OS REINOS DE UR PARTE 1
LIARA – A PEQUENA ELFA
Em uma noite sem vento uma criança elfa, um bebê, foi abandonado à porta da casa de crianças de Sur. Fato estarrecedor por todo e qualquer aspecto que se analise.
Ainda que se admitisse que um elfo ou elfa pudesse abandonar sua cria – o que é absolutamente inadmissível, uma vez que crianças elfas são raras e preciosas –, mas suponhamos que o pudesse ser por qualquer circunstância extraordinária, certamente que seria deixada com o povo élfico e não com os Surs. Eles não apenas não são elfos quanto não há um único elfo entre eles ou nas proximidades e pior, nenhuma raça poderia ser mais diferente.
Enquanto os elfos são criaturas altas, com orelhas pontudas, olhos grandes, cútis bela e delicada, os Sur são pessoas pequenas, raramente ultrapassando seus um metro e sessenta, com orelhas redondas, pele muito branca, olhos pequenos e pele que se enruga cedo.
Mas, para além das diferenças puramente físicas, os elfos são criaturas livres, amantes da natureza e dos animais tão somente e os Sur são conhecidos justamente pela extrema rigidez religiosa e absoluta devoção ao deus Ur. Os Surs são praticamente o inverso, o contrário, a negação do reino élfico.
Desta forma, o fato de um bebê elfo ser abandonado à porta da casa de crianças de Sur já é, por si, no mínimo inusitado.
Quando se sabe, entretanto, que Sur está separado dos demais reinos através de uma cortina de névoa que impede que qualquer um ali entre ou dele saia, entende-se um pouco melhor o quanto é estarrecedor.
De fato, há quinhentos anos, quando os reinos lutavam entre si, metade pelo deus Ur, o Criador e metade por Er, o Ursupador em uma guerra civil devastadora, o povo de Sur rogou a Ur que lhes fosse concedido a paz do isolamento para viverem apenas em sua adoração e devoção. Ur, compadecido e envaidecido enviou-os a este recanto e isolou-os dos demais reinos com uma camada de névoa.
O reino de Sur inteiro – a capital e o conjunto de cidades e vilarejos – é muito pequeno, podendo ser percorrido de uma ponta a outra em cinco dias. A barreira de névoa fica à cerca de três horas de qualquer extremidade, mas por mais que se caminhe em sua direção permanece sempre à mesma distância, parecendo estar ao alcance, mas nunca sendo alcançada. Se uma pessoa sair em sua direção e caminhar sem parar, ao fim de dez dias se percebe de volta ao ponto de origem, sem saber como passou de um extremo ao outro.
É fato conhecido que os elfos podem assumir formato não apenas de animais quanto de pássaros, até mesmo de dragões e alguém poderia presumir que tivessem entrado por cima, voando, mas não: a cortina fecha-se no céu em formato de cúpula. Tanto é que o sol aparece enfraquecido e pálido através dela e é por isso que os Surs são tão brancos e enrugados.
Finalizando os aspectos estarrecedores do fato, naquela noite não ventou, anormalmente. E o silêncio permitiu que todos da casa ouvissem quando o bebê chorou.
Naquela época do ano o vento normalmente era uma voz colérica e irada a fustigar paredes, telhados, árvores e o que mais oferecesse resistência à sua passagem. Os Onais contam que no passado distante, Ur roubou as formas dos gigantes enquanto estes dormiam. Acordaram no meio da noite desprovidos de corpos e desde então os procuram, esbravejando sua fúria em forma de vento e assim será até o dia em que consigam recuperar o que perderam.
Estranhamente, naquela noite os gigantes do vento sujeitavam-se a soltar simplórios lamentos e resmungos, quase se diria apaziguados e resignados. O silêncio era uma manta gentil e quente recaída sobre a cidade e pelas ruas não se via viva alma. As janelas permaneciam fechadas, hábito adquirido por força do vento hostil.
As pessoas estavam em suas casas envoltos nas pequenas ocupações do final do dia. Por mais silenciosos que fossem ainda produziam pequenos sons: os pratos que se colocavam à mesa, o arrastar dos pés no chão, um diálogo ou outro, os murmúrios individuais e principalmente as preces que se transformavam em coro. Uma série de pequenos ruídos que se enfileirava ou agrupava como contas em um colar e assim saía das casas, preenchendo o ar das ruas silenciadas pela ausência de vento. Uma voz cálida, sussurrante, agradável e felizmente baixa o suficiente para que todos sentados à mesa da Cala ouvissem quando o bebê começou a chorar.
A Cala era a casa em que as crianças viviam na primeira infância até completarem sete anos, cuidados por todas as mães em revezamento. Uma das maiores casas da cidade, com grandes dormitórios, um refeitório que acolhia facilmente cinquenta pessoas, uma cozinha que podia atender tamanha demanda e uma gigantesca sala com vários ambientes para recreação e visitas dos familiares, além dos quartos privativos de Ani, a responsável pela Cala e de suas assistentes, Alendra e Faya.
Naquele momento as crianças com os corpos rescendendo a banho, vestidos do pijama simples tecido com a fibra da Lete, distribuídos pelas mesas e acompanhados pelas mães iniciavam a ceia noturna e talvez umas trinta pessoas tenham parado a colher em algum lugar entre o prato e a boca, surpreendidos. O bebê mais novo estava já com seis meses e embora ainda chorasse sabidamente estava dormindo e, o que era mais importante, em aposento localizado em lado oposto ao do som que agora ouviam.
Ani, a mãe de todas as mães, sentada à cabeceira da longa mesa também congelou sua colher em movimento, mesmo que tenha sido por apenas um instante, virando o rosto em direção à porta.
O segundo choro liberou as colheres, os movimentos e as vozes se fizeram ouvir ao mesmo tempo.
– Um bebê!
– A porta!
– Está chorando!
Ato contínuo, cadeiras se arrastaram, corpos se levantaram e em instantes crianças e adultos se acotovelaram em direção à porta. Foi preciso que Ani usasse sua voz de comando. Não elevou a voz nem uma fração acima do tom que normalmente usava. Bastou a entonação, conhecida por eles, que inviabilizava desobediência:
– Parados! – Imediatamente estacaram e embora os olhos denotassem o nervosismo com a lentidão exasperante em que levantou e caminhou até a porta, ninguém ousou encostar a mão no trinco e abriram passagem para que o fizesse.
Ani era a mãe de todas as mães, a responsável pela Cala. Uma mulher muito pequena, encurvada pela idade, magra, com os cabelos totalmente brancos e a pele branca do rosto coberta de rugas. Usava um vestido simples, meio cinzento, coberto por um avental e uma pequena touca na cabeça. Muito embora todo seu conjunto denotasse fragilidade emanava autoridade em cada gesto, por menor que fosse.
Ela abriu uma pequena fresta e olhou demoradamente para frente e para os lados, antes de baixar os olhos para a pequena entrada, no intervalo entre a porta e a escada, onde encontrou a origem do choro agora ininterrupto vindo do pequeno embrulho que se agitava ao chão.
– Oh! – Deixou escapar, surpresa, enquanto abria totalmente a porta e caminhava até ele.
Em outros tempos era comum que mulheres ali deixassem os frutos de uniões impuras e não aceitas. Mas isto fora em outros tempos, quando as leis ainda não eram tão claras e os costumes estavam todos meio misturados, os novos e os antigos. Hoje em dia era impossível que ocorresse uma gravidez não sabida por todos e por isto os bebês deixaram de ser abandonados à porta da Cala.
As mães auxiliares tentaram sem sucesso conduzir as crianças de volta ao refeitório, enquanto Ani abaixou-se para pegar a trouxinha minúscula em seus braços. Afastou com cuidado o pano leve que recobria a parte superior e viu uma carinha já muito vermelha pelo esforço do choro que saía ininterrupto por sua boquinha.
Olhou novamente e ainda mais atentamente para frente e para os lados, procurando indícios de quem a deixara ali. Como não encontrou nada e ninguém, voltou para a porta e entrou em meio ao silêncio pasmo de crianças e adultos.
Não era preciso que ninguém falasse em voz alta o que todos pensavam: um bebê dos Outros! Bastava ver a cor no embrulho.
Ani sabia que este era um grande problema e que não havia nada que pudesse fazer para impedir que a notícia se disseminasse pela aldeia e alastrasse por todas as terras de Sur, até que não houvesse um único ser no reino que não soubesse que um bebê do outro lado tinha sido deixado à sua porta. Haveria falatório, discussões, reuniões, deliberações e infindáveis curiosos viriam a Cala, em procissão, para ver a criança.
Ouviu o zum-zum-zum crescente às suas costas e decidiu que seria melhor mostrar a criança para todos do que escondê-la, evitando as versões ainda piores da imaginação fértil e fantasiosa das crianças. Por isto não foi ao quarto dos menores e sim ao refeitório onde estavam antes.
– Todos que terminarem a refeição em silêncio poderão ver o bebê assim que ele estiver alimentado e limpo. – Ao ouvir isto, mesmo resmungando e falando entre si as crianças começaram a voltar às suas cadeiras.
– Em silêncio, eu disse! – Lógico, ela sabia que pedia o impossível e que o falatório voltaria, mas precisava tentar. As mães substitutas tentaram organizar o caos e encaminhar cada criança de volta a seu respectivo lugar.
– Faya, venha comigo. E também você, Alendra. – As duas assistentes a acompanharam até a cozinha. Depositou com cuidado o pequeno pacote na grande mesa central. O bebê continuava a chorar, convertidos em pequenos resmungos tão logo sentira o calor de seu corpo e a segurança de um colo, mas voltou a berrar tão logo sentiu a superfície dura da mesa.
– Faya, traga algo para alimentá-lo. Deve estar com fome. Alendra, traga panos para trocá-lo. – As mãos ágeis abriam o embrulho de mantas rosadas enquanto ditava estas ordens. Sentiu o aperto no peito ao ver o que se desvendava perante seus olhos: as pequeninas orelhas eram inegavelmente pontudas, a pele rosada e o pior: tufos e tufos de cabelos ruivos. O último fiapo de esperança se foi. Era realmente um bebê dos “Outros”. Uma menina.
Faya estava parada à sua frente, segurando uma mamadeira entre as mãos. Era esbelta, com cabelos pretos, lisos e compridos. Usava o mesmo tipo de vestido largo com avental e aparentava pouco mais de 20 anos. Seu rosto, braços e mãos eram tão brancos quanto os de Ani, embora não tivesse as rugas da anciã.
– Ur seja bendito! Sua pele… – Falou com expressão de repúdio.
– Quieta! Alendra passe-me os panos. – A jovem, que era bem parecida com a outra, com corpo igualmente esbelto e cabelos longos e lisos, embora mais acastanhados do que pretos. Sua expressão era diversa, entretanto, demonstrando uma amabilidade ou gentileza ausentes naquela.
Alendra acabara de chegar com vários panos entre os braços e passou-os rapidamente para Ani que já tirava as fraldas molhadas. Após limpar com um pano levemente úmido e secar com um pano macio e seco, espalhou um pó branco por seu bumbum e pernas antes de enrolar novos panos prendendo as pontas com o mesmo fecho que trazia anteriormente.
– Tenha calma, criança. Já estou terminando. – Ani disse em voz carinhosa para o bebê que berrava ainda mais forte, parecendo bastante incomodada com a troca. Embalou-a em novas mantas e quando era novamente um pacote firme, pegou-o nos braços.
Faya passou-lhe uma teta de animal cujas extremidades estavam firmemente amarradas impedindo que o leite de cabra com o qual fora recheado vazasse e levou o bico aos lábios da pequena derramando algumas gotas em seus lábios vermelhos, instigando-a para que sugasse. Após algumas tentativas, obtiveram sucesso e o choro desapareceu enquanto chupava com avidez.
As três mulheres ficaram quietas, observando. Ani, séria e compenetrada. Alendra com expressão encantada e Faya alternando expressões de repugnância e espanto.
O bebê abriu as pálpebras por alguns instantes, revelando os imensos e verdes olhos. Em seguida fechou-as e foi diminuindo as sugadas até adormecer ainda com a mamadeira na boca.
Ani pediu à Alendra para buscar uma cesta. Faya principiou a dizer algo, mas foi silenciada com um olhar. Alendra voltou rapidamente com um cesto cujos fundos recheara com penas de aves e cobrira com um pano. Algumas penas ainda escapavam pelo ar, tão rápido agiu, com receio de perder algo do insólito acontecimento. A pequena pareceu não sentir quando foi deitada no leito improvisado e continuou a dormir.
Foi só quando Ani sentou-se que seu rosto demonstrou algo do desamparo que sentia. – O que fazer? – Pensava. – Avisar o Lure? Com certeza. Mas agora, a esta hora da noite ou seria melhor deixar para amanhã? – Ela bem que preferiria uma boa noite de sono antes do que viria. Já não tinha a mesma energia. Estou velha. – Constatou. Velha e cansada.
– Faya, diga às mães para trazerem as crianças em fila e em silêncio, para verem o bebê.
– Mas, Ani! Não devemos. É uma impura! É pecado! Vamos enfurecer Ur. Depois de todo trabalho que teve para nos isolar do mal de fora!
– Desde quando um recém-nascido pode fazer mal? Mais mal faria deixar as crianças imaginando todo tipo de ser demoníaco. Sequer dormiriam de medo. É melhor que vejam, para que se tranquilizem e também para falarem a verdade depois. Vá.
Faya afastou-se relutante. Como se apenas estivesse ajeitando-a no cesto, Ani cobriu suas orelhas com a manta. As crianças entraram conforme solicitado. Uma após outra, passavam em frente ao cesto, davam uma rápida olhada e prosseguiam sob o olhar severo das mulheres. Apenas um pouco de rosto do bebê estava à mostra, mas poucas crianças deixaram de manifestar inquietude, espanto e até medo. As outras mães também passavam, entremeadas às crianças, com as mesmas reações.
Em poucos minutos as três mulheres estavam sós novamente. As mães substitutas regressaram às suas casas após acomodarem as crianças no dormitório, onde ainda demorariam a dormir falando da cor da criança. De como não era branca ou pálida como os bebês que conheciam. Diriam que era rosada, se conhecessem a palavra para a cor. Como não conheciam, diriam apenas que tinha “aquela” cor. Certamente espiariam por baixo de suas roupas, com o súbito receio de serem iguais, só para terem certeza de que não eram. Que eram totalmente brancos, com era da vontade de Ur.
