Minha cabeça parou de latejar aos poucos e quando terminaram a limpeza já não doía quase nada. Decidi ir com eles à vila comprar os mantimentos que faltavam e aproveitar para conversar com Antônio sobre meu pai, o verdadeiro motivo de minha presença aqui.
Foi confortante ver o sorriso alegre em seu rosto, mas não pudemos conversar direito porque o bar estava lotado com vários turistas que chegaram para a feira de artesanato dos sábados. Convidou-me para jantar em sua casa amanhã à noite e aceitei.
Ele milagrosamente me conseguira um jeep alugado, velho mas perfeito para aquelas estradas terroristas. Toda alegre fui passear um pouco antes de voltar para a cabana. Amava estas feirinhas e foi delicioso perceber que a maioria das que se espalhavam pela praça era de artesanato genuíno e não daquelas porcarias fabricadas aos montes que costumava ver na cidade.
Comprei uma toalha de tear, colorida e alegre para a mesa da cozinha, algumas plantas e flores, vasos, guardanapos, um sino dos ventos inacreditável de tão original e bonito, um capacho para a entrada onde estava escrito “Bem Vindo”. “Só falta um pingüim para a geladeira.” – Ri antes de ter minha atenção capturada pela barraca seguinte, de bijuterias locais.
Tinham o mesmo símbolo do medalhão pendurado no colar que minha mãe me dera quando fiz 18 anos, um sol de ouro com uma pequena fada em alto relevo ao centro. Uma pequena mola permitia abrir e, dentro, estavam fotos de nós três sorridentes e felizes no aniversário de meu pai. Meu coração apertou com a lembrança enquanto o tocava em meu peito.
Os da barraca não eram nem de ouro e nem tão bem feitos, como uma cópia mal acabada. Perguntei à senhora o que significava o desenho. Disse-me que era o símbolo de Portal do Sol, a cidade das Fadas. “Deve estar se referindo às mulheres locais, tão encantadoras e gentis.” – pensei. Ia lhe mostrar o meu colar quando vi o anjo. Estava conversando com Antônio. Observei confusa até que se despediram com amigáveis tapinhas nas costas.
“Ahmmmm?!?!? Conversando??? Tapinha nas costas??? De um anjo??? Da morte???” – Balancei a cabeça, abri e fechei os olhos para espantar a nova alucinação, mas continuei a o ver, agora de costas, com aquelas asas imensas e alvas caminhando entre as pessoas sem despertar qualquer atenção. Belisquei-me, doeu e continuei a ver as asas, diminuindo enquanto se afastava.
Voltei ao bar, com a desculpa da sede. Antes mesmo que pudesse pensar em um jeito de perguntar sem mostrar muito interesse, ele disse:
– Coincidência! Acabei de falar de você. – Como se não estivesse me corroendo de curiosidade, tomei um gole vagaroso de coca e só depois perguntei, desinteressadamente:
– É mesmo? Para quem? – Concentrei-me nas pessoas que passavam pela rua, como se estivesse absolutamente alheia à resposta.
– Adriel, o diretor da Clínica de Reabilitação. Não viu um moço bonito falando comigo quando estava vindo?
– Ah tá! Sei. – E agora? Perguntava sobre ele ou sobre o que falaram a meu respeito? Qual chamaria menos atenção?
– Parece que viu você na praia hoje de manhã e quis saber quem era. Medida de segurança, sabe? – Perguntou.
– Sei. – Não. Não sabia, mas dei corda.
– Um rapaz fantástico, Maise. Você vai ver. É seu vizinho. Tem uma casa na outra ponta da praia. Todos o admiram, embora não seja muito dado. Não é chegado a conversinhas, sabe? Mas precisa ver como cuida de tudo. Nunca tivemos um único problema com a clínica ou com os coitados que se internam lá. E parece que é tudo de graça. O tratamento, quero dizer. Um verdadeiro anjo. – Concluiu com admiração.
– Por falar em anjo, não tem algo diferente nele? – Perguntei, aproveitando a deixa. Quem sabe todos viam as asas e já tinham se acostumado.
– Porque é bonito demais, você quer dizer? As mulheres daqui estão perdidamente apaixonadas, mas ele nunca deu entrada para nenhuma delas. Vivem suspirando como antas. – Riu alto ao dizer isto.
– É mesmo? – Era demais para mim. Minha cabeça começou a rodar com tanta coisa para pensar ao mesmo tempo. Resolvi encerrar a conversa. – Vou indo, Antonio. Obrigada por tudo. Volto amanhã à noite então. Tchau.
– Qualquer coisa telefona, tá? Tchau. – E já voltava para seus clientes.
Queria voltar para a cabana. Não conseguia e nem queria mais pensar em nada que não fosse estar lá, naquele aconchego silencioso.
Antes de sair da vila, passei no posto para abastecer. Enquanto aguardava uma Cherokee ser abastecida à minha frente, encostei a cabeça no encosto do banco e fechei os olhos por alguns momentos. Quando os abri o anjo estava lá, falando com o atendente e pagando.
Neste exato momento pareceu me ver, inclinou a cabeça no mesmo cumprimento que fez na praia, seguido de um sorriso, entrou no carro e se foi.
“Oh, céus!” – Era diabólico de tão belo. Não poderia ser humano com um sorriso daqueles! Senti raiva dele. Parecia-me que estava zombando de minha confusão. – “Oras, que pegue suas asas e vá pular nuvens no céu!”
Estava mesmo mentalmente exausta quando cheguei à minha taperinha. Nem tive ânimo para distribuir a nova decoração. Embora estivéssemos ainda no final da tarde, coloquei um pijama e deitei-me, fechando os olhos e agradecendo à sonolência branca e tranqüila que invadiu minha mente rapidamente.
Texto registrado no Literar
Imagem: Feira de Artesanato em Vila Velha.