Hoje é o dia de meu casamento. Acordei chamando por Adriel, em mais um dos sonhos que me atormentam desde sua morte. Será que Elros está certo e com o casamento eles terminarão? Então porque estava sentindo-me assim, como se estivesse o traindo?
Porque esta tristeza e melancolia no dia em que deveria estar tão feliz?
Passei o trinco na porta do quarto. Daqui a pouco Tana e Niis entrariam e os preparativos começariam, mas antes queria alguns momentos a sós. Afastei o voil da cortina da janela e olhei para Etera.
O entorno do palácio estava enfeitado desde ontem. Tinham limpado os sinais da festa de posse de Elros e Gnom e preparavam agora a festa de casamento. Vi a algazarra de encantados indo e vindo atarefados, fazendo florir árvores e plantas, revivendo o gramado verde, iluminando as cores e mesmo em ocupações mais simples, como a instalação do altar, de cadeiras, da passarela por onde caminharia durante a cerimônia, panos e enfeites sendo afixados e tudo ganhava forma rapidamente.
Voltei o olhar para o quarto e fixei-o no vestido de noiva, próximo ao espelho. Bastou o desejo para que ele estivesse no corpo, meu cabelo arrumado, o rosto maquiado, como seria na hora. Agora que dominava a magia não precisava mais perder tempo com detalhes e ocupações como estas.
Observei-me no espelho. O vestido fora tecido sem costuras, por centenas de bichos da seda sob o comando das fadas estilistas. Minúsculos diamantes incrustados faziam com que brilhasse quando me movia. Era talvez o mais belo vestido de noiva que já existira.
A imagem que via era de uma rainha, uma mulher segura, independente e forte, como de fato tornara-me nestes anos em Etera, sem Adriel. Aprendera a tomar decisões, a assumir responsabilidades, a cuidar de meu povo, a arcar com o resultado de meus atos. Tudo isto estava refletido em minha imagem, desde os ombros aprumados até a cabeça levantada e ereta.
Senti orgulho de mim, naquele momento, lembrando os vários momentos difíceis que vivera e do quanto aprendi com cada dificuldade, cada instante em que tive que recuar e depois retornar por outro caminho. Se Adriel estivesse vivo hoje, tudo seria tão diferente. Nossa estória não teria tido aquele final. Eu não era mais uma menina indefesa e frágil. Hoje estaria ao seu lado, lutando com ele em igualdade e ele não precisaria jogar-se na frente de uma flecha para me defender.
Adriel…
Invoquei minha imagem em nosso casamento em Etera e olhei-me no passado através do espelho. Lá estavam meus olhos brilhantes e ingênuos, cheios de fé, alegria e confiança, sem jamais imaginar o que nos aguardava logo após.
Chorei pela jovem que fora, pelos meus sonhos mortos, pelo amor que tive que sufocar para sobreviver e pelas saudades que me envolveram como uma gigantesca e invisível mão. Senti a faca novamente remexendo-se em meu coração, como deixara de sentir a muito tempo e a sensação foi familiar e boa. Tirei a faca e deixei sangrar. A dor cobriu-me inteira e jogou-me ao chão pela intensidade. Respirar era difícil, mas consegui controlar aos poucos.
Percebi que estava mais viva com a dor do que sem ela. Errei em tentar esquecer Adriel, percebo agora. Ele era a parte mais bela do que sou e quando abafei a dor, desapareci também com meu melhor. Estava errada ainda agora, ao pensar que poderia casar com Elros sem o amar. Não apenas ele não merecia isto, como também eu não merecia e nem Adriel.
Por todos nós, por tudo que vivemos e significamos uns para os outros, devia ao menos ser honesta com relação a meus sentimentos.
Tirei o vestido e abri a porta. Tana e Niis entraram. Fiquei parada, olhando-os apenas, sabendo que estava despedindo-me.
– Menina, porque trancou a porta? Estamos atrasadas já. Vou trazer seu café da manhã. – Tana como sempre falava aos borbotões, mas parou ao observar minha imobilidade.
– Tana, peça a Elros para vir. Preciso falar com ele.
– Minha menina, é o que estou pensando? Tem certeza? – Ela compreendera, com sua formidável intuição.
– Tenho, Tana. Preciso ir, voltar para mim mesma. – Eu disse, já com os olhos úmidos. Sentiria tantas saudades dela. Querida e preciosa Tana! Agradeci em pensamentos todo o amor que me dedicou.
– Oh, querida! Esperava por isto. Nunca acreditei neste casamento, mesmo sabendo que sem ele você nos deixará. – Ela também chorava ao seu modo, com lágrimas invisíveis.
– Vá, Tana. Chame-o. – Não queria uma cena agora. Não antes de falar com Elros. E ela saiu.
– Niis, meu amiguinho.
– Maise, você vai embora? Não vai se casar? – Ele também compreendera, pelo nosso diálogo e seu pequeno rostinho era pura tristeza.
– Venha aqui, meu amor. – Ele veio e sentou-se em meus joelhos. Abracei-o por alguns momentos, sem nada dizer, esperando até que se acalmasse.
– Niis, eu preciso ir. Não posso casar. Não seria feliz. Seria um erro do qual todos nos arrependeríamos mais tarde. Você pode entender isto?
– Você vai voltar? Algum dia? – Perguntou após fazer um gesto afirmativo com a cabeça e controlar as lágrimas o suficiente para falar.
– Lógico que vou, meu amor. Aqui é também minha casa e o único lugar no mundo onde tenho uma família. Amo você como se fosse meu filho, você sabe, não sabe?
– Eu também te amo, Maise. Por favor, volte logo. Vou sentir muitas saudades. – Abraçou-me, enterrando sua cabeça em meu peito.
– Também sentirei, querido. Você tomará conta de Aza até minha volta? Precisa voar com ele sempre. – Ele prometeu, ficando mais feliz com esta ocupação.
Elros entrou e pedi que saísse, fechando a porta. Ele viu os vestígios de lágrimas em meu rosto e através de meu silêncio compreendeu.
– Não haverá casamento, não é?
– Não, Elros. Sinto muito, mesmo. Por favor, desculpe-me por ter deixado que isto chegasse a este ponto. Você não merece este momento, por tudo que já passou em sua vida e por tudo que fez por mim e por Etera, mas se prosseguisse seria ainda pior.
Ele sentou-se na cama e segurou a cabeça entre as mãos, desconsolado. Se eu pudesse fazer algo naquele momento!
– No fundo eu já sabia. Tive esperanças, mas acho que sempre soube. É Adriel, não é? Tem esperança de que esteja vivo e que se encontrem?
– Não e sim, Elros. É por mim, muito mais do que por ele. É o que preciso fazer para voltar a ser inteira. Para estar viva novamente, necessito que ele viva em mim. Ele e eu somos um e este tempo em que neguei isto fui apenas metade de mim, menos do que sou. Mas é também por Adriel. Não sei se está vivo e se nos encontraremos, mas enquanto existir a menor possibilidade de que isto aconteça, tenho que tentar. Entende?
– Sim. Infelizmente entendo e sei que tem razão. Não se preocupe. Vá. Cuidaremos de tudo por aqui e se um dia retornar…
– Eu vou voltar, Elros. Não vou sumir, não vou desaparecer. Prometo a você. Mas…
– Eu sei. Mesmo que volte, não será por mim, não é? Tudo bem. Agora que sou o Primeiro Ministro tem um bando de lindas elfas dispostas a consolar-me. Quem sabe uma delas não ajuda a curar meu coração partido? – Disse, piscando e tentando fazer graça, apesar da tristeza.
– Elros…
– Não diga mais nada, Maise. Vá. Você sabe que na Terra já se passaram 40 anos?
– Como assim? Não foram 4 anos?
– Não. Esqueceu-se de que o tempo em Etera corre de forma diferente e mais lento do que na Terra?
– Mas… Ficarei velha quando sair daqui?
– Você resgatou sua porção etérea agora e assim como todos nós seu corpo deve seguir o tempo de Etera e não da Terra. Não estou bem certo, uma vez que você é metade humana, mas se levar o medalhão no pescoço, nada ocorrerá. Apenas não o retire de seu pescoço enquanto não tiver certeza disto.
Olhamo-nos uma vez mais, sorrindo um ao outro e abraçamo-nos longamente e ele saiu.
Em um canto de meu armário guardava a roupa com que vim para cá. Calças jeans, camiseta, tênis, relógio. Foi esquisito vestir-me novamente com roupas humanas, mas sorri para a Maise mais familiar que apareceu no espelho.
Tana e Niis entraram. Abraçamo-nos os três, juntos. Prometi que mandaria mensagens e que retornaria em breve e minha mão acenava ainda quando desapareci do quarto para reaparecer em frente ao Portal.
Respirei fundo, usei o medalhão para abri-lo novamente, depois de quatro anos fechado e atravessei a abertura, entrando em Portal do Sol.
Senti-me um pouco tonta com a diferença da atmosfera.
– Como é pesado o ar! – Disse em voz alta, lutando para respirar. Assim que consegui estabilizar meus pulmões, olhei em volta. Estava próxima à casa de Adriel e caminhei até a entrada.
– “Escombros praticamente.” – Observei com tristeza o que o tempo fizera à casa que fora tão majestosa ao mesmo tempo em que desativava a barreira mágica.
Caminhei pelo que restava da casa e dos móveis, lembrando de cada momento que
vivêramos aqui. A cama do quarto de hóspedes onde deitou-me na primeira vez, depois de salvar-me da queda da árvore, a mesa onde fiz o jantar romântico. Revivi a sensação daquele primeiro e mágico beijo, de olhos fechados, ouvindo a música em minhas lembranças e acompanhando os passos sem perceber.
Abri os olhos marejados na varanda e desci à praia. Caminhei em direção à cabana, como fizemos tantas vezes, abraçados ou apenas segurando as mãos do outro.
– “Adriel, meu amor! Onde você está?” – Meu coração estava doendo, meus olhos já nem enxergavam direito e começava a duvidar ter feito a coisa certa ao sair de Etera.
Suportaria viver aqui fora sem Adriel?
Lembrei-me da primeira vez em que nos vimos, quando estava sentada à pedra dele e revi sua imagem naquele local, conforme me aproximava da pedra. Recordava-me tão fortemente que era quase como se pudesse vê-lo lá.
Estava delirando ou realmente ele estava lá? Uma pessoa estava mesmo sentada na pedra ou era minha imaginação?
Parei, incerta, com o coração batendo enlouquecido enquanto observava a silhueta ao longe.
– Adriel! – Gritei, enquanto voltava a caminhar em sua direção, cada vez mais rápido. Ele olhou em direção do som.
– Adriel! – Corria agora, com os braços já abertos. Era Adriel! – “Oh, meu Deus, obrigada, obrigada.” – Era só o que conseguia pensar.
– Maise! – Ouvi meu nome dito por ele, pela sua boca amada, enquanto levantava-se e corria também.
Encontramo-nos a meio caminho e abraçou-me levantando-me do chão, enquanto repetíamos o nome um do outro sem parar e nos olhávamos maravilhados.
– Adriel… – Eu ia perguntar alguma coisa, mas ele colocou o dedo em minha boca.
– Psiu. Não fale agora, pequena. – Então me beijou e finalmente estava em casa e em mim.
As lágrimas tornaram-se uma torrente a cobrir meu rosto, pelo alívio que senti por estar novamente com ele.
– Não chore, querida. – Ele beijava minhas lágrimas e todo meu rosto e eu chorava ainda mais com seu carinho.
– Estou feliz demais. Não posso conter.
– Beije-me. – Ele pediu.
Beijei-o de verdade agora, com a boca aberta, minha língua buscando a dele, com uma fome feroz. Ele correspondeu e deixamos que a imensidão das saudades que sentíamos circulasse por elas, ocupando-nos todos por dentro.
Não percebi quando caímos na areia macia, envolvida como estava com a gama de sentimentos que fluíam entre nós, quente e denso hálito.
O desejo de estar nele e senti-lo em mim era insuportável e tirei nossas roupas com mágica, sem poder aguardar mais e quando senti nossas peles uma contra a outra perdi o ar por alguns segundos e também quando tocou e beijou meus seios.
– Adriel, quero você! Agora! – Não poderia esperar mais um único segundo e deitei por cima dele, fazendo com que entrasse em mim, de uma só vez.
– Ah!!! – Soltei um suspiro, com os olhos fechados, sem acreditar que vivi estes anos sem esta sensação, sem o prazer de sentir-me completa, inteira.
Adriel e eu deixamo-nos conduzir pela poderosa onda que surgia de nossa união e que conduzia-nos a uma explosão, lançando-nos em mil direções e ainda assim coesos e unos em um só ser.
Ficamos largados nos braços um do outro por momentos até que voltássemos a Terra novamente.
– Adriel! – Exclamei ruborizada quando percebi que fizéramos amor na praia, à vista de qualquer um que passasse. Ele entendeu meu olhar para o entorno e riu, beijando-me ternamente.
– Sossegue. Ninguém mais vem a esta praia há anos. – Mesmo assim, vesti nossas roupas com mágica novamente, enquanto o olhava atentamente. Ele estava diferente.
– Suas asas! Não tem mais. Nem aquele brilho. Está diferente! É você e ao mesmo tempo não é. – Observava seu rosto. Eram poucos detalhes, mas percebia agora: o desenho da boca, sutilmente mais fina, do nariz, quase nada menor, o tom dos olhos, a cor dos cabelos.
– Querida, sou eu, não se preocupe. É uma longa estória. E você? Como não envelheceu?
– É uma longa estória.
Caímos ambos em risadas, felizes demais para preocuparmo-nos realmente com estes detalhes.
Mais tarde teríamos todo tempo do mundo para sabermos tudo o que ocorrera um com o outro. Agora queria apenas continuar a sentir a magia de sua presença ao meu lado. Olhei-o embevecida.
Adriel, meu eterno amor e eu estávamos juntos novamente após tanto tempo e eu sabia que agora seríamos felizes para sempre.
THE END
…
Trilogia do Anjo – 3° Livro: Adrien
Sinopse
Maise e Adrien casam-se novamente, reconstroem o complexo e com a ajuda dos Elementais, preparam-se para a batalha final contra os demônios e os Elfos Negros.
Ytzar e Eileen são derrotados, seus restos são queimados e suas cinzas espalhadas pelos quatro cantos da Terra, para que não retornem jamais. Os Elfos Negros que sobrevivem entregam-se e decidem viver em paz, após o perdão do casal. Os demônios são capturados e enviados para uma prisão especial.
O portal entre Etera e a Terra é aberto definitivamente. Elementais e humanos começam a viver em harmonia, embora limitado aos habitantes de Portal do Sol.
Maise continua Rainha de Etera, mas Elros e Gnom é que efetivamente comandam o reino, que aproveita as influências do mundo exterior para modernizar-se, sem perder o contato com a magia, que floresce. Elros casa-se com uma elfa linda e completamente apaixonada por ele. Tana muda-se para a casa de Adrien e Maise.
Aisha nasce após cinco anos, filha de um ex-anjo e uma Elemental, com poderes extraordinários e um futuro decisivo para a Terra. Tana, Niis e Aza vivem ao seu redor, protegendo-a, absolutamente cativados pela menina charmosa e mandona.
Adrien e Maise são felizes por toda a vida, até a morte, velhinhos já, com intervalo de poucos meses entre um e outro.
No mundo espiritual, Adrien revê toda sua família de Celes e Maise, sua avó e sua mãe.
Dos céus, dão um último olhar carinhoso para Aisha e todos os que ficaram na Terra e de mãos dadas, brilhantes e com suas asas de anjos, partem em direção à luz, desaparecendo.
THE END
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Texto registrado no Literar.
Imagem daqui.