Ani pensou nisto por alguns instantes. Depois deu de ombros. Não havia muito que pudesse fazer agora exceto tentar descansar para amanhã. Alendra dormiu em seu quarto, com o bebê e estava tão esgotada que nem mesmo ouviu quando ele chorou durante a madrugada, pedindo mais alimento e sendo atendido pela jovem assistente.
A cidade de Sur existia ao redor e ao longo da praça, que tinha por centro a maior árvore da região. Em uma das pontas estava a Igreja de Ur e na outra a Casa de Ur, o local onde a sacerdotisa residia, onde as crianças aprendiam os prenúncios de magia e religião, faziam as comemorações e eventos mais informais e onde ficavam à vontade para circular, conversar ou simplesmente estar.
À noite, quando não estava muito frio e o vento não estava tão forte, nas noites boas, os jovens reuniam-se na praça, aos grupos. Ali nasciam as paqueras e a vida social de Sur se realizava. Durante o dia era frequentada pelos idosos, os Onais, que tomavam os bancos, conversando entre si ou contando estórias e causos para as crianças que se agrupavam ao redor e passavam horas e horas entretidas, a imaginação completando qualquer lacuna e criando asas.
Como toda cidade pequena e sem grandes fontes de diversão, qualquer acontecimento mesmo que pequeno entretinha os habitantes por horas e até dias. E uma criança dos Outros era o maior acontecimento dos últimos quinhentos anos.
A notícia, levada pelas bocas das mães substitutas, nem mesmo esperou o dia e começou a se espalhar noite a fora. Em poucas horas já era fato conhecido por todos que alguém dos Outros tivera acesso à Sur ou alguém de Sur tivera acesso ao mundo dos Outros. Não sabiam ainda qual hipótese era a pior, ainda que tendessem à última, afinal de contas, dos Outros poderiam esperar qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, nada os surpreenderia. Agora, um Sur? Transitando pelos outros reinos? Vendo cores? Conspurcando-se com toda sujeira dos inimigos de Ur? Isto seria realmente difícil de aceitar.
Tão difícil que acabaram por aceitar que alguém do outro lado tinha entrado no reino. Não seria tão improvável com os recursos mágicos que dispunham que algum deles encontrasse uma entrada. E… Se acaso tinham feito isto apenas uma vez e apenas para deixar o bebê… Bom… Talvez fosse mais fácil esquecer, aceitar. Não entrariam em guerra contra os Outros por isto, até porque nem sabiam mais lutar.
Nesta discussão levaram boa parte da noite e o dia nascia enquanto ainda deliberavam. Ninguém deitou e quem já tinha deitado foi acordado. Após entrarem em um consenso informal a este respeito, começaram-se os debates sobre a criança. A este tanto, já saiam de suas casas e começavam a reunir-se à frente da Cala, onde por um destes acasos fortuitos, estava a praça central e muitos bancos.
Quem seria e porque a esconderiam em Sur? Parecia claro para todos, sem que se precisasse discutir, que o único motivo que um dos Outros poderia ter para deixar um recém-nascido em Sur seria ocultá-lo. Definitivamente a criança deixara de existir para os Outros, quando fora deixada em Sur. Ninguém nunca a veria e nem teriam dela qualquer notícia.
As hipóteses pipocavam: uma criança ilegítima, um rapto por vingança, uma órfã que ninguém desejava, uma filha do demônio, gerada e nascida apenas para ser levada a Sur e disseminar o mal. Esta ideia prevaleceu durante algum tempo, enregelando os corações e um princípio de levante começou, quando se pretendeu encontrar uma forma de devolver a criança para o outro lado.
Felizmente não perdurou. Além da dificuldade técnica de encontrar a entrada do outro lado, prevaleceu o bom senso. Afinal de contas, Ur não era imenso e seu poder incontestável? Ele jamais permitiria que um filho de Er fosse levado ao seio de seu reino. E ainda que assim fosse não deixaria que prosseguisse. Se o bebê fosse filho do demônio, certamente pereceria antes de fazer qualquer mal.
– Vivendo conosco, crescendo aqui, entre nós, não haveríamos de vencer a maldade de sua natureza e transformá-la em bem? – Alguém falou e todos concordaram. Evidente que a bondade de tantos seria mais forte do que o mal de um pequeno ser. Nada havia a temer.
Ali já estava Jaer, o Lure, o mais alto membro dirigente do reino, sua esposa, Elien, balançando a cabeça em concordância, no que foi seguido por todos os outros membros do conselho e depois pelos demais: os homens, as mães, os pais, as jovens, os jovens e até os velhos Onais.
– Esta criança há de ser tão amada por todos, que nenhum mal perdurará em seu coração. – Afirmou ele.
De forma que foram deixados para lá os motivos e a forma de ali ter chegado. O bebê seria adotado pelo reino.
Por mais que ardesse a ansiedade para ver o bebê, ninguém bateria na porta da Cala antes da hora. O Lure podia ser o dirigente, mas Ani era venerada. Qual deles não tivera suas fraldas trocadas por ela? Quem não recebera algumas palmadas por quebrar as regras? Não, ninguém, mas ninguém mesmo gostaria de enfrentar Ani.
Como ainda faltava um par de horas até que a hora da Cala abrir e o assunto principal já fora resolvido, as conversas se dividiram. Alguns ainda insistiam na aparência da criança, inventando caudas, chifres, língua partida e outros sinais demoníacos. Mas Ani tinha visto a criança nua e as mães viram seu rosto e compartilharam com outros. Era linda, bela como um anjo… Apenas a cor… É, a cor. O que fazer?
Concluíram que a cor não era importante. Vestiria uma thuga como todos. Seria como todos. E com o tempo até mesmo sua cor seria como a de todos. Cabeças balançaram em concordância. Sim, o bebê teria uma thuga e seria tão igual quanto eles.
O nome que receberia se tornou o próximo tema das conversas. Efetivamente, a nomeação era uma das cerimônias mais importantes da vida de um habitante de Sur, justamente por serem tão iguais. O nome era um fator de diferenciação. Mais do que isto. Ah, todo mundo sabe que nomes são fontes de poder. Dê um nome errado a uma pessoa e destruirá seu futuro. Óbvio.
Lógico que não seriam eles a dar um nome ao bebê. Um assunto desta importância não era resolvido por habitantes comuns e sim pela Suri, a sacerdotisa de Ur, sua voz, sua intérprete.
Eles podiam apenas imaginar. O que a Suri decidiria? Algum nome relativo à sua origem? Ou nada a ver com esta? Neste ponto houve uma divergência. Metade era a favor de manter a origem ligada ao nome, porque isto era o que ela era. Metade era contra. Alguém gostaria até mesmo de saber que fora abandonada, longe dos seus? Certamente que não. Então porque recordariam à criança por todos os dias de sua vida futura sua origem no mínimo constrangedora?
Haviam chegado a outro ponto importante. E nisto o Sure, o Sacerdote de Ur, foi claro: ninguém falaria desta noite no futuro. A criança viveria, cresceria e seria como eles. E declarou que esta noite e tudo relativo à origem da criança seria Tat daí para frente, independente do nome que a menina receberia.
Tat era a série de assuntos sobre os quais não se devia falar e se possível nem mesmo pensar. Eram temas considerados perigosos, normalmente relativos a coisas da outra vida, do mundo antigo, do Outro Lado, como cores – principalmente cores-, livros, música, artes profanas e o que mais fosse considerado mundano e não dedicado a Ur.
Enquanto isto, dentro da casa, Ani acordara muito cedo com o barulho das vozes na praça. Não abrira a porta porque existia uma regra, um horário a seguir. Certo é que poderia ter aberto uma exceção neste dia, assim como é certo que foi mais cômodo não abrir e esperar. Eles que discutissem tudo que havia para ser discutido antes. Desta forma pouparia muita energia e Ur sabia o quanto ela precisava se preservar. Era a mais idosa de todas as idosas, sabia que sua hora estava próxima, mas ainda não estava pronta.
Há muito pensava no motivo de Ur mantê-la viva além de todos com os quais nascera, vivera e ajudara a enterrar. Agora sabia que fora para proteger aquela pequena criança. Não tinha dúvidas de que ela precisaria mais dela do que qualquer uma das centenas que ajudara a criar.
Sentada na cama, ao lado do cesto onde a menina dormia, deixava-se ficar apenas observando-a com alento e encanto. Tão pequena – pensava. – Onde estaria sua mãe? Porque permitira esta separação? Seria indesejada realmente? Ou fora furtada e estaria agora sendo procurada com desespero? – Entristeceu-se ao imaginar a possibilidade, antes de afugentá-la da mente. O mais provável é que nunca soubessem. O que Ur tinha feito estava feito e não cabia a ela questionar e sim obedecer.
– Ainda bem que tinham a thuga. Era a roupa que todos usavam. Uma espécie de segunda pele que os revestia por inteiro, do fio de cabelo mais rebelde à ponta do dedão dos pés. Até mesmo os olhos ficavam sob a thuga, ainda que nestes locais fosse uma tela tão fina e transparente que era quase como se não tivessem nada sob os olhos. Uma película em alguns lugares e massa maleável em outros, conforme fosse necessário ou desejado, podendo ser modificada para parecer uma roupa.
Eram feitas a partir de um minério chamado Ká que primeiro passava por um processo químico que a tornava assim maleável e depois era trabalhada com a magia de Ur. Fora do corpo era apenas uma nuvem de fumaça, uma massa sem peso ou forma. Quando entrava em contato com o corpo, ganhava forma.
Existiam principalmente como fonte de calor. Em um mundo em que o sol não penetrava e o vento dos gigantes era incessante, o frio era uma constante. Nos primeiros tempos, os Surs usavam peles de animais. Eram pesadas, incômodas e nem sempre eficientes. Quando descobriram que o minério de Ká era sensível à temperatura ambiente foi questão de tempo até conseguirem encontrar a forma adequada. Nos dias mais frios ela se tornava mais densa, aquecendo-os e nos dias menos frios, ficava tão leve que era como se estivessem despidos. Mesmo em seu formato mais resistente nunca chegava a pesar ou incomodar.
Todas as thugas eram pretas, como o minério de Ká do qual era feita. O pensamento ou as mãos podiam dar-lhe a forma desejada, entretanto, para desestimular a vaidade usavam apenas as formas aprovadas pelo conselho: a de uso diário, a de uso nas orações, a das crianças na escola, de trabalho e algumas poucas para eventos pontuais, como morte, nascimento, as comemorações anuais, como o dia da paz, da separação de Sur, etc…
O bebê também teria uma thuga e esta esconderia sua cor e deixaria menos evidentes o tamanho e a cor de seus olhos, embora nada se pudesse fazer com relação ao formato das orelhas.
– O que era uma pena. – Considerou à lembrança daqueles imensos e belos olhos verdes. – Esta pequena bem poderia destruir alguns corações apenas com o olhar. – Sorriu à ideia.
E assim as horas foram passando. O bebê acordou, foi alimentado e trocado. Ani aproveitou para examinar atentamente a menina em busca de machucados ou qualquer marca que desse uma informação a mais. Uma pequena meia lua, ainda que minúscula, era visível claramente próxima ao seio esquerdo. Não conhecia este desenho. Talvez fosse uma marca de família, talvez apenas alguma cicatriz. Talvez tivesse algum significado, talvez não.
Nos panos em que estivera embrulhada, só viera o fecho que prendia as pontas ao embrulho, impedindo-o de abrir. Era feito no material vulgar dos Outros. Um círculo de metal dourado por cima e um fio de metal por baixo que se fechava a um aro na outra ponta. O círculo superior era fino nas laterais e mais grosso no centro. Dourado e fosco, sem qualquer inscrição no topo ou embaixo. Guardou-o com as mantas rosadas em uma pequena caixa feita de Ká.
O bebê agora estava enrolado à moda de Sur, avistando-se apenas a face. Quanto a isto nada poderia fazer. Já deviam saber de sua cor.
Quando deu a hora, levantou-se resignada e abriu as portas da Cala.
Dois dias se passaram. Era início da noite quando começou a cerimônia de nomeação da menina. Também nesta noite os gigantes estavam pacatos e quase não ventava. A lua permanecia cheia no céu, bela e serena observadora.
O povo entrava indolente na Casa de Ur. Sem pressa, porque ainda havia tempo, iam chegando à praça, paravam aqui e ali para rápidas conversas. Aos poucos a Casa foi enchendo e dentro prosseguiam as conversas, tendo como tema a menina, a cerimônia e o nome. Às oito horas ouviram o sino tocar três vezes e silenciaram.
Ani estava sentada à primeira fila de cadeiras do salão de reuniões, ladeada pelas suas assistentes, Alendra e Faya e segurando o bebê em seus braços, coberto por um pano leve tanto porque dormia quanto para impedir uma fila de curiosos querendo ver e tocar a criança.
À frente, em um patamar elevado, alguns móveis brancos: um púlpito, uma mesinha e algumas cadeiras. Foi para o púlpito que se dirigiu Suri, a Sacerdotisa de Ur.
Sua thuga era branca e em um modelo diferente dos demais: um vestido longo e drapeado. O cabelo estava trançado até abaixo da cintura e sua voz era suave e cálida quando chamou Ani, depois da breve anunciação do que se iria fazer naquele dia.
– Olá criança. – Disse sorrindo à pequena ao pegá-la em seus braços. A menina despertou, abrindo seus imensos olhos verdes, mas pareceu gostar da novidade e não chorou.
– Ah, mas que bela menina você é! – E esta parecia compreender e obedecer à voz que buscava acalmá-la enquanto a deitava na mesa e desnudava.
– Desculpe por isto, mas não precisa ficar preocupada. Quero olhar bem para você, para sentir seu nome, está bem? – Suri continuava falando na mesma entonação, hipnotizando a menina.
