Naquela tarde falando ao povo encantado iniciei um lento retorno à vida, mas durante todo o primeiro ano em Etera ainda chorei todas as noites, sentindo a lâmina fria remexer-se em meu coração.
Durante o dia cumpria com minhas obrigações como Rainha de Etera esforçando-me para não pensar em Adriel, nas saudades que sentia ou na dor que me partia inteira. Agia como deveria para que os seres elementais não percebessem o quanto minha tristeza era intensa. Um simulacro de sorriso estava sempre em meus lábios, a modulação da voz era gentil e agradável e o semblante calmo.
À noite após o término de minhas obrigações, dispensava todos e ia sozinha para a cozinha, onde Tana deixava vários pratos à minha espera. Sentava-me à mesa e começava a comer. Às vezes conseguia comer toda a refeição e só chorar depois, mas quase sempre o choro pegava-me ao meio.
Tudo o que era belo ou bom trazia-me de volta a Adriel e conseqüentemente à sua ausência. Quando alimentava-me com a comida gostosa de Tana, sentia prazer e com ele vinha a dor. Como poderia sentir prazer se Adriel não estava comigo?
Então as lágrimas vinham e o garfo ficava congelado por alguns segundos, a meio caminho da boca, até cair de volta ao prato.
Não. Eu não estava me punindo. Só não era bom sentir prazer sem ele. Era como se tivesse traindo-o com um esquecimento rápido e inaceitável. Tinha um pavor louco de esquecê-lo, de que sumisse de minha lembrança, de que um dia buscasse e não localizasse mais sua linda face sorrindo em minhas memórias. Por mais que doesse lembrar, seria insuportável esquecer.
Passava e repassava momentos que tivemos e a dor de sua ausência, a necessidade de sentir sua presença pegava-me inteira. Empurrava o prato e debruçada sob a mesa era vencida pela tristeza e saudades.
Após algum tempo, Elros vinha, pegava-me no colo e levava-me para o quarto, depositando-me à cama. Eu tinha desistido de fazer este trajeto só. Não conseguia levantar-me da cadeira e em alguns dias fiquei ali por muitas horas até permitir que me levasse. Prometia-me que no dia seguinte não choraria, que comeria e depois iria sozinha para o quarto, onde leria ou pintaria e, derrotada, todos os dias tinha que refazer a promessa.
A pintura agora era apenas um projeto, uma intenção vazia, uma lembrança remota. Queria pintar Adriel, tinha já o esboço em minha mente, mas não consegui pegar nos pincéis uma única vez, porque a pintura também era prazerosa e remetia a ele.
Elros nunca dizia nada. Apenas levava-me até a cama e lá Tana aguardava e permanecia comigo até que o sono vencesse as lágrimas, embora ainda soluçasse durante a noite. De manhã ela passava um pó em meu rosto desaparecendo com todos os vestígios das lágrimas e o ciclo recomeçava.
Isto foi praticamente um ritual naquele primeiro ano, repetindo-se todas as noites, com pouca ou nenhuma modificação, mas ainda que não achasse ser possível, a vida retornava lentamente aos meus ossos e o passo inicial fora dado naquela tarde, quando sai à varanda do castelo e encarei o povo castigado que me olhava com ansiedade e não sei como as palavras foram saindo de minha boca:
– Povo Encantado, nós atravessamos um longo inverno e fomos duramente atingidos. Enquanto o frio tocava nossas almas, choramos nossos mortos e desaguamos nossas tristezas. Agora o hálito quente da primavera já se anuncia e logo será tempo de flores, calor e alegria. Não podemos continuar inertes, lastimando o passado. É tempo de recomeçar e renascer.
– Daqui a uma semana faremos uma grande festa para comemorar a chegada da nova estação. Neste dia também serei coroada Rainha de Etera.
– Necessito da ajuda de todos para que Etera esteja preparada e enfeitada para a festa. Vamos pintar as casas, limpar as ruas, podar as árvores, varrer as folhas e o lixo acumulado, arrumar os telhados e consertar o que estiver quebrado. A primavera não entrará em Etera se não espantarmos os últimos resquícios do inverno. Posso contar com vocês?
Eu mal acreditava que tinha proferido estas frases, menos ainda de que convenceria alguém quando eu própria enregelava de medo frente à tarefa que propunha, mas os pequeninos entoaram meu nome a uma só voz em um poderoso coro, levando-me às lágrimas.
Afastei-me do balcão ainda sob aplausos, o coro ressoando e prometi-me fazer tudo que pudesse para não decepcioná-los, mesmo que para isto tivesse que voltar a viver.
…
Texto registrado no Literar.
Imagem daqui.