Ao chegar em casa encontrei Liah, o anjo responsável pela terra, fauna, flora e Elementais deste principado (*). Apesar de não sermos tão íntimos ele era o mais próximo de um amigo que tinha por aqui.
– Hei, Liah. Tudo bem? – Estava contente em o ver antes de partir. Apertamos as mãos amigavelmente.
– Hei, Adriel. Soube que está indo para Celes. Gostaria que levasse algumas espécies novas que andei coletando. Pode ser?
– Claro. O que quiser. – Ele estava sempre em busca de mutações genéticas em plantas que enviava para estudo de nosso grupo de cientistas.
– Obrigado. E você? Qual o motivo da viagem? Aconteceu algo novo? – Provavelmente estava se referindo ao meu trabalho.
– Não. Estamos naquela fase de calmaria que antecede as grandes tempestades e quero aproveitar para desintoxicar um pouco enquanto ainda posso. – Seria bom falar com alguém sobre Maise, mas ele entenderia?
– Está pesando?
– Um pouco. Tenho andado meio confuso com alguns sentimentos e penso que possa ser por conta da influência das energias da Terra que absorvo. – Deveria continuar?
– Posso ajudar em algo? – Ele tinha o semblante inalterado, mas poderia jurar que estava intrigado, pois eu jamais reclamara de estar confuso e menos ainda de sentimentos.
Pensei um breve instante antes de decidir continuar. Pela proximidade com a Terra ele estava em condições de entender melhor do que qualquer um em Celes ou na Terra. Encaminhamo-nos à sala e após nos sentarmos, contei sobre Maise e tudo o que vinha sentindo desde que a conhecera.
– Adriel, você está apaixonado! – Exclamou e sinceramente não entendi o motivo de seu sorriso de contentamento.
– Liah, não sou um humano, sujeito a estes sentimentos limitados. Ultrapassamos esta fase do amor individual e amamos igualmente todos os seres viventes. Você sabe disto. Então, como posso estar apaixonado?
– Você nunca teve uma alma com a qual se identificasse? Em toda sua vida, não houve ou há alguém?
– Não. Ao menos não me recordo. Quase todos em minha família têm um par, mas são relações antigas, que se estreitaram e fortaleceram através de diversas vidas. Não conheço nenhum anjo que tenha “se apaixonado” de repente.
– Exceto…
– É verdade. Alguns anjos da guarda se apaixonam pelos seus protegidos, mas é diferente. Primeiramente existe uma razão para estarem nesta posição. Normalmente são laços antigos já. E, além disto, o sentimento nasce após um período de observação e convivência. É bem diferente de meu caso.
– Hummm… Será? Quem garante que os laços entre você e esta moça não sejam antigos também. E que apenas estejam agora se reconhecendo, mesmo sem a lembrança total? – Liah estava pensativo.
– Não. Lógico que não. Minha memória não tem travas. Se não me recordo de alguém, não é porque a lembrança esteja bloqueada e sim porque não houve ninguém importante. Sei disto!
– Bom. Supondo que seja verdade, resta a possibilidade de serem espíritos afins. Não têm uma estória comum porque ainda não tinham se encontrado, mas se a afinidade existe, basta que estejam próximos para se reconhecerem. – Concluiu.
– Enfim, isto não importa realmente. A questão é que não tem como. Não é possível! Sou um anjo e ela uma humana.
– E você não pode fazer como os outros, desistir da imortalidade e descer para viver com ela como humano? Você gosta tanto da Terra e dos humanos, não creio que seria tão grande sacrifício para você. – Liah estava certo nesta questão, mas não nas outras.
– Bom, supondo que ela também estivesse apaixonada por mim e não tenho a menor informação sobre isto e que depois de algum tempo quiséssemos isto, você sabe do meu trabalho como Caçador de Demônios. Sou talvez o único anjo que nunca poderá voltar a ser humano. Não duraria nada. Os demônios me encontrariam quase que imediatamente e não poderia me defender sem meus poderes celestes. Seria massacrado em instantes ou aprisionado, torturado e nem sei mais o quê. O pior não é isto e sim que mesmo continuando anjo, se me envolver com Maise e eles ficarem sabendo vão atacá-la para me atingir. Entende porque é impossível?
Continuamos conversando ainda por um tempo. Liah tentava argumentar, procurar soluções, mas o que? Não via solução. Aquele sentimento era fruto de um sonho, uma fantasia que jamais poderia se tornar realidade. Era apenas a voz de minha solidão e do desejo de ter alguém como todos de minha família. Alguém com quem pudesse conversar ou até ficar quieto, mas que estivesse ali, comigo.
Estávamos já nos despedindo quando ouvi claramente a voz de Maise em minha mente.
– Adriel!!! Socorro!!!
– Maise! – Mal disse isto e já estava voando pelas portas da sala, em direção à varanda e à sua casa. Nem expliquei à Liah e muito menos vi o sorriso de compreensão que surgiu em seu rosto.
Cheguei em instantes na sua casa, voando o mais rápido que pude. Onde ela estava? A casa estava aberta e vazia.
– Maise! Onde está? – Gritei em todas as direções, preocupado.
“Por favor, chame novamente.” – Eu teria chegado tarde demais?
– Adriel!!! Socorro!!! – Vinha do oeste. Segui para aquela direção, mas ainda não a via.
– Maise! Onde está? Fale mais! – Gritei novamente, esperando que ouvisse e respondesse.
– Aqui Adriel! Olhe para cima! Depressa! – Olhei para o topo da imensa árvore e gelei. Ela estava pendurada apenas por uma mão em um dos galhos mais altos.
Voei até ela no exato instante em que caiu e a peguei já no ar, despencando. Ela se agarrou em mim, chorando e tremendo.
– Adriel! Ah, Adriel! Você ouviu! Você veio! Obrigada!
E me agarrou ainda mais, seus dedos prensados tão firmemente em minha camisa que já deveria tê-la perfurado. Seu rosto estava todo ferido e sangrando. Suas mãos e pernas também estavam com machucados. O que teria ocorrido ali?
– Tudo bem. Acabou. Você está salva. Nada mais vai acontecer. Fique tranqüila. Acabou.
– Adriel, foi horrível! Tinha um gatinho e fui tirar ele de lá, mas não era um gatinho. Era uma bruxa! Ela me odeia! Vi no seu olhar. Ela queria que eu caísse e morresse. E teria morrido se não fosse por você!
Do que ela estava falando? Gatinho, bruxa? Não havia gatos aqui. Eles evitavam nossa região. E bruxas? Como assim? Será que ela estava em choque? Delirando?
Depois pensaria nisto. Estava chegando em casa já. Ela precisava tomar algo para se acalmar primeiro.
– Calma, querida. Depois me conta tudo, está bem? Pense que está comigo, a salvo e segura. Nada mais vai acontecer. Fique tranqüila. Passou. Acabou.
Entrei pela mesma porta e Liah ainda estava lá, sentado, aguardando. Passei por ele rapidamente a caminho do quarto de hóspedes e disse:
– Ela está ferida. Pode, por favor, chamar Tana? Depois nos falamos. – Tana era uma espécie de governanta de minha casa. E fada. Ao me lembrar disto, voltei e emendei: – Como humana, diga-lhe – Por hoje já bastava uma bruxa e me ver voando para Maise.
Entrei no quarto e a coloquei com cuidado na cama. Ao menos tentei. Não consegui desgrudar seus dedos de minha camisa. Ela ainda chorava e tremia muito. Sem outra opção, encostei-me na cama com ela ao colo.
– Tudo bem, pequena. Tudo bem. Relaxe. – Fiquei repetindo estas palavras, enquanto acariciava seus cabelos.
Com cuidado fui deitando-a na cama e consegui cobri-la. Aos poucos foi parando de tremer e o choro diminuindo, mas ainda não me soltava. Adormeceu com os dedos enroscados e firmes na mesma posição, prendendo-me.
Fiquei observando sua forma pequena e indefesa, cheio de ternura pelo rosto delicado, mesmo assim tão ferido.
“Quem a teria machucado? Teria já algum demônio descoberto o que eu mal conseguia admitir para mim mesmo? Teria sido por minha culpa que ela quase morrera?”
* = De acordo com a Cabala, os anjos estão organizados em 9 Hierarquias Angelicais: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Potências, Virtudes, Principados, Arcanjos e Anjos. Fonte: Terra Esotérico. Liah pertence à 3a. hieraquia, Principados, acima de Anjos e Arcanjos.
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Imagem: encontrada na net sem indicação de autoria