Seus olhos experientes viram os sinais dos outros, a cor, os olhos imensos, os cabelos ruivos e as orelhas pontudas sem aparente espanto. Analisou com vagar o sinal no peito e com mais vagar ainda suas mãos e pés, sempre acariciando e acalmando. Ao terminar o exame, embrulhou-a como antes e devolveu para os braços da Ani. Ajoelhou-se em frente a uma enorme tapeçaria onde Ur estava representado como um gigante com forma humana, tendo o planeta nas mãos. Ali permaneceu por vários minutos, murmurando palavras em língua desconhecida, suas mãos remexendo-se nervosamente, único indício destoante da impressão de calma anterior. Logo parou, silenciou e retornou à calma. Mais alguns minutos de silêncio e levantou, encaminhando-se até Ani. Parou junto à menina, olhou-a e sussurrou o nome em seu ouvido, baixinho demais para que alguém ouvisse. Parecendo satisfeita com a reação obtida, pegou-a no colo, voltou ao púlpito e em voz clara e nítida, anunciou:
– Liara, Aquela que Caminha com os Olhos de Ur, este é seu nome e significado.
– Liara. Replicaram a palavra às dezenas, de boca em boca. Olhos de Ur, Olhos de Ur? Olhos de Ur?! O burburinho ia crescendo até que Suri pediu silêncio e falou:
– Irmãos, por mais que não entendam, aceitem e peço-lhes que não questionem a vontade de Ur. Este é o nome que me foi dado, pelo qual Ele quer que seja chamada.
O Lure pediu licença e subiu ao patamar também. Em tom baixo, mas ainda audível, perguntou:
– Suri, com todo respeito a você, não haveria possibilidade de engano? Olhos de Ur? Em uma criança dos Outros? Não parece certo. – Seu tom era tímido, receoso e ainda assim firme.
– Lure, eu também estranhei e pedi confirmação, uma, duas, três vezes. É este o nome. Nenhum outro surgiu. Mesmo algumas possibilidades que havia pensado durante estes dois dias foram apagadas de minha mente. Foi dito claro e inequivocamente: Liara. E este é o significado do nome. – Também ela era parecia receosa, mas também firme.
O prefeito suspirou antes de dirigir-se à população:
– Vocês ouviram o desejo de Ur. Não nos cabe questionar. Ela será Liara, Aquela que Caminha com os Olhos de Ur. – E deu lugar para que Suri continuasse a cerimônia, no ambiente agora silencioso, ainda pasmo com o nome.
Uma assistente trouxe em uma bandeja branca uma pequena nuvem de Ká, que parecia ainda fumegar da forja, rolinhos de fumaça escapando. Não estava realmente quente. Era apenas este o comportamento das thugas virgens.
Suri depositou Liara na mesa, voltou a descobrir seu pequeno corpo. Pegou-a com as duas mãos e segurando-a a frente de seu corpo, disse:
– Pequena Liara, hoje nomeada por Ur. Ganhaste o direito a teu nome e à tua thuga. Eu te declaro legítima cidadã e membro de Sur. – Com um pequeno beijo na testa, mergulhou-a no minério de Ká, que imediatamente a rodeou, tomando forma de thuga e cobrindo seu corpo como uma segunda pele. A sacerdotisa ajudou a moldar a vestimenta, deixando-a rala no rosto, mãos e pés e deu-lhe o formato de um macacão no restante do corpo.
– Seja bem vinda e que Ur a proteja. – Ergueu e virou a menina para a plateia.
– Que a vontade de Ur seja feita – Disseram em uníssono e aplaudiram, conforme mandava o ritual.
Poderiam ter aplaudido com mais entusiasmo, mas Lure e Suri deram-se satisfeitos com o resultado e a cerimônia por encerrada. Os membros da sociedade de Sur levantaram e encaminharam-se para a saída, lentamente, recomeçando o burburinho.
Os três, Lure, Suri e Ani permaneceram no palco, observando em silêncio e preocupados.
– Que Ur a proteja – Disse Suri baixinho.
– Precisará, mesmo, a pobrezinha. – Concordou Ani. Conhecia seu povo. Tinham engolido o nome, como quem engole um sapo, cru e a seco, mas não concordavam. Isto era evidente.
– Ninguém se atreverá a nada. É a vontade de Ur. – Mencionou o prefeito, com ar cansado.
Os três despediram-se, ainda preocupados.
Liara cresceu metida entre a cozinha da Cala e o quarto de Ani a quem jamais deixava. Aos poucos as pessoas acostumaram a ver uma em companhia da outra, inseparáveis. Ani caiu de amores pela pequena, como jamais antes por outra criança da Cala. Não confiava em ninguém mais para cuidá-la e fazia questão de supervisionar pessoalmente tudo que lhe dizia respeito, receosa de que algum maltrato ou pouca vontade a fizesse sofrer.
Não percebia que com este comportamento somava mais um à lista de pecados imperdoáveis da menina aos olhos dos cidadãos de Sur: ser a predileta da Ani era ainda mais indigesto do que seu nome ou sua origem.
Em um ano deu os primeiros passos e na mesma época disse “Iá” à guisa de “mamã” pela primeira vez, enchendo a anciã de um orgulho tardio que custou a esconder.
Aos dois já era a mais consumada tagarela da Cala e aos três atormentava todos com seus infinitos porquês.
– Iá, porque o sol é branco? – Porque venta? – Porque nossas roupas são pretas? – Porque vocês são grandes e nós pequenos? Ur tem cabelos também? – Esta última perguntou quando decidiu cortar seus cabelos curtos e foi impedida pela Ani.
Aos quatro era quase impossível contê-la dentro da Cala. Subia em todos os móveis, abria todas as gavetas, desdobrava roupas e panos, mexia nas panelas ao fogo e deixou todos doidos.
Aos cinco ganhou acesso ao exterior e embora devesse se restringir à praça e à Casa de Ur, foi impossível mantê-la por perto. Ao menor descuido, desembestava para longe e perdiam horas em sua busca, até encontra-la em cima de alguma árvore ou pedra nos arredores da cidade.
Sur era a maior cidade do reino, talvez a única que merecesse este nome. Ao seu redor espalhavam-se pequenos vilarejos ou agrupamentos, às vezes com uma família ou duas apenas. Fora de sua área de influência os vilarejos espaçavam, escasseavam até o ponto de só existirem mais próximos às minas alguns acampamentos simples dos mineiros e suas famílias.
O solo era arenoso em alguns lugares e empedrado em outras. Contava-se nos dedos de duas mãos os locais com terra de verdade. A vegetação era rala, praticamente inexistente por conta deste solo infértil e também do sol pálido e fraco. Uma ou outra espécie resistia, como se desafiando as leis da natureza, basicamente ervas que seriam exterminadas e consideradas daninhas em outros locais. Ali cresciam e estendiam-se por onde desejassem. Algumas árvores e plantas sobreviveram à mudança de clima, foram cultivadas e multiplicadas e vez por outra apresentavam suas flores pálidas.
Há alguns quilômetros da capital estava o único rio do reino, que embora fosse ralo e estreito, era a maior fonte de diversão da cidade. Uma pequena cascata, simples queda d’água entre algumas pedras era o parque de diversões de todos, lugar de pesca, encontros, fogueiras, diversão, alegria. Sur estava na encosta de uma serra não muito alta. Subindo uma trilha áspera por umas duas horas, chegava-se à Pedra de Ur, o outro ponto digamos turístico de Sur. Uma imensa pedra com formato levemente parecido com um coração da qual se podia avistar toda a cidade e o céu era mais próximo. Ali construíram uma pequena capela para Sur.
Era para estes dois lugares que Liara corria, sempre que possível. Era fascinada com as águas do rio e também pela trilha da Pedra de Ur.
Aos sete anos conhecia e chamava a todos por seu próprio nome. Frequentava a venda de Koná, a farmácia de Leda, a Casa de Ur de Suri e conversava com os adultos com a mesma desenvoltura de uma adulta.
Na Cala era a pequena líder de uma gangue, formada quase exclusivamente de garotos, como se considerava também. Brincava de bola, de estilingue e lutava tão bem quanto qualquer um deles. Torcia o nariz com desdém às meninas e à menção de que deveria se comportar como elas. E os meninos seguiam-na como se fossem o séquito de uma rainha, obedecendo cegamente suas ordens. Isto porque era quem tinha mais imaginação para imaginar brincadeiras e estar ao seu lado era garantia de diversão.
Vezes sem conta foram castigados pelas travessuras que ela inventava, como a vez que deram sumiço na thuga de Faya, inimiga declarada de Liara desde o início. Ou quando fizeram piquenique no telhado da Cala. Ou ainda quando deram forma de piratas às suas thugas e por pouco não conseguiram realizar o plano de descer o rio Lenx em uma jangada feita com galhos amarrados.
Nesta ocasião, Liara e seus amigos ficaram uma semana inteira de castigo dentro da Cala e ela chorou inconformada, sem entender ou aceitar que correria qualquer tipo de risco na empreitada.
Ani lidava com aquele excesso de imaginação e energia de forma tranquila e pacata, como se já o soubesse e esperasse. Não deixava de ser dura, mas era sempre com carinho e amor que dava suas broncas. E Liara amava sua Iá mais do que tudo.
Estava próxima dos oito anos e seu tempo na Cala acabara.
A Cala tinha uma dupla função em Sur. A primeira era o desenvolvimento mental e espiritual das crianças até os sete anos, período considerado mais determinante, os anos em que suas mentes e espíritos estavam totalmente limpos e abertos para receberem influências. Para que os pais não ensinassem de forma errada, para estimular todo o potencial religioso e mágico permaneciam na Cala até completarem sete anos.
Aprendiam a ver a magia como uma capacidade natural e inerente a todos. Eram educadas e introduzidas em todas as regras e normas da educação e, principalmente, eram ensinadas a amar e a honrar Ur.
As mães podiam trabalhar na Cala, ajudando a cuidar das crianças e assim mantendo-se próximas ao filho ou filha e amenizando a separação. As mães de primeiros filhos normalmente deixavam seus afazeres anteriores e ficavam na Cala todo o dia, retornando às suas residências somente à noite. As mães de segundos filhos normalmente retornavam às suas vidas, visitando a Cala frequentemente. O elo entre as crianças e seus pais era estimulado, mas não muito. Isto porque a segunda função da Cala era justamente a redistribuição familiar.
Os Surs não eram muitos, talvez uns dez mil no total. Não se misturavam a outras raças. Toda e qualquer criança era preciosa para a manutenção da sociedade e, como algumas famílias tinham muitos filhos e outras não tinham nenhum, poderia haver desequilíbrio na sociedade, pois as famílias com mais mãos, fatalmente teriam mais recursos à sua disposição.
Desta forma, o conselho instituiu as famílias de um filho. Todas as crianças iam para a Cala até completarem sete anos e depois, caso fossem o primeiro filho, eram devolvidas aos seus pais, se estes assim desejassem. Se não quisessem ou se já tivessem um filho, a criança era destinada a uma família sem filhos. Normalmente todos aceitavam bem o sistema, até porque era relativamente flexível. Vez por outra, alguns pais insistiam em retomar um filho ou filha, mesmo já tendo um. Como não havia realmente uma grande escassez de crianças, poderia ser permitido. Não era muito comum, entretanto.
Os Surs não passavam necessidades, mas todos, homens e mulheres, trabalhavam duramente e era difícil conciliar a criação de um filho com o trabalho. Dois filhos implicavam em dificuldades extras. As mulheres não ficavam exatamente entusiasmadas com a ideia. E, como o trabalho era distribuído igualmente, também não havia diferença entre crianças femininas e masculinas, sendo ambas desejadas igualmente. Mais comum era um casal querer um filho de um sexo específico e nascer de outro sexo. Neste caso, podiam entregar o primeiro à outra família e tentar outro do sexo que desejavam. Sempre estariam próximos aos filhos naturais e tinham a certeza de que estariam sendo bem cuidados na outra família. Não era uma separação total e definitiva e este era a chave do sucesso do programa que permitiu que os Surs sobrevivessem e se mantivessem ao longo de séculos e séculos.
Entre os sete e os oito anos passavam por uma cerimônia importante na qual eram devolvidos a seus pais naturais ou destinados à outra família. Nesta cerimônia anual, recebiam uma destinação ou aptidão natural, para o qual deveriam ser educadas ou treinadas nos próximos anos.
As funções de trabalho não eram muitas. Todas envolviam o uso de magia, de forma que era educação básica, embora com variações e algumas funções exigissem mais especialização do que outras.
Existiam os trabalhadores rurais, que cuidavam das plantações, dos rebanhos de cabras ou da mineração, os construtores, responsáveis por criar e dar forma às coisas, os comerciantes de alimentos e objetos e os sábios, área ampla que abrangia todos que utilizavam a escrita em suas ocupações, como os professores, os que escreviam os livros que elas estudariam ou que mantinham preservados os registros históricos da sociedade, o prefeito, as mães da Cala, e finalmente, os religiosos, que se ocupavam exclusivamente da vontade de Ur, como a sacerdotisa, o sacerdote e seus assistentes.
Embora não houvesse hierarquia financeira e ganhasse-se praticamente o mesmo em qualquer cargo ou função, de forma que todos tivessem igual acesso às coisas e vivessem basicamente com os mesmos recursos, havia certa hierarquia social entre as classes, quando o mais alto grau era o religioso, considerado o mais honrado e mais baixo e o menos apreciado era dos trabalhadores rurais. O trabalho de sacerdotes, professores e comerciantes era mais suave do que o dos trabalhadores braçais.
As cerimônias eram objeto de especulação e discussão, antes e depois. Ninguém gostava quando era designado para os trabalhos braçais, embora fosse a classe mais numerosa. Era natural que os pais professores esperassem igual futuro para seus filhos, que os mineradores ou plantadores sonhassem com vida melhor para os seus e assim por diante. Entretanto, a vontade de Ur sempre era aceita.
Naquele ano, todos os olhos se voltavam à designação da pequena Liara. Certamente que não poderia, seria inaceitável, diziam, que fosse designada para a classe sacerdotal. Esperavam e desejavam que fosse para a classe trabalhadora. Pois não era como um garoto, a “queridinha” da Ani? Não vivia suja, metida na terra? Que fosse cuidar das plantações. Seria justo, apenas justo, já que tiveram que aceitar aquele nome, sem contar… Nisto interrompiam a fala. Era tat. Não se mencionava sua origem, embora ninguém esquecesse.
Ani estava consciente do problema, assim como Suri e Lure. Estes dois também foram conquistados pelo espírito fogoso e indomável de Liara, embora procurassem não demonstrar. Liara descobrira há tempos que Suri era uma fonte inesgotável de conhecimento e vivia enfurnada na Casa de Ur, enroscada em sua saia e perguntando, perguntando, perguntando.
Com o Lure tinha uma relação mais comedida. Acostumou-se a correr para ele em busca de proteção, quando tinha feito alguma arte e temia a reação de Ani. Mas antes disto, a amizade começou mesmo por partilharem do mesmo amor pelos animais e natureza.
Em uma de suas escapadas, Liara encontrou Lure à beira do rio, pescando. Começou a sessão de perguntas intermináveis, mas o Lure não respondeu nenhuma, apenas fez sinal com os dedos na boca, para que ficasse em silêncio. Disse que espantaria o espírito da Fada do Rio e que os peixinhos iriam embora.
A menina arregalou os olhos, pois nunca ouvira falar na Fada do Rio. Relutantemente, sentouse quieta e esperou. O homem riu por dentro, ansioso para contar à Ani e prolongou ao máximo a pesca, apenas para ver quanto tempo ela aguentaria esperar em silêncio para ouvir a estória.
Liara esperou, esperou até que acabou adormecendo encostada a um tronco de árvore e ele teve que leva-la dormindo para casa. Nos próximos dias, Liara montou guarda no local até que ele apareceu novamente. Mais uma vez pediu silêncio, mas trouxera outra vara de pesca que lhe entregou e ambos ficaram em silêncio, esperando.
Quando o peixe mordeu a isca de Liara, ajudou a puxar e ela não se continha de alegria, embora depois tenha chorado quando percebeu que estava machucado na boca e que morreria. Devolveu o peixinho ao rio, quando o Lure disse que se o fizesse ele ficaria curado e viveria.
Na volta, contou-lhe a estória da fada. Inventou, na verdade. Porque não havia estória nenhuma.
– Há muito, muito tempo atrás, existiu uma jovem muito bonita e doce que achava que era um peixe e não uma pessoa. Desde criança preferia estar na água de que na terra. Ela achava que podia respirar dentro d´água e não se conformava em não poder. Enfiou na cabeça que suas guelras estavam apenas enferrujadas e que se fizesse bastante esforço conseguiria abri-las. Mergulhava e ficava embaixo d’água o máximo de tempo que conseguia antes de emergir. Um dia ela não voltou à tona e seu corpo nunca mais foi encontrado. Todos dizem que ela conseguiu abrir as guelras, começou a respirar como os peixes e até hoje vive no fundo do mar.
– Ah, Lure, deve ser muito gostoso viver dentro do rio. Será que tenho guelras também? – Suspirou Liara ao final da estória e apertou mais sua mãozinha dentro da dele.
Na semana seguinte, Liara já estava sentada à beira do rio, quando ele chegou. Chorava desconsoladamente.
– Ei, o que houve?
– Íris. Ela afogou-se.
– Quem é Íris? – Ele tremia, imaginando que menina teria morrido e como daria a notícia para os pais.
– Minha boneca. Fui lhe dando um banho porque ficou suja depois que brincamos de guerra de areia ontem. Ela escorregou da minha mão e afundou. Mergulhei um monte de vezes e não a encontrei. Deve estar tão assustada lá embaixo! Óh, Lure! – Jogou-se em seus braços, chorando.
– Ei, calma. Bonecas não ficam assustadas, sabia? E lá embaixo tem um monte de outros brinquedos que se soltaram dos seus donos. Acho que deve ter uma cidade inteira lá e ela deve estar brincando muito.
– Ah, Lure. Você acha?
– Tenho certeza! E tem mais. Um construtor meu amigo contou esta semana que está fazendo uma boneca linda. Ela é toda feita do mais negro Ká, com um vestido de Ká cinza, parecido com um teu. E ele disse que ela vai falar Mamãe para a menina que for sua dona. Ele me perguntou se eu sabia de alguma menina que precisava de uma filhinha como ela.
– Eu? – Suspirou esperançosa.
– Vou falar com ele. Vai ter que ter paciência. Ele já fez todo o projeto, mas ainda está começando a moldar o Ká.
– Lure! Obrigada! – E abraçou-o novamente, Íris totalmente esquecida. O Lure riu e pensou em como seria bom se a vida fosse tão simples também para os adultos.
Descobriu-se aguardando sua companhia na pescaria semanal e inventava novas estórias a cada semana. Falou das fadas das estrelas, das pedras, das árvores. Contou a estória dos gigantes do vento. Talvez Liara tenha percebido que a maior parte era fantasia, mas gostava assim mesmo e tornou-se um ritual este encontro semanal. Aos poucos passaram a outros temas de conversa e Liara acostumou-se ao silêncio durante a pesca. O Lure percebeu que nestes momentos ficava pensativa, enfileirando em sua mente todas as perguntas que faria no caminho. Ainda assim eram quase milagrosos aqueles momentos em que ficava quieta e parada. Ani só acreditou quando viu com seus próprios olhos, escondida atrás de uma enorme pedra.
Ela sempre perguntava por sua boneca e ele falava sobre seu progresso. Estava fazendo o tronco, as pernas, os pés e assim por diante.
Ani, Suri e Lure amavam Liara, mas sabiam que nenhuma família de Sur a receberia como filha e estavam conscientes do outro problema, da tensão que poderia resultar com sua designação. Infelizmente não podiam fazer nada com relação ao trabalho. Nisto Suri não tinha qualquer interferência, muito menos os outros dois. Ur designava e ela apenas anunciava seu desejo. Nenhum dos três desejava que fosse designada para trabalhos braçais. Com sua inteligência arguta e rápida seria um desperdício. Ao mesmo tempo… Talvez fosse melhor para a sociedade se assim fosse.
– E quanto à sua futura família? – Perguntou Ani. Estavam tomando chá nesta tarde, nos aposentos privativos de Suri, na Casa de Ur.
– Sondei algumas mulheres, algumas que gostam de Liara. – Falou Suri. – É inútil. Nenhuma delas aceitará Liara como filha. Até gostariam, mas temem pela perda de amigos, o isolamento. Cada uma tem um pretexto totalmente aceitável para recusar.
– Isto é um absurdo! Liara nunca fez nada de anormal. É uma menina saudável, inteligente, bonita. Talvez apenas com um pouco mais de energia, o que não justifica esta atitude! – As mãos de Ani tremiam um pouco ao depositar a xícara na mesa, tamanha revolta.
– Não é por ela, sabe disto. É sua origem, depois o nome. Eles têm medo dela. Não sabem o que acontecerá no futuro… – contemporizou o Lure. Ele detestava conflitos de toda espécie. – “Jamais deveria ter sido escolhido como Lure. Gostaria de ter sido professor e passar os dias tranquilamente ensinando às crianças.” – Suspirou ao pensamento.
– E temer o desconhecido lhes dá o direito de negar um lar à menina? É assim que entendem a vontade de Ur e demonstram sua bondade? – Suri já não tinha qualquer problema em encarar conflitos, felizmente, ou nunca conseguiria exercer sua função.
– Posso determinar uma família para ela. Terão que obedecer. – Declarou Lure.
– E de que adiantaria? Acha que Liara teria amor? Carinho? Cuidados? – Suri até se levantou, de tão agitada com a ideia.
– E se continuasse na Cala? Toda regra tem sua exceção. – Lure suava já e pensava no quanto gostaria de escapar da sala e ir pescar.
– Para saber que não foi aceita por ninguém? Para conviver com o repúdio durante toda sua vida? Não! – Suri eliminou a possibilidade.
– Escutem… – Disse Ani que estava já há alguns minutos em silêncio. Suri sentou-se para ouvir.
– Eu estou velha, há muitos anos no comando da Cala. Vocês sabem que ninguém ficou tanto tempo no cargo. Estou cansada. Há tempos venho pensando em parar. Passar o cargo para alguém jovem, que tenha mais energia para lidar com estas crianças de hoje. – Falava baixinho, como quem receia a desaprovação.
– Mas, Ani, a tradição é esta, que cada uma fique no cargo enquanto vive e somente depois seja substituída. – Lure não via o que poderia resultar daquela conversa, exceto mais problemas.
– Tenho treinado Alendra e Faya há muitos anos. Ambas podem me substituir, embora eu escolha Alendra, pela doçura de seu coração. Faya tem certa dureza no seu e não é bom para as crianças.
– Mas, se passar o cargo para Alendra, o que fará? – Suri já entrevia a proposta.
– Vou morar em outro lugar com Liara. Cuidaremos uma da outra. Escutem, durante todos esses anos tive meus recebimentos como responsável pela Cala, mas nunca tive muitas despesas. Não tenho parentes, filhos. Guardei a maior parte. Posso viver destes rendimentos. Assim, não haverá prejuízo para ninguém. Alendra receberá o salário da Cala e eu abro mão do que teria direito. O que acham?
– É uma ótima idéia, Ani. – Arrematou Suri. – Mas, tem certeza de que não será demais para você, cuidar sozinha de uma casa e de Liara, com toda sua energia?
– Nós conseguiremos. Liara ajudará, tenho certeza. Nós nos arranjaremos. – E ambas olhavam ansiosas para o Lure. Este suava ainda mais agora. Sem dúvida o problema ficaria resolvido, mas… O que diria sua esposa e os outros, por estar ajudando a menina?
– Oras, que seja. Danem-se! Ur nos ensina todos os dias sobre o amor, o perdão, a aceitação. É nosso dever cuidar da menina que ele mesmo disse caminhar com seus olhos. – Exclamou. As duas mulheres se olharam sorrindo.
– Ainda tem um problema, Ani. – disse ele. – Onde morarão?
– A cabana do pobre Thaz seria perfeita. Desde que faleceu está desocupada, não é? – Perguntou Ani.
– Sim, mas… Tem certeza? É um pouco longe da cidade e ele era apenas um pastor de cabras. É pouco mais do que uma tapera.
– Será perfeita, não se preocupe. Posso chamar alguns construtores para melhorar o que for possível, talvez acrescentar um quarto. Aliás, seria melhor se você fizesse isto por mim, Lure. Para não haver comentários antes da hora.
– Sim, posso fazer. É parte de minhas funções. É normal que queira dar um destino para a casa. – E eu posso encomendar tapetes bem bonitos para todos os ambientes. – Emendou Suri.
– E também precisaremos de utensílios, roupas, estas coisas. Se puderem providenciar, lógico que pagarei por tudo.
– Claro que sim, Ani. Não se preocupe, falta ainda um mês para a cerimônia. Até lá nós providenciaremos tudo e sua casa e de Liara será quente, aconchegante e acolhedora. – Suri realmente gostava destas arrumações e conhecia os melhores artesões.
– Obrigada, amigos. Sabia que podia contar com vocês. Faria isto mesmo sem apoio, porque sei que é o que Ur deseja e também o que eu quero, mas confesso que estava um pouco receosa de ter que enfrentar tudo e todos sozinha.
– Também estou contente por encontrarmos uma solução. Realmente é o que deve ser feito. – Lure estava já quase esquecido da reação que enfrentaria. – Deixaremos para anunciar sua saída da Cala no dia da cerimônia.
Despediram-se satisfeitos e aliviados.
Liara e dois de seus amigos conversavam sentados no telhado, balançando as pernas e jogando pedrinhas lá embaixo. Tinham apostado quem atirava mais longe e Liara ganhara, como sempre.
– Não é justo, Li, que você ganhe sempre. – Reclamou Ilo, um garoto mirrado.
– E que culpa tenho se vocês são fracotes? – Retrucou ela.
– E você é uma boca suja. Quero só ver que família vai receber você. – Falou o outro garoto, Raed.
– Aposto como não conseguirá nenhuma. – Emendou Ilo, chateado.
– Do que estão falando? – Perguntou Liara confusa.
– Não sabe? Nós só ficamos na Cala até os oito anos, no máximo. Amanhã haverá a cerimônia de retorno. Eu e Raed voltaremos para a casa de nossos pais. A maior parte vai para a casa dos pais verdadeiros.
– É, mas Abia e Endi vão para a casa de parentes afastados. Os pais deles já tem um filho.
– E eu? – Perguntou Liara.
– Você não vai para lugar nenhum, porque ninguém quer uma peste de boca suja como você. – Soltou Ilo.
– Está mentindo! – Liara bateu nele com as mãos fechadas antes de levantar-se e sair correndo enquanto eles riam.
– Iá, Iá! – A menina chamava seu nome e quando a encontrou afundou o rosto em suas saias, abraçando suas pernas.
– Ei, o que houve? – Ani agachou-se para limpar seu rosto.
– Iá, é verdade que temos que ir embora e que ninguém quer ficar comigo? – Mal conseguiu falar entre os soluços.
– Mas quem disse esta bobagem? – Enquanto falava Ani encaminhava-as para seu quarto, onde poderiam conversar longe dos muitos ouvidos.
– Foi Raed e Ilo confirmou.
– Ah, aqueles meninos! Já pedi tantas vezes para ficar com as meninas, querida.
– Eu sei, mãezinha, desculpa. Mas é verdade?
– De acordo com a tradição, as crianças só ficam aqui até os sete anos. Depois voltam para suas famílias.
– Mas, Iá, mamãe morreu, não foi? E papai também. Devem ter morrido, porque nunca ouvi falar deles. Você sabe, Iá?
Ani praguejou internamente pelas mentiras que teria que dizer e optou por uma evasiva.
– Você gosta de mim?
– Iá, eu adoro você.
– Gostaria que eu fosse sua mãe?
– Sim, Iá. Mas você é?
– Vou te contar um segredo, mas tem que prometer não falar disto com ninguém, até que eu conte, está bem?
– Sim, Iá. Eu prometo. – E beijou os dedos em cruz como promessa.
– Nós duas vamos mudar para outra casa, só nossa. E viveremos nela como mãe e filha. Que tal?
– Verdade??? – A menina abriu um grande sorriso, apertando-a em seus braços.
– Sim. Você vai gostar disto?
– Ah, Iá. Vai ser muito bom. Prometo ser a melhor filha de todos! – Disse muito séria, antes de irromper em mais beijos e abraços, fazendo Ani rir, divertida.
– Olhe que vou cobrar. E agora, limpe este rosto e vamos arrumar suas coisas. Depois de amanhã iremos para nossa casa. E também levaremos os animais se prometer cuidar deles sozinha.
– Oba! Pode deixar, Iá. – Disse a menina, com um sorriso que ia de ponta a ponta.
– E não se esqueça de não contar a ninguém. – Emendou Ani colocando seus poucos pertences em uma mala.
À noite, estavam já deitadas, Ani quase dormindo, quando Liara perguntou:
– Iá, quem são meus pais de verdade?
– Durma querida, outra hora conversamos sobre eles. – E demorou a adormecer, pensando no dia em que teria que contar a verdade para a menina.
Atrás do palco, Alendra e Faya organizavam as crianças com mais de sete anos que participariam da reunião.
– Quietos todos. A cerimônia vai começar. Disse Alendra, pouco antes de ouviram a voz da Suri:
– Meus irmãos, estamos reunidos hoje porque nove filhos de Ur retornarão à casa de seus pais ou ganharão uma nova família. Antes de irem para suas casas, cada um deles receberá de Ur sua designação de trabalho futuro, para o qual começarão a ser treinados e estudarão a partir de agora.
A plateia aprovava as palavras iniciais em silêncio.
– Antes de iniciarmos, quero chamar nossa querida Ani ao palco, para algumas palavras.
Ani subiu ao palco. Podia ver que estavam ansiosos pelo que diria. Não era tradição que o fizesse, mas imaginavam que talvez fosse pedir pela menina, para conseguir alguma família.
– Há mais de 70 anos, subi a este palco para minha própria designação. Quis a bondade de Ur designar-me para a Cala e desde que tive idade suficiente tenho ocupado este cargo que procurei desempenhar com toda minha capacidade.
Aplausos irromperam, emocionando a Ani. Ela fez um gesto com a mão, pedindo silêncio para continuar.
– Obrigada. Sinto-me muito feliz com a certeza do dever cumprido. Há algum tempo venho sentindo que passei já da validade…
Agora irrompiam protestos da plateia.
– Agradeço, queridos amigos, mas a verdade é que estou já muito velha. Sinto que minha hora se aproxima, estou fraca e cansada. Sinceramente acredito que mereço alguns anos de descanso antes de partir para o paraíso que Ur nos promete. – Pediu silêncio ao previr novos protestos.
– Durante os últimos anos tenho treinado duas jovens como minhas sucessoras e neste momento desejo passar o cargo para uma delas, sem desmerecimento da outra e apenas porque somente uma pode ocupar o posto. Alendra, venha cá.
A moça entrou, constrangida e chorosa.
– Ani, não! Por favor, fique conosco. Faya e eu podemos cuidar de tudo, mas fique conosco!
– Não, Alendra. Não seria justo com vocês, não devem permanecer à minha sombra. Sei que tem ideias novas para a Cala e deve sentir-se livre para fazer todas as modificações que julgar necessárias.
– Mas, Ani… – A velha senhora colocou um dedo em sua boca e disse:
– Alendra, neste momento, eu te nomeio para o cargo de responsável pela Cala de Sur. Você aceita?
– Sim, Ani. Prometo fazer tudo o que puder para honrar sua confiança. Obrigada.
Ani tirou o anel da Cala de seu dedo e colocou-o no dedo anular da moça.
Os cidadãos de Sur, ainda um pouco chocados, aplaudiram. Ani abraçou Alendra e desceu com ela para as cadeiras da primeira fila, de onde acompanhariam o restante da cerimônia.
– Uau, que noite! Que surpresa! Ani sempre será nossa mãe, não é verdade? – Sims ecoaram de todos os lados, juntamente com nova salva de palmas à frase de Suri. Ani teve que levantar e agradecer até cessarem.
– Dando prosseguimento, temos aqui nove crianças que hoje retornarão ao seio de suas famílias ou que ganharão novos pais. Faya, por favor, traga-os.
As crianças surgiram em fila indiana seguindo Faya. Se esta estava aborrecida pela nomeação de Alendra, não o demonstrava. Elas pararam aos fundos, um ao lado do outro, virados para a plateia.
Uma a uma as crianças foram chamadas pelo nome e foi dito para qual lar iriam. Cinco voltariam para seus pais naturais e quatro para pais adotivos. Os lares já haviam sido arrumados de antemão e foram apenas anunciados. A quinta e última criança era Liara.
– Liara, Aquela que Caminha com os Olhos de Ur. Sabemos que muitos aqui anseiam por tê-la como filha, por amor à vontade de Ur, mas apenas uma poderá ser sua família. – Suri não resistiu à pequena provocação. Quis dar à pequena aquela recompensa, mesmo que ilusória, de ter sido disputada e aos cidadãos, uma cutucada nas crenças de cada um.
– Liara, você foi reivindicada como filha de Ani. Você aceita-a como mãe?
A plateia ficou muda, percebendo agora o verdadeiro motivo da transferência de cargo.
– Iá já é minha mamãe, Suri. – Disse a menina, feliz.
– Que assim seja feito, de acordo com a vontade de Ur. – Falou Suri, encerrando esta parte da cerimônia.
Liara voltou a seu lugar junto das outras crianças.
– Agora passaremos à designação de cada uma delas. Como é tradição, nos últimos dias, estiveram comigo, respondendo às questões de Ur. Suas aptidões naturais foram levantadas, suas capacidades testadas e agora Ur nos dará as respostas de cada uma.
– Raed. – Chamou o primeiro menino. Ele postou-se à sua frente. Suri fechou os olhos, com a palma da mão espalmada acima de sua cabeça. Quando os abriu, após alguns segundos anunciou:
– Você será um de nossos honrados mineiros, de acordo com a vontade de Ur. – Ele fez uma pequena reverência e voltou a seu lugar. Ouviu-se um discreto suspiro vindo dos pais dele, certamente desapontados.
– Laa. – A menina veio e foi nomeada futura mãe da Cala. Escutaram-se ruídos de aprovação. Desde o início a menina era a mais maternal de todas e não se esperaria outra designação para ela.
– Ilo. – O menino foi designado para comerciante, com aprovação. Era muito esperto para qualquer outra função. Seus pais sorriram.
E assim cada criança foi recebendo sua designação com sinais de aprovação ou desapontamento por parte da plateia.
– Liara. – Ela veio nervosa. Não entendia o que estava havendo. Ninguém lhe contara nada sobre isto. Parou junto à Suri e olhou-a com os olhos cheios de interrogação.
– Feche os olhos, menina. – Suri repetiu o ritual. Embora na aparência estivesse calma, interiormente tremia, fazendo uma prece silenciosa pela sabedoria de Ur. Na plateia Ani procurou as mãos de Alendra e também fez uma prece. O silêncio era pesado. Lure se contorceu em sua cadeira, ajeitando a thuga na garganta, sentindo falta de ar. Esperava não ter que intervir caso o pior ocorresse.
– Você será construtora de artefatos. – Suri suspirou aliviada, juntamente com a plateia.
Ur fora realmente sábio. Os construtores usavam todo tipo de habilidade manual e técnica aliada a um profundo conhecimento de magia para construírem objetos que tornavam a vida dos Surs mais suáveis. Era uma classe mais elevada que os trabalhadores, mas não tanto quanto a dos professores e sacerdotes. Seria perfeita para Liara, com sua sede de conhecimento e mente inquieta.
Embora desejassem que ela fosse designada para as minas ou plantações, os habitantes de Sur podiam aceitar isto.
Suri encerrou a cerimônia, convidando a todos para o salão de recreações, onde bebidas refrescantes, doces e salgados aguardavam.
Quando todos saíram, levou Liara até a Ani.
– Parece que tudo correu bem. – Falou.
– Graças a Ur e sua sabedoria. – Concordou Ani. – Está contente, Liara?
– Sim, Mãezinha. Podemos ir para casa agora?
– Amanhã. Hoje ainda iremos dormir na Cala. Tenho que fazer alguns arranjos. – Respondeu a mulher, emocionada. Depois de tantos anos, de tantos filhos postiços, agora já no final de sua vida, pela primeira vez era chamada de mãe. – “Obrigada, Ur.” – Disse em pensamentos.
Faya entrou em seus aposentos.
– Ani, vim despedir-me. No final da reunião recebi um convite para assumir o posto na Cala de Leru e aceitei.
Leru era a segunda maior cidade de Sur, distante quase um dia a oeste, próxima a várias minas de Ká. Embora fosse considerada grande, não passava de um agrupamento desordenado de casas, principalmente de comércio, que foram surgindo para atender às necessidades dos mineiros.
– Faya, desculpe. Infelizmente só podia escolher uma de vocês.
– Não precisa se desculpar. Eu entendo. E em Leru precisam de mim, talvez mais do que precisariam aqui.
Embora suas palavras fossem de aceitação, algo em seus olhos e em sua expressão, não combinava com as palavras. Havia um brilho de ferocidade que fez Ani sentir um breve calafrio.
– “Talvez seja impressão.” – Pensou Ani, antes de despedir-se da jovem e desejar-lhe sucesso.
Na manhã seguinte, quando avisaram que todos os animais de Liara haviam morrido ou escapado porque alguém abrira a porta do depósito em que ficavam e algum animal selvagem entrara, Ani viu-a chorar de tristeza, pensou em Faya.
– “Que Ur permita que eu esteja enganada.” – Rezou.
A casa que fazia parede com uma pequena encosta e não era particularmente diferente de nenhuma outra, mas quando Liara a viu pela primeira vez tornou-se única. Os olhos da menina tornaram-se ainda maiores ao observar e fixar-se em todos os detalhes.
– Iá, é perto do rio!
– Agora poderá treinar para desenvolver suas guelras todos os dias. – Respondeu ela, rindo à lembrança das tentativas frustradas que a menina fazia desde que ouvira a estória da Fada do Rio.
– E tem uma árvore! E um balanço! Ah…
– Sim, e você pode subir nela e passar para o telhado e dele para o topo da encosta, sua macaquinha.
– Eu posso? – Perguntou incrédula.
– Se prometer que terá cuidado. – Ani sabia que seria impossível impedir e o mais razoável era tentar controlar apenas. – Lá em cima fizemos uma pequena casinha para você, mas também há uma escada. Veja. E mostrou-lhe a escada de cordas que descia do telhado até o chão. – Há outra escada escavada na encosta, para subir ao topo.
– Uma casinha? Só minha? – Subiu pela corda, como Ani imaginara. Também construíra parapeitos no telhado, de forma que Liara estaria em segurança lá em cima. Ani sorriu ao ver seu contentamento.
A casinha em cima do telhado consistia em um aproveitamento de um nicho entre dois níveis e a chaminé do fogão. Os construtores haviam feito uma terceira parede e concluído com uma porta rústica. Dentro apenas um tapete no chão e alguns ganchos nas paredes. Para Liara não seria melhor se a tivessem presenteado com um quarto em um palácio. Desde que se entendia por gente, gostava de escalar e subir em árvores, telhados e tudo que fosse alto. Gostava da solidão destes lugares. Só quem já morou em uma casa com dezenas de pessoas falando alto e andando de lá para cá sabe entender a importância de um pouquinho de silêncio.
Só depois de exclamar vários ohs, tapando a boca com a mão é que voltou ao chão, novamente usando a escada.
– Iá, obrigada! – Disse envolvendo suas pernas.
– Oras… Besteira. – Disse ela, saboreando aquele momento. – Vamos entrar? E abriu a porta, deixando que ela entrasse na frente.
O primeiro ambiente era uma sala que fazia meia-parede com a cozinha. Achara que assim ficaria mais aconchegante e também mais prático, com os dois ambientes juntos e não divididos como era praxe.
Os móveis eram comuns, simples e poucos. Um pequeno sofá e uma poltrona próximos à lareira, uma estante, uma mesa com quatro cadeiras próximas à meia parede de divisão da cozinha. Nesta o fogão de ká, armários para os utensílios e mantimentos, uma pia e uma mesa estreita.
No chão da sala e da cozinha, tapetes novos estampados com flores que Liara nunca vira.
– Iá, é tão bonito!
– Vamos ver os quartos? – Subiram a escada que dava acesso ao pavimento superior. Abriu a primeira porta. – Este é seu quarto. Gosta? – Além de uma pequena cama, um armário e uma cadeira, havia tapeçarias no chão e em uma parede. A do chão era cheia de peixinhos e a da parede mostrava uma mulher brincando com os peixes dentro da água.
– A Fada do Rio! – Liara disse quase de forma reverente, passando as mãos pelo rosto da mulher.
– Gostou?
– Muito! Muito! Muito!
– Não se esqueça do que eu disse: a Fada do Rio não existe de verdade, é só uma estória que o Lure inventou. Ele tem muita imaginação.
– Não, Mãezinha. Ela existe sim, tenho certeza.
– Lembre-se de que prometeu tomar cuidado em seus exercícios para conseguir guelras. Não vai ultrapassar o limite, não é?
– Iá, não consigo ficar muito tempo lá embaixo. Começo a ter vontade de respirar e volto para cima. Mas um dia minhas guelras vão abrir e vou poder ficar horas lá embaixo. É tão tranquilo e bonito lá, Iá. Queria que viesse comigo para ver, um dia.
– Estou muito velhinha para estas coisas, querida. – Respondeu a senhora, rindo. – Só estou preocupada com você, tenho medo de que se machuque.
– Não, Iá. Agora vou tomar ainda mais cuidado, porque sei que você estará aqui, esperando por mim. – Prometeu a menina. Ani ficou satisfeita e abriu a próxima porta.
– Este é nosso banheiro. – Também era simples e rústico como tudo na casa. Uma banheira, um assento para as necessidades, uma pequena pia e um armário estreito com toalhas e outros artigos.
– O que é isto? – Liara perguntou mostrando os canos que apareciam próximos à banheira, ao assento e a pia.
– Um pequeno toque de magia de nossos construtores. Eles estão desenvolvendo este mecanismo ainda. Serve para trazer e levar a água. Eles ficaram com receio de que eu não conseguisse subir com baldes até aqui e aproveitaram para testar o aparelho. – Ani ainda estava maravilhada com aquilo.
– Viu estas duas alavancas? – E mostrou ambas, próximas à banheira. – Esta daqui trás água quentinha e esta leva embora a água e despeja no rio. – A menina abriu e a água saiu fria. Levantou o olhar interrogativo para a mãe.
– É que o fogão precisa estar aceso para esquentar a água.
– Ah!
– Não será bom?
– Nossa, Iá, imagina se tivesse isto lá na Ani. Não teríamos que tomar banhos quase frios.
– Isto mesmo. É o que você fará no futuro, querida. É isto que nossos construtores fazem. Imaginam coisas, aparelhos, que tornem nossa vida mais fácil e os constroem usando os recursos que temos e magia. Por exemplo, os canos são feitos de Ká, mas é a magia que faz a água subir até aqui. Entende?
– Hum… Parece bom.
– Também acho. – A velha senhora riu, sabendo que era o trabalho perfeito para ela. Já via sua mente trabalhando e imaginando toda espécie de aparelhos. – Tenha calma. Daqui a poucas semanas começará a estudar no Educandário e em oito anos estará formada.
– Oito anos… É muito tempo, Iá. – Isto provocou outra risada da mulher. Oito anos eram realmente muito tempo para uma garotinha de sete anos e meio.
– Venha ver meu quarto. – Abriu a última porta que tinha um quarto apenas um pouco maior do que o de Liara. Uma cama também maior, armários, uma poltrona e um baú grande nos pés da cama. No chão algumas tapeçarias retratando folhas no chão. E em uma parede uma enorme árvore, com a copa larga e florida.
– É Leradr, a árvore da vida. Como a Fada dos Rios, acho que não existe de verdade. Os Onais, os velhos anciões, contam a estória de que no centro do universo existe uma árvore imensa que liga o nosso ao mundo de Ur.
– Nossa! Posso chegar até Ur? E falar com ele?
– É o que dizem. O que falaria para Ur?
– Eu pediria para abrir nosso céu, para as cores voltarem.
– Quem te falou das cores?
– Ah, Iá, não fique chateada. Ouvi aqui e ali.
– Aposto que foi o Lure. Terei uma conversinha com ele.
– Não, Iá. Não foi ele. – Pelo jeito da menina, podia apostar que fora sim, mas resolveu mudar de assunto.
– Gostou de nossa casa?
– Iá, nossa casa é linda, mas…
– Mas?
– Eu posso dormir aqui?
– Não gostou de seu quarto?
– Gostei, Iá. Gostei muito. É que tenho medo de que os gigantes do vento venham à noite em seu quarto e queria estar junto para te proteger. – Ani já ia dizer que eram estórias, quando entendeu que ela estava com medo de dormir sozinha. Não passou pela sua cabeça que nunca dormira sozinha antes, pois na Cala sempre dormia em um dormitório com outras crianças.
– Podemos fazer assim, você dorme no seu quarto e se por acaso à noite você achar que os gigantes podem estar chegando, então vem para minha cama e ficamos juntas. O que acha?
– Está bom, Iá.
E assim começaram os dias felizes e perfeitos para a velha senhora, mãe tardia e a menina. Ani rezava para Ur, todas as noites, pedindo que esses dias durassem muito. Ela temia que fossem apenas a calmaria que antecede as tempestades, temia por algo que viria e abalaria aquela felicidade. Não sabia muito bem o que aconteceria, mas a população de Surs nunca havia aceitado Liara totalmente, o preconceito estava apenas adormecido e bastaria um movimento em falso para tudo desmoronar. Pedia a Ur para que a mantivesse com saúde, para que pudesse cuidar de Liara, ao menos até que fosse crescida e pudesse se defender sozinha.
Ani sabia mais sobre o que Liara era do que qualquer um em Sur. Ela tinha compreendido assim que vira seus olhos imensos e as orelhas pontudas. Por isto entendia seu excesso de energia, a necessidade de subir em árvores e telhados e até mesmo a vontade de ter guelras. Era apenas a força de sua raça se manifestando, a lembrança inconsciente de coisas que fizeram por tantos séculos e que estava incutida nela a despeito de qualquer educação que tivesse e que os negasse.
Quando seu potencial aflorasse perfeitamente e sua diferença sobre os outros ficasse ainda mais evidente, Ani não sabia como lidariam, mas podia adivinhar que não gostariam.
A sociedade de Sur era baseada na igualdade e não nas diferenciações. Funcionava muito bem quando todos eram relativamente iguais, mas com certeza não seria o melhor sistema para lidar com o que Liara era.
Era por isto que Ani tanto rezava.
Na primeira infância as crianças de Sur recebiam educação religiosa através da Casa de Ur, com a sacerdotisa Suri e suas assistentes. De forma informal e lúdica, as crianças conheciam algumas das estórias antigas e aprendiam sobre as regras da religião.
A partir da segunda infância, quando saiam da Cala, passavam a frequentar a Igreja de Ur, junto com os adultos, em reuniões domingueiras, para os quais todos vestiam a thuga mais festiva. Na realidade, era a mesma thuga de sempre, só que ajeitada de outra forma. Por baixo vestiam as tradicionais calças e camisas simples feitas de linho de cabra ou fibra de lete. Por cima, vestiam a thuga modelada em vestidos ou conjuntos de saia e blusa para as mulheres e calça e uma espécie de camisa mais encorpada para os homens, um modelo mais arrumado que o conjunto do dia-a-dia. Os meninos vestiam uma variação deste conjunto e as meninas tinham algumas opções, sempre de acordo com a idade, passando de saia e blusa a vestido, mais ou menos curto.
A ideia da uniformização era inibir as diferenças e também a vaidade, tida como instrumento de Er para corrupção da sociedade. E que se tivesse algo a ser destacado, deveria ser o interior de uma pessoa e não seu exterior. Funcionava entre aspas, como tudo.
Um decote um pouquinho mais baixo, uma saia levemente acima do padrão, uma viradinha de nada na lapela do paletó e as roupas se transformavam, de forma que praticamente todos os modelos eram únicos e havia mesmo certa competição informal para ver quem conseguia se destacar mais, sem fugir ostensivamente do padrão oficial.
Esta competição incluía os cabelos. Ainda que a thuga cobrisse a todos os fios igualmente e às mulheres fosse proibido cortar ou sequer aparar as pontas, elas podiam usá-los soltos, presos de várias formas em rabos de cavalo, coques ou tranças. O mais favorável aos olhos de Ur era o cabelo dividido ao meio no centro da cabeça e amarrado atrás em um rabo de cavalo simples. Esta era a essência do cumprimento da lei, a total falta de vaidade.
Toda mulher sabe que mesmo ao penteado mais simples é possível acrescentar certo glamour. O dito rabo de cavalo, amarrado um pouco acima da nuca emprestava este algo mais e se fosse, ao contrário, amarrado um pouco abaixo da nuca, em um penteado que a princípio denotaria displicência, a um olhar mais atento revelaria um cuidado extremo para dar exatamente esta impressão, ao mesmo tempo em que os fios Calam ao redor do rosto com delicadeza e uma ou outra mecha acrescentava charme e juventude.
Os homens não escapavam à vontade de melhorar a própria aparência, subindo ou baixando a barra do paletó conforme melhor favorecesse a estatura ou fazendo-os destacar ombros, peitos e pernas, embora de forma mais suave. Eles tinham outras formas de destaque, pois os homens eram responsáveis pela orquestra e por todos os cargos da igreja, enquanto que as mulheres restringiam-se à Casa de Ur.
Como os homens solteiros tinham mais tempo livre podiam participar das reuniões semanais da orquestra e eram eles que tocavam os instrumentos nas músicas religiosas. Naturalmente atraiam os olhares das mocinhas solteiras. Estas, por sua vez, eram as participantes do coral, que por acaso também se reunia semanalmente para os ensaios. Os intervalos dos ensaios dos grupos eram recheados com bolos, chás e naturalmente ali se iam formando os futuros casais.
As vagas em qualquer um dos grupos seriam disputadas a tapa não fossem grupos religiosos. Como tais e para darem-se o devido respeito, utilizavam uma rede intricada de influência que culminava nos Onais chefes do coral e da orquestra, que viviam sob o constante assédio de pais que cobravam um lugar para os filhos. Não raro a disputa chegava até o sacerdote.
Todos sabiam que para abrir um lugar para a filha do prefeito, o Onai Thur e a Onai Sani promoveram vários encontros até encontrar um casal propício que reuniram e fizeram casar em tempo recorde.
Os domingos começavam nervosos, com esta promessa de embate na reunião da tarde. As mocinhas ocupavam-se de suas roupas, lavavam os cabelos e tomavam longos banhos com essências perfumadas. Todos se esmeravam no cuidado com a aparência. Aparecer na reunião com aspecto desleixado era decretar a ruína das relações de amizade até o próximo evento.
Naquele primeiro domingo em sua nova vida, Liara foi esfregada em todo o corpo dentro da banheira, em cujas bordas boiavam folhas com cheiro amadeirado. Antes de vestir a thuga, sua mãe penteou vigorosamente seu cabelo que era de um tom de cobre muito bonito e também farto, comprido e ondulado, quase sempre embaraçado, com mechas rebeldes que se recusavam a permanecer dentro de um penteado comportado.
– Ai, está doendo. – Reclamou ela a um puxão mais forte.
– Meu Ur, Liara, como conseguiu fazer tantos nós em seu cabelo de ontem para hoje?
– Não tive culpa, mãezinha. Foi aquele esquilo. Se ele não tivesse me provocado, eu não teria corrido atrás dele. As árvores enroscaram em meu cabelo e o rabo soltou sem que eu percebesse. E depois pulei em cima dele, mas o bandido correu e eu …
– Está bem, mas desde quando esquilos provocam meninas?
– Ele me provocou juro, Iá. Ele parou na minha frente, olhou-me e riu antes de sair correndo. Quase pude escutar sua voz, falando que eu não seria capaz de apanhá-lo.
– Hum… Sei. E quando não conseguiu o que foi que ele fez?
– Iá, é esquisito, mas tenho a impressão de que ele riu e muito.
– E é só com os esquilos que tem esta impressão de entender o que dizem?
– Não, Iá. Às vezes parece que ouço os peixinhos também. E até os cavalos. Parece que sinto o que querem dizer.
– Você é uma garotinha com muita imaginação, querida. É melhor não contar estas coisas no Educandário. Eles podem não ter a mesma imaginação e zombar de você. Que tal?
– Está bem, Iá. Quero ter várias amigas para brincar aqui. Será que elas viriam para tomar chá comigo em minha casa de telhado?
– Vamos com calma. Uma coisa de cada vez. Primeiro trate de se comportar direitinho, tanto na igreja quanto nas aulas. Quero sentir orgulho de você. Com o tempo vai ter tantas amigas que vão brigar para ver quem vem aqui.
– Oba!
Iá vestiu-a com um modelo de vestido simples e bem arrumado e depois a analisou com olhos atentos. “Está bem.” – Pensou. Nada muito sofisticado e ao mesmo tempo com aparência de bem cuidada. “Certamente aprovarão sua aparência, porque não será a mais bonita e nem a mais feia.” – Tinha até mesmo usado o cabelo para disfarçar as pontas das orelhas. Estava impecável.
– Agora vá para a sala que é minha vez de me arrumar. – Despachou-a, satisfeita. Enquanto se arrumava se lembrou da conversa sobre o esquilo e não deixou de ficar preocupada. Tomara que Liara não falasse a mais ninguém sobre aquilo. Ao menos por enquanto.
Chegaram à igreja na hora certa, quando já haviam várias pessoas sentadas nos bancos e faltavam alguns minutos para o início. Seria desrespeitoso chegar em cima da hora e demonstraria ansiedade serem as primeiras.
Ani, por estar aposentada, era agora parte dos Onais, os sábios de Sur. Com tal seu lugar era nas primeiras filas na parte esquerda, das mulheres. Nas próximas filas vinham as meninas, de acordo com a idade, mais ao fundo as mulheres casadas, com as mais velhas por último. Do lado direito a configuração era praticamente a mesma, mas com os homens.
No palco elevado, do lado direito estavam os rapazes da orquestra e seus instrumentos e do direito as moças do coral. Tanto eles quanto elas usavam Thugas brancas, privilégio reservado aqueles que estavam no exercício de Ur e faziam contraste com a plateia toda preta.
Sure, o sacerdote de Ur, entrou trajando um manto branco sobre sua thuga preta, simbolicamente expressando uma pessoa igual a todos, mas imbuída de poder por Ur. À sua entrada, a orquestra tocou um hino simples, acompanhado pelo coral. Os cidadãos de Ur levantaram-se e cantaram juntos.
Liara, sentada entre as crianças de sua idade, fazia tudo que eles faziam como sua mãe recomendara, mas seus olhos passavam de um canto a outro, vidrados com tanta novidade.
Como era o primeiro domingo das crianças que passaram pela cerimônia o sermão tradicional era sobre a gênese, a criação do mundo:
Nosso deus Ur e seu irmão Er nasceram do corpo de seu pai, Reu, que morreu para que eles pudessem viver e dar forma ao universo então vazio, a vastidão negra que antes habitava seu coração.
Ur e Er trabalharam arduamente por incontáveis eras até formarem o caos inicial de matéria e energia. Estavam ambos exaustos, mas ficaram satisfeitos com o resultado. Er disse que com todas as leis prontas bastaria aguardar que os mundos se criariam sozinhos. Considerando o desejo do pai satisfeito, foi descansar.
Ur também estava cansado, mas ao contrário do irmão, não foi descansar. Ficou observando a imensidão que o rodeava, o coração de seu pai e imaginou-a preenchida com mundos povoados com seres à semelhança deles. Achou que seria bom porque não viveriam tão solitários e daria sentido ao sacrifício do pai. E enquanto Er dormia, deu forma a seu sonho.
Primeiro amassou em suas mãos uma bola de matéria e energia, criando o Reino de Ur. Para que não ficasse sempre no escuro, separou as luzes das trevas. Assoprou em torno da esfera, para criar um espaço entre ela e o céu. Fez a terra germinar e criou plantas e frutos. Para que não perecessem, colocou no céu o sol, as luas e as estrelas. Criou as águas e as encheu de peixes e os céus de pássaros. E povoou a terra de animais de todos os tipos.
Seu trabalho mais delicado e difícil foi a criação dos seres pensantes, pois embora fossem criados à sua semelhança, queria que houvesse tanta diversidade como nos peixes, pássaros e animais. Por isto, criou infinitas variações de si e quando estava para depositar seus seres no reino recém-criado, seu irmão acordou e viu o que fizera.
Er ficou muito irritado. Entendeu que o nome de Ur seria lembrado para todo o sempre e o dele não e achou que era injusto. Ur disse-lhe para criar também um mundo seu, mas Er não apenas não tinha a mesma habilidade como era preguiçoso e convenceu o irmão a dividir o Reino de Ur em dois, alegando que assim ficariam sempre juntos e iguais.
Ur amava seu irmão e como não queria que brigassem concordou. Com a ponta de dois dedos puxou uma pequena dobra de seu mundo e foi puxando e despregando uma camada fina do mundo original até ter uma nova terra que era em tudo e por tudo igual ao original, apenas mais leve e tênue, quase invisível, como um reflexo de seu mundo visto através das águas. Er não gostou. Queria um mundo tão denso quanto o de Ur. Mas Ur lhe fez ver que o segundo mundo só não era sólido se comparado com o primeiro, porque como todos os seres vivos que ali estavam eram também menos densos, a sensação seria a mesma, de solidez.
Ur também disse que Er poderia criar seres mais leves para povoar aquele mundo e que para eles, o mundo não apenas seria tão real quanto o seu, quanto suas possibilidades, livres do peso e das leis rígidas que regem a matéria, seriam maiores e que por isto, Er poderia ser ainda mais amado do que ele.
Er ainda estava em dúvida, mas quando Ur mostrou-lhe os seres que havia criado, ficou maravilhado e os desejou para seu mundo. Fingiu concordar e foi buscar vinho celestial para brindarem à criação de seus reinos. Sem que o irmão percebesse, colocou um sonífero em sua bebida. Ur sentiu-se cansado e creditando o sono ao imenso trabalho realizado, decidiu dormir antes de espalhar seus seres pelo seu mundo.
Enquanto Ur dormia, Er modificou suas estruturas tornando-os mais leves e espalhouos por seu próprio reino. Em seguida foi passear, para não enfrentar a ira do irmão.
Quando Ur acordou e viu o que Er fizera, ficou muito bravo. Procurou o irmão por muito tempo antes de desistir.
Furioso ainda, Ur decidiu juntar novamente os dois mundos como eram originalmente e tentou recolocar o mundo que dera a Er dentro do seu. Ocorre que no espaço de tempo em que ficaram separados e com o acréscimo dos seres pensantes ao Reino de Er, os mundos se modificaram e não eram mais cópias idênticas um do outro. As partes mais sólidas e menos mutáveis de terra se fundiram, mas os seres, as plantas, os animais e aves não. Desta forma continuaram a existir dois mundos, embora interligados em alguns pontos. Ocupavam o mesmo espaço, um dentro do outro, mas em dois planos distintos. Um desabitado e outro habitado. Um real e sólido e o outro diáfano e invisível. Ambos sem consciência da existência do outro.
Ur pensou em destruir este mundo agora tão atrapalhado e confuso, mas lembrandose de todo o trabalho que tivera decidiu que o manteria ainda um tempo, observando seu desenvolvimento, com a esperança de que aos poucos a fusão se concretizasse.
Ambos faziam parte do Reino de Ur, mas achou por bem dar um nome a cada um e chamou o primeiro de Tur, já que era sólido e pesado e o segundo de Rut, já que era como um reflexo inverso do primeiro.
Durante séculos os dois mundos progrediram, em espaços paralelos. No mundo físico de Tur as plantas, peixes, pássaros e animais evoluíram adaptando-se às transformações do planeta e à acomodação da matéria. O que também aconteceu no mundo invisível, Rut. Mas como este também contivesse seres pensantes e estivessem espalhados por todos os recantos do orbe, surgiram vários reinos menores, de acordo com as raças que o povoavam. E cada um destes reinos desdobrava-se ainda em cidades, vilas e agrupamentos.
Ur criara os seres pensantes com a sua mesma inteligência, criatividade, poder e magia, ainda que eles as tivessem de forma incipiente, necessitando ser trabalhada e lapidada do estado bruto inicial. Estes logo descobriram seu potencial e usaram os poderes – principalmente a magia – para viver com mais conforto, criando aparelhos, objetos, construções e máquinas.
Um dia Er retornou e ficou furioso com a perda de seu mundo. Tentou puxá-lo para fora como Ur fizera, mas foi impedido por este. Os dois irmãos lutaram por séculos, mas seu pai os fizera iguais e nenhum conseguiu derrotar o outro. Desde então, Er tenta recuperar seu mundo e Ur impede.
Como resultado das investidas de Er, o mundo frágil e sensível de Rut começou a deteriorar, a desvanecer, as bordas dos pontos unidos a Tur desfazendo-se em pó.
Sempre que Ur consertava uma parte, Er desfazia e o criador viu que a única forma de acabar com aquela luta e ainda manter os seres que criara, seria transferi-los para o primeiro mundo.
Tentou várias vezes e todas fracassaram, pois os habitantes do segundo mundo conseguiam ver o primeiro mundo, mas não interagir com ele. Eram leves demais para o mundo físico.
Ur então procurou uma raça entre os animais do mundo físico para miscigenar com os seres do mundo invisível. Entre todos, escolheu os grandes primatas. Além de serem os mais parecidos fisicamente, alguns deles tinham evoluído a ponto de caminharem sobre dois pés e eram os únicos animais com esta característica imprescindível.
Os primatas eram grandes, feios, cabeludos e desengonçados. Os invisíveis ficaram horrorizados com a ideia de misturarem-se àquela raça, mas Ur falou sobre o quanto aquela espécie evoluiria com o acréscimo de inteligência, criatividade, poder e magia dos invisíveis e o quanto os invisíveis ganhariam com sua força e vitalidade. Eles seriam a alma e os primatas o corpo. Acabariam por ser a parte dominante e após alguns séculos teriam sido totalmente transferidos do mundo invisível para o visível.
E foi assim que os filhos do mundo invisível depositaram suas sementes nas filhas do mundo físico e a raça dos humanos surgiu com a força física do mundo pesado e a alma sensível, inteligente, poderosa e mágica do mundo etéreo.
No início o gene dos primatas predominava, mas aos poucos, conforme se passaram os séculos e os primeiros humanos procriaram com seus semelhantes e com outros invisíveis, variações surgiram, com maior ou menor grau de um ou outro mundo. Existiam raças mais centradas na força física, de menor inteligência e espírito, outras que tinham um equilíbrio entre físico e espiritual e algumas que eram tão espiritualizadas como se os próprios habitantes do segundo mundo estivessem ali, sem qualquer impureza física.
A miscigenação trouxe ainda um efeito inesperado. Quando as raças se misturaram, o mundo invisível começou a se unir ao mundo físico. As bordas não mais se desfaziam e sim, uniam-se ao mundo físico. Foram mesmo desaparecendo e logo não se sabia mais onde um mundo acabava e o outro começava e passagens entre os mundos surgiram em alguns pontos de junção.
O mundo físico continuava não vendo o mundo invisível, mas estes não apenas viam o mundo de Tur como podiam ir de um para o outro conforme desejavam.
Er desesperou-se. Era o fim de seu reino, do sonho de perpetuação de seu nome e também da luta com o irmão. Sua vida perderia o sentido sem um reino. Não permitiria que Ur vencesse.
Tomou forma semelhante à dos seres invisíveis e misturou-se a eles, como um simples ferreiro. Aos poucos foi se infiltrando na sociedade e instilando neles a ideia de que Ur queria que o mundo invisível acabasse para que sua raça de primatas dominasse. Falou sobre como seria se o mundo invisível fosse novamente separado e de toda a glória e superioridade destinada aos seres etéreos.
Cortejando, difamando, mentindo, assediando e fazendo falsas promessas, foi conquistando adeptos e logo o reino invisível estava dividido em uma guerra civil. Os seguidores de Er mais do que recusarem-se a miscigenar com os habitantes do mundo físico, faziam o possível para impedir que os invisíveis o fizessem. A evolução dos humanos estagnou-se enquanto os etéreos lutavam, a desintegração das bordas retornou e o mundo invisível ficou muitas vezes ameaçado e prestes a desaparecer.
Após séculos sangrentos os seguidores de Ur venceram, a religião de Er foi proibida e a miscigenação prosseguiu. Er não fora totalmente derrotado, entretanto e jamais conseguiram encontra-lo, misturado como estava aos seres invisíveis e podendo mudar de forma conforme desejasse. Alguns habitantes fiéis continuaram a segui-lo, tramando secretamente um retorno triunfante, disseminando o mal e a discórdia entre os habitantes do invisível.
Foi então que nós, de Sur, cansados de tanta guerra e desgraças, clamamos ao nosso deus por misericórdia. Não queríamos mais viver em um mundo conspurcado, queríamos retornar à inocência e à paz dos primeiros tempos e devotar nossas vidas à adoração de nosso deus. Ur ouviu-nos e deu-nos esta região e a cortina de névoa e aqui pudemos enfim viver em paz nos últimos quinhentos anos.
Foi um longo discurso, enfadonho para todos os adultos, que o ouviam ano após ano e conheciam-no de cor, mas para Liara e as outras crianças que saíram da Cala e ouviam-na pela primeira vez foi espantoso.
Ani podia quase sentir sua aflição e necessidade de fazer perguntas. Preparou-se para o questionário no retorno. Tiveram ainda que aguardar o término da cerimônia. Após mais algumas músicas de louvor a Ur, começaram a deixar a igreja, devagar, parando para cumprimentos e breves conversas.
– Vamos? – Perguntou, dando-lhe a mão. Liara levantou-se quieta e saíram. No caminho, muitas pessoas vieram cumprimentar Ani, elogiando Liara, perguntando sobre sua casa, colocando-se à disposição para o que precisassem. Ani notou alguns que evitaram passar por onde ela estava saindo sem a cumprimentar.
– “Era bom saber com quem podia contar.” – Pensou a velha senhora. Ainda que não soubesse o quanto podia contar com estes que a cumprimentavam agora, sabia com certeza que não podia contar com os outros.
– E então, Liara, o que achou? – Perguntou-lhe quando já estavam a caminho de casa, estranhando seu pouco usual silêncio.
– Não sei, Iá. É verdade mesmo? Parece tão…
– Fantástico?
– É. Quer dizer, como pode ter outro mundo aqui, neste mesmo lugar? E também eles dois. Eles parecem comigo e com Raed brigando. – Ani teve que rir ao ouvir isto.
– Sabe que parece mesmo? Mas se Ur nos criou à sua semelhança, seria normal que nos parecêssemos com ele também no jeito de ser, não acha?
– É. Mas, Iá, você viu Ur ou Er alguma vez? Como sabem que eles existem de verdade?
– Eu nunca vi, querida. Não se esqueça de que estamos aqui há muito mais tempo do que minha vida inteira. Existiam relatos de pessoas que estiveram com Er. E também de pessoas que viram as passagens e até que o outro mundo. Ur ninguém nunca viu, a não ser como Suri ou o Sure veem. É mais como o sentem, entendendo seus desejos.
– Eu gostaria de ver eles dois ou pelo menos o outro mundo. Será que é bonito, lá?
– Ah, menina. Não é bom desejar qualquer uma destas coisas e pior seria se falasse disto com as outras pessoas. Hoje o Sure contou a estória porque ela não deve se perder, mas ninguém gosta realmente de falar sobre isto. Não é importante para nós. Para nós o que importa é a existência de Ur, que é nosso criador e a bondade que tem para com nosso povo. Nós somos o povo amado por Ur. Imagina Liara, de todos os povos de Rut, nós somos os escolhidos.
– Os outros eram iguais a nós, Iá?
– Não. Eram de todos os tipos e raças, mas é melhor não pensar muito nisto. É Tat. Sabe o que é Tat, não?
– As coisas que não devemos perguntar. – Ela murmurou chateada.
– Isto. Não fique aborrecida. A Tat existe para nossa própria proteção. De que adianta falar sobre estas coisas se nunca as veremos? Só serviria para alimentar pensamentos errados.
Liara concordou, mas ao longo da semana ficou mais pensativa do que o comum e a todo dia a mesma recomendação sobre a Tat tinha que ser dita, pois as perguntas continuaram a vir.
Ani aguardou o próximo domingo com certa ansiedade. Sabia que os próximos sermões desviariam sua atenção. Efetivamente, Sure leu um trecho do livro sagrado de Ur que falava sobre a importância da obediência as regras.
Eten era um pastor de cabras como fora seu pai e antes disto seu avô. Todos os dias ele acordava muito cedo e levava seu rebanho para pastar onde tivesse plantas mais tenras para eles. Por vezes andava durante horas, procurando um bom lugar. Quando encontrava, encostava-se a algum lugar e dormia até a hora de voltar. Ele deveria ficar acordado, conforme as regras, mas confiava que Ur protegeria seu rebanho. E assim fez por muitos meses, sem qualquer problema.
Seu pai uma vez surpreendeu-o dormindo e repreendeu-o, alertando sobre o risco dos animais selvagens ou de que uma cabra se desgarrasse e fosse mais além. Ele dizia que não havia perigo, pois Ur o ajudava.
Um dia, dormiu um pouco mais do que previa, porque no dia anterior tinha ficado acordado até tarde, conversando com amigos. Quando acordou já era noite. Olhou ao redor e não encontrou nenhuma cabra. O silêncio com a ausência de seus ruídos é que fizera com que dormisse tanto. Procurou por todos os lados e não encontrou nenhuma. Foi obrigado a voltar para casa sem nenhuma delas.
No outro dia, voltou ao local e seguiu seus até chegar a uma área descampada onde tinham ido pastar. Muitos corpos ainda estavam intactos e outros tinham sido devorados até os ossos.
O rapaz ajoelhou-se e em desespero reclamou a Ur: Eu confiei em Ti, Ur, pastor de todos nós. Porque não protegeu nosso rebanho? Não obtendo resposta, voltou para casa, arrasado, para dar a notícia da desgraça ao pai. Estavam falidos. O rebanho era a única fonte de renda.
Seu pai foi quem respondeu à pergunta: Tudo o que temos é um empréstimo de Ur. É nossa obrigação cuidar do que nos emprestam ou corremos o risco de que nos seja tirado. Você quis que Ur, além de nos dar a fonte de nosso sustento, ainda se encarregasse do seu trabalho e este é o resultado. Foi então que Eten compreendeu o que fizera e arrependeu-se, embora já fosse tarde.
– Meus filhos. – disse o Sure. – Não sejamos como Eten que teve que perder o sustento dele e de seus pais para entender suas responsabilidades. Cuidemos dos empréstimos que o bondoso Ur nos faz: nossas casas, nossos bens e principalmente, nossos familiares e amigos. Lembremo-nos de que somos todos irmãos, filhos do mesmo deus e que se hoje vivemos em paz e aqui estamos alimentados, aquecidos e se após voltaremos todos para nossos lares, onde nos aguarda uma cama macia e poderemos dormir abrigados do vento e do frio, tudo isto devemos à Ur. Lembremo-nos de que assim como Ur não era obrigado a pastorear o rebanho de Eten, também não é obrigado a pastorear este rebanho que somos nós e cuidemos nós do que nos foi dado, para que Ur não os tire como tirou as cabras de Eten.
– Muitas vezes vejo brigas ou divergências entre nós. Lembrem-se de que somos todos iguais e que Ur nos emprestou tudo que temos para que vivêssemos em paz e não em guerra. Sejam mais tolerantes uns com os outros, esqueçam as diferenças, façam a paz e pratiquem a caridade. Este é o trabalho que Ur nos delegou.
A congregação uniu-se em améns mais ou menos entusiasmados conforme a carapuça tivesse servido. Um ou outro se olharam com olhares de entendimento, indicando uma e outra pessoa a quem acreditavam ter se destinado o discurso.
No caminho de casa, Liara ainda estava quieta. A reunião produzira em sua mente uma profunda impressão. Primeiro por ter observado melhor o ambiente. Da primeira vez estivera nervosa demais. Achara muito bonito e grandioso. Os homens e mulheres tão bem vestidos e amáveis, a música que mal percebera da outra vez e que desta a fez chorar de emoção, mas principalmente, silenciava-se por conta do discurso que a encheu de terror. Compreendeu o que o Sure queria dizer: que sua mãe, Ani e sua casa, eram empréstimos de Ur. Que não eram seus realmente. Que poderia perdê-los de uma hora para outra, se não cuidasse direito, se fizesse como Eten.
O problema, Liara pensava, é que não sabia exatamente o que devia fazer. E se fizesse algo errado sem saber e Ur a castigasse ou a Ani, tirando sua casa? Ela tremia por dentro, imaginando a tristeza de Iá.
– O que achou, Liara? – Perguntou Ani, estranhando a quietude.
– Iá, e se eu fizer algo errado? Ur vai tirar nossa casa?
– Não, querida, não é assim. Ur observa o coração das pessoas e sua intenção, mais do que o que fazem. Às vezes fazemos algo errado, mas é sem intenção, ou querendo fazer certo. Entende?
– Sim.
– Ur sabe que não somos perfeitos, que estamos aprendendo ainda. É como um professor, muito bonzinho, que tem muita paciência e amor com os erros dos alunos.
Liara sentiu um grande alívio ao ouvir isto e aos poucos voltou à sua natural falação e inquietude. À noite, entretanto, teve sonhos horríveis, em que Ur aparecia bravo, apontandolhe o dedo e destruindo sua casa com um incêndio. Acordou aos gritos e suada. Chorou durante muito tempo nos braços de Ani e dormiu em sua cama dela sem, contudo, contar sobre o sonho. Parecia-lhe que se contasse ficaria mais próximo de acontecer. Prometeu a Ur que seria obediente e faria o que lhe pedissem.
Ani ficou preocupada com a extrema sensibilidade da menina e notou que durante toda aquela semana estava bem comportada, caseira e que procurava ajudar em todas as atividades da casa. Teve que instituir a hora de brincar, para que voltasse a sair para suas explorações.
No domingo seguinte o discurso do Sure foi sobre a igualdade, falando sobre como Ur não gostava de pessoas diferentes. E Liara voltou a ter pesadelos e a dormir na cama de Ani. Tornou-se um hábito que todos os domingos ela dormisse em sua cama. A senhora procurava adaptar e suavizar o discurso do Sure durante a volta e depois, antes de dormirem. Ainda assim, Liara tinha pesadelos e acordava gritando e chorando.
Duas semanas depois as aulas começaram. Liara vestiu-se de acordo com o uniforme: saia plissada até os joelhos e camisa com gola. Ani preparou uma bolsa com um lanche e levou-a até a porta.
– Tudo bem, Liara?
– Sim, mãezinha. – Mas via-se que estava apavorada.
– Não se preocupe. Vai estar em uma sala junto com crianças que também estão no primeiro dia de aulas e as professoras sabem disto. Não vão exigir nada que você não possa fazer.
– Iá… Você pode ficar por aqui um pouco?
– Lógico que sim, querida. Não vou embora enquanto não tiver certeza de que está bem. Oras, vamos fazer assim: eu vou até a Cala enquanto estiver em aula. Você sabe onde é e se precisar pode me encontrar ali. Na hora do intervalo, venho aqui e você vai dizer como está indo. O que acha?
– Obrigada! Eu amo você. – E deu um sonoro beijo na face da mãe.
Liara entrou conduzida por uma assistente que a levou até sua sala de aulas. Ela relaxou assim que viu vários de seus companheiros da Cala na sala. Raed, Ilo, Laa, Eri… Praticamente conhecia todos, menos uns quatro ou cinco que deviam ter vindo dos outros vilarejos.
– Ah, a orelhuda chegou. – Provocou Raed, como sempre fazia. Liara já ia mostrar a língua, mas lembrou-se dos discursos do Sure e conteve-se.
– Ur diz que somos todos iguais e que devemos ser amigos. – Falou a guisa de recriminação. E foi ele quem lhe mostrou a língua.
– Muito bem, Liara. – Cumprimentou a professora, que Liara não tinha visto. Era Oki, velha amiga de sua mãe. – Crianças, eu espero que sigam o exemplo dela. Não aceito brigas na sala.
A aula começou com explicações de como seria o ano letivo e foi bem mais fácil do que ela imaginava. Teria aulas de linguagem e escrita, magia elementar, ciências, matemática, natureza e elementos, medicina básica, história e educação física. As meninas aprenderiam também a cozinhar e os meninos a fazer pequenos reparos.
Na hora do intervalo, falou com Ani pelo muro baixo que delimitava o Educandário.
– Iá, você tinha razão. Pode ir. – E contou-lhe entusiasmada tudo que iria aprender, mal parando para comer o lanche, enquanto Ani ria divertida.
– Vou esperar pela sua saída para irmos juntas para casa.
– Está bem, Iá. – E correu ao ouvir o sino.
Nos próximos dias, mal conseguia dormir de ansiedade pela hora da aula.
A maior parte das aulas era dada pela professora Oki. Apenas magia, cozinha e educação física tinham professores diferentes.
O professor de magia era o Sr. Loua, um homem sério e rígido que parecia não acreditar que algum deles pudesse aprender qualquer coisa.
Sua primeira aula foi sobre o Ká, já que seria basicamente com este minério que fariam magia. Trouxera uma amostra de cada tipo de Ká que passaram de mão em mão.
– Estas são amostras dos principais tipos de Ká que trabalharemos. Alguém sabe o que é o Ká? – Várias crianças levantaram as mãos e cada uma disse algo:
– É de Ká que fazem nossas thugas.
– E também as paredes e até o teto.
– E as panelas
– E os móveis.
– Eu não perguntei para que serve, o que todos sabemos e sim o que é. Alguém sabe? – Tornou Loua, ríspido. Ninguém se atreveu a responder.
– Ká é o presente de Ur para seu povo, uma recompensa por sermos tão devotados a ele. Não existe exceto aqui em Sur. E Ur nos deu também como prova de que sempre está atento às nossas necessidades. Sabendo que não teríamos como fazer comércio com outros e que nossa natureza é limitada, deu-nos o Ká para suprir o que não temos muito: madeira, metais, peles, tecidos. – Todos concordaram com as cabeças.
– É um minério que é extraído de várias minas espalhadas ao redor do reino, mas cada veio tem sua particularidade, densidade e cor. Algumas são de um negro intenso, a maior parte de um cinza grafite e poucas de cinza claro. Existe um único veio de Ká totalmente branco. Seu minério é reservado aos objetos, instrumentos, roupas e artefatos dedicados à Ur. – Parou para observar as crianças e continuou.
– As casas normalmente são construídas do Ká mais escuro – que também é o mais resistente – as telhas de Ká grafite e as paredes e janelas do Ká cinza médio ou claro – mais macio. Escolhemos o Ká de acordo com o objetivo. As panelas, por exemplo, requerem o Ká mais resistente. Já nossas thugas são de um Ká preto e muito poroso. Agora, vocês sabem por que o Ká é tão precioso para nós?
– Porque serve para tudo isso? – Falou Laa.
– Isto é óbvio, mas como, porque ele serve para tudo ao mesmo tempo? – Retrucou Loua.
– Por causa da magia? – Ousou Ilo.
– Exatamente. O Ká somente é tão precioso por, além de ser flexível e poder ser moldado à vontade na forja, é muito reagente à magia. O que não conseguimos fazer com a forja, completamos com a magia. Este conjunto de infinitas variações de densidade, resistência e flexibilidade aliado à sua alta reação à magia é que permitem que assuma tantas formas diferentes e que sirva aos mais variados objetivos. E não existe nenhum outro material da natureza que seja igual, sequer parecido e tão útil.
Para a próxima aula tragam uma lista com ao menos duas dúzias de utilidades para o Ká. Estão dispensados.
Ansiosa por agradar, Liara fez uma lista com mais de cinquenta itens. Loua nem se deu ao trabalho de recolher as listas. Apenas perguntou se fizeram antes de anunciar que veriam uma demonstração do que se podia fazer com o Ká através da magia. Chamou alguns construtores para demonstrações que seriam feitas com um pedaço sólido de Ká.
O primeiro construtor o fez levitar. O segundo alongou-o até transformá-lo em um bastão. O terceiro fez com que ganhasse pernas e andasse pela sala. O quarto diluiu-o até quase desaparecer em nuvem. Os alunos observavam extasiados, principalmente com o Ká que ganhou pernas.
– Não pensem que farão isto antes de cinco anos. Dominar a matéria e fazê-la ser o que nós queremos que seja exige um profundo domínio da mente e da matéria. Não é para qualquer um. Tenham certeza de que ao menos metade de vocês jamais conseguirá. E a outra metade será medíocre. Apenas um, no máximo dois, chegarão ao nível destes construtores. – Olhou para as crianças desanimadas e parecendo satisfeito, prosseguiu.
– Esta demonstração é para que vocês vejam qual é nosso objetivo, para onde estamos indo. E é tudo que verão de magia este ano. Durante todo este ano apenas treinaremos suas mentes para se tornarem fortes. Ao final do ano, farei um teste e reprovarei todos que não executarem com perfeição os exercícios propostos e posso adiantar que não vou facilitar para ninguém. Se alguém quiser desistir agora, temos várias outras matérias bem mais fáceis e interessantes.
As crianças estavam agora francamente assustadas, mas ninguém deu uma palavra ou se levantou para ir embora até que fossem dispensadas.
Liara pensou que poderia fazer aquilo. Ela queria fazer. Não importava que fosse difícil. Imaginou tudo que poderia construir com a magia. Na volta para casa e durante o restante do dia e noite, olhou todos os objetos e casas, procurando identificar quais tinham sido feitos com magia. Tirou sua thuga para o banho e revirou-a tentando entender como funcionaria.
– Iá, você sabe usar a magia? – Perguntou ao jantar.
– Ah não, querida. É muito difícil. Sei apenas o básico, da magia natural. Desisti de melhorar minha magia nas primeiras semanas. Você teve aula com Loua hoje?
– Tive. Ele é bravo.
– Ah, é mesmo. O que achou da aula?
– Eu quero aprender. Quero mesmo, de verdade! É o que mais quero na vida.
– E por quê? – Liara espremeu os olhos, vincando a testa, enquanto procurava uma explicação.
– Não sei. Não sei explicar. Apenas quero, muito.
Então não se deixe intimidar pelo Loua. Ele é como um cachorro. Ladra muito, mas não morde. Quer apenas afastar aqueles que não têm talento, mas se ver que você quer mesmo aprender, ele ficará mais maleável.
As aulas de educação física eram fáceis para ela, mas também chatas e cansativas. Não tinha muita paciência para fazer exercícios para os quais não via muita utilidade e gostava mais dos jogos.
Ela gostou das aulas de natureza e elementos. A professora explicou que aprenderiam não apenas sobre o solo, como sobre as plantas e árvores e também sobre o clima. Liara entendeu que o frio constante era devido ao sol pálido, o que era surpreendente, pois não imaginava que o sol poderia ser de outra forma. E mesmo sabendo que era assim fora de Sur, não conseguia imaginá-lo diferente e também ao céu sem névoa conforme a professora comentou rapidamente, antes de perceber que entrava em um Tat.
Os alunos conversavam aos sussurros na hora do intervalo, falando sobre este mundo exterior e imaginando como seriam as cores sobre as quais algum professor deixava escapar um comentário, vez ou outra. Pelo que entenderam, o sol pálido tirara as cores de tudo, embora não entendessem direito como seria se o mundo não fosse assim, meio branco, meio preto e em todas as graduações de cinza.
O verdadeiro problema eram as aulas de cozinha. Primeiro porque a professora não gostava dela. Liara tinha certeza. Phena a chamava de mocinha de um modo totalmente irônico. Notava e destacava cada um de seus erros e não era raro que Liara saísse chorando de suas aulas.
Ani procurava ajudar, treinando as receitas com ela, em casa, mas Liara demonstrava-se cada vez mais desajeitada ao lidar com as panelas. Talvez não tivesse aptidão ou apenas estivesse influenciada com a opinião de Phena. Chegou a pensar em desistir e só não o fez para não entristecer a mãe. Então continuava a fazer bolos queimados, murchos ou duros ou com excesso ou falta de alguma coisa, esperando que algum dia acontecesse um milagre e subitamente conseguