Acordei com as vozes de Adriel e Tana discutindo lá fora. Ela viu-nos dormindo juntos e tirou conclusões erradas. Adriel explicou, mas Tana não o deixou escapar sem um sermão e ameaças sobre o que lhe aconteceria caso me “desrespeitasse”. Ri escondida ao ver aquele homão ouvindo quieto enquanto Tana vociferava com o dedo em riste apontado para seu rosto.
Fingi estar dormindo e “acordei” quando ela chamou. Tomei banho, café, preparei a mala e fiquei papeando com Tana enquanto aguardava Adriel voltar de sua casa. Ele demorou e a manhã já estava no fim quando chegou. Almoçamos rapidamente e saímos.
O dia estava agradável e avançamos rapidamente enquanto conversávamos. Descobrimos gostos parecidos em quase tudo que se referia à arte, música, cinema e literatura. Embora ele conhecesse mais obras clássicas e eu contemporâneas, concordávamos que o essencial era a qualidade. Ainda assim combinamos de conhecer um as obras que o outro gostava mais.
Após uma parada para abastecer, cobrei sua promessa de falar sobre seu trabalho hoje. Ele pareceu não estar com muita vontade de entrar neste assunto, mas falou.
– Os anjos nada mais são do que seres que já viveram aqui na Terra como vocês e continuam ligados e comprometidos com o planeta. Alguns viram anjos da guarda, outros trabalham em grupos ou aspectos específicos da vida na Terra, como por exemplo, a natureza, crianças, doentes, etc..
– Certo.
– Nossa atuação é limitada por dois aspectos. O primeiro é que não podemos desrespeitar o livre arbítrio dos seres humanos. O segundo é que não conseguimos agir de verdade. Só podemos tentar influenciar pessoas para que o façam. Se um anjo da guarda vê que seu protegido está prestes a suicidar-se, por exemplo, não pode impedir. Pode tentar fazê-lo mudar de idéia incutindo outros pensamentos ou tentar influenciar algum amigo para que o procure naquele momento. São muitos os eventos que poderíamos evitar e não podemos, porque não conseguimos fazer-nos ouvir através da transmissão de pensamentos, que vocês chamam de intuição. É frustrante.
– Estou entendendo.
– De tempos em tempos alguns de nós renascem na Terra para fazer algo em prol da Terra. Bem, o exemplo mais conhecido de todos é Jesus. Vários trabalham de forma anônima nas ciências, nos bastidores políticos, etc.. São casos muito pontuais, mas sempre existem alguns anjos renascidos trabalhando na Terra.
– E até mesmo de forma não anônima?
– Exato. Agora, da mesma forma que nós nos dedicamos a ajudar, grupos contrários dedicam-se a atrapalhar. Bom, é uma longa estória esta da luta entre anjos e demônios. Por hora basta dizer que não estão limitados como nós tanto por não se preocuparem com leis universais quanto por atuarem fisicamente na Terra.
– Como assim?
– Embora a maior parte aja como nós, inclusive com demônios renascidos, alguns grupos resolveram viver na Terra como humanos desistindo da imortalidade e ganhando um corpo humano real.
– Está dizendo que existem demônios vivendo entre nós, como se fossem humanos normais?
– Sim. Isto mesmo. Existem vários grupos deles, cada qual com sua ocupação. O grupo liderado pelo demônio Yzar dedica-se a impedir o sucesso dos benfeitores da humanidade, pessoas com talento e potencial para criar, produzir ou conduzir processos que podem ajudar a Terra. São nossos anjos renascidos ou humanos com potencialidade latente em alguma disciplina.
– Estou entendendo.
– Cansados de verem planejamentos de décadas serem arruinados por este grupo, o conselho percebeu que a única forma de derrotá-lo seria usando as mesmas armas, ou seja, atuando de forma física na Terra. Nosso complexo foi criado para acolher uma equipe de anjos que desistiram da imortalidade e ganharam corpos humanos. Protegemos os anjos benfeitores e tentamos destruir ou ao menos neutralizar o grupo de Yzar.
– E você?
– Os anjos com corpos perdem a capacidade de ver e ouvir os anjos imateriais ainda que seja necessária a troca de informações de um lado ao outro. Funciono como uma ponte entre ambos. E por ter experiência com este tipo de tarefa e ser o único a ter acesso ao conselho, sou também responsável pelo projeto, o dirigente do complexo.
– Entendi.
– Yzar e seu bando não sabem, mas adorariam saber a localização do complexo. Somos protegidos por uma barreira energética que nos oculta deles. Até agora tivemos sorte, mas não é impossível que nos encontrem. Neste caso seria perigoso para todos nós, mas você é a parte mais vulnerável e se ele souber de nossa ligação será seu alvo principal. Entende agora porque disse que não via possibilidades de futuro para nós? Não é apenas pela incerteza do tempo que tenho na Terra, mas também por meu trabalho, pelo perigo que representa a você.
– Não pode pedir demissão, comprar um barco e irmos viver no mar?
– Hahahaha. Maise, você é impagável! Estou falando sério!
– Eu sei. Só quis desanuviar um pouco. Vou pensar no que disse, mas não quero falar de impossibilidades agora. Além disto, combinamos ficar juntos até sua ida a Celes. Tenho certeza de que os tais conselheiros vão ajudar-nos de alguma forma.
– De acordo. Não falaremos mais nisto durante esta viagem. Agora, sobre o barco, qual local gostaria de conhecer primeiro?
Tive que sorrir. No restante do caminho fizemos o roteiro para nossa viagem náutica fictícia, percorrendo toda a Europa. Combinamos em deixar os outros continentes para as próximas viagens.
Texto registrado no Literar.
Imagem daqui.