recipiente. Continuaria a ser a esponja, mas teria outro formato e novas características, além de perder com certeza sua capacidade de absorção.
O espírito, condensado dentro de um corpo pequeno e de alta densidade, perde parte de suas capacidades, tornando-se mais lento e apesar de iguais em essência as idéias surgem na alma menos refinadas, algo grosseiras e limitadas. A alma pode ser considerada uma amostra, um vislumbre da totalidade que é o espírito.
Adriel sabia de tudo isto. Já acompanhara o processo de reencarnação de vários amigos e vira como depois não conseguiam expressar todas as idéias que o espírito continha e às vezes nem mesmo recordavam de seus objetivos. Várias missões foram abortadas porque a alma distraia-se com as influências e necessidades do novo ambiente, esquecendo-se dos propósitos para os quais havia retornado.
Se bem que alguns conseguiam uma quase que perfeita interação entre um estado e outro, lembrou quase como alento.
Como seria em seu caso? O quanto manteria de si no novo ser?
Envolvido nestes pensamentos, quando deu por si, já era o dia do encontro com Eliah e teria que tomar sua decisão. Foi a Paris, ainda incerto do melhor a fazer.
…
Texto registrado no Literar.
Imagem daqui.