Ele tinha 17 anos, era office-boy, negro, pobre e viciado em maconha. Ela tinha 21, era chefe de departamento, branca, classe média e fazia faculdade. Ele fumava com sua assistente no horário do almoço e ela ficava furiosa. Ameaçou contar aos chefes se não parassem. A assistente quis que ficasse amiga dele para perder a bronca. Marcou cerveja. Ela foi para dizer o que estava engasgado. Ele era engraçado e não conseguiu brecha alguma entre um copo e outro. No final da noite, cavalheiro, acompanhou-a até a casa. Algo alcoolizada, desacostumada às farras, nem sabe dizer como o beijo ocorreu e do beijo à cama menos ainda. Dormiu em sua casa e no outro dia mesmo trouxe as roupas e ficaram juntos por 3 anos.

Ela aprendeu a relaxar fumando baseado. Saiam “malucos” pelas ruas, rindo de tudo e qualquer coisa. Amavam-se lentamente imersos em viagens. Depois laricavam o que tivesse, rindo bobos do nada e terminavam as noites e começavam os dias abraçados, agarrados.

Brigavam como cão e gato. Ele provocava, ela retalhou suas calças um dia, jogou fora seu pote de bitucas em outro. Ele ria, sempre. Quanto mais nervosa, mais graça achava. E todas as rusgas terminavam na cama, amando-se e jurando nunca mais brigar.

Numa noite, em uma rua escura, lutou com um assaltante, enquanto ela corria. Depois correram os dois, fugindo dos tiros. Ela o achou herói e morreu de amores.

Ela chorava, de tristezas bobas e ele a consolava, confortava. Chamava de Princesa, trazia ao ombro e deixava chorar enquanto ouvia até ela se cansar e adormecer.

Ele não tinha tristezas, só alegrias. Despreocupação tal que a enlouquecia. E amigos, muitos, infinitos. E amigas, tantas!!! Entra e sai de pessoas na casa, sempre, toda hora. Ela não gostava.

Um soutien que não era seu, em sua gaveta, algo aqui, outro acolá. Ela teve outro por vingança. Ele revidou. E a relação se foi findando…

Separaram, mas não deixaram de se gostar, de serem amigos, de se verem, sempre, sempre, sempre. Vez em quando faziam amor, que era tão bom. Quando não, papeavam, passeavam, iam ao cinema, ao bar.

Era certo que se amavam e se amariam para sempre. Quase nunca brigavam, agora. Tinham se tornado mais do que tolerantes, cúmplices, guardando brigas e críticas para os outros.

Ela se lembra da última vez que fizeram amor. Carente, perguntou se a amava e ele disse: “Ah, Gatinha! Se você soubesse o quanto!” E disse de tal forma que gravou.

Então passou uma semana inteira sem saber dele. No sábado já estranhava e pensava em procurá-lo no domingo. Hoje iria ao cinema. Passava baton, banho tomado, vestida já, quando atendeu o telefonema do amigo: “Roberto está morto, no necrotério de Guarulhos, esperando identificação.”

Foi de taxi chorando desesperada e compulsivamente, esperando a confirmação de uma brincadeira cruel. Passou por vários locais, até que alguém sugeriu o IML. Entrou, foi levada onde estavam. Olhou, não o viu. Saiu, chorou de alívio. Quis ver novamente, para ter certeza. Não é ele. O legista então aponta para seu ombro: Vê esta tatuagem de tigre? Ele tinha? Sim… Ele tinha.

Mas não era ele. Nem era ninguém. Era uma casca vazia, apenas vagamente parecida com o corpo que era dele. E ao mesmo tempo, sabia que a casca era dele, era ele. Então reconhece.

Tiros. Nas costas, no ouvido. Morte por anemia traumática. Sangrou até morrer. Polícia. Desaparece com seus documentos. Desova em Guarulhos, para ser enterrado como indigente. Por sorte um amigo soube, procurou, achou, avisou.

Preenche todos os trâmites legais e noite já, dorme em um hotel, acompanhada de uma amiga que soubera e viera acompanhar. Uma louca canta sinistramente na madrugada, tornando ainda mais impossível o adormecer.

De manhã, no cemitério, de tantos amigos apenas 4 se despedem no enterro pobre e silencioso.

Ela trabalha à tarde, entorpecida. E só à noite, quando as ocupações acabam é que desaba. E chora silenciosamente na cama grande e solitária.

Pensa na casca, como começa a chamar “aquilo”. Sabe que ele não estava lá. Onde estaria então? Teria desaparecido? Deixado de existir, simplesmente? Não… Não seria possível.

Imagina que possa estar em algum lugar, talvez escuro. Talvez sinta dor, solidão, medo. Talvez precise dela. Decide que o encontrará, ainda que até então não acreditasse “nessas coisas”.

Busca informações, vai a lugares, lê tudo o que pode e de passo em passo, chega a um pequeno centro espírita em Ribeirão Preto. Ao final, na leitura das psicografias, a última inicia-se com um “Gatinha”. Fala sobre as pizzas com coca-cola que adoravam, descreve os acontecimentos até então desconhecidos para ela (alivia-a saber que morreu inocente), pede que não odeie os policiais, que era sua hora. Que se não fosse assim, seria de outra forma qualquer. Reafirma seu amor, mas pede que siga com sua vida.

Primeira de muitas, até que se sentiu forte para deixá-lo ir e seguiu também seu caminho.

Lembra-se dele, sempre. Um homem no ônibus a faz pensar como seria ele, adulto, hoje. Uma pizza, um cinema, nada e qualquer coisa, vira e mexe vêm a lembrança, o carinho, o sorriso e a certeza de que será a primeira pessoa a ver quando se for. Segurança de um amor que a aquece e conforta após quase 2 décadas.

Antonio Roberto Barbosa dos Santos era o nome de meu negro, belo e tão amado gatinho. Pensei muito nele hoje e quis escrever sobre nós.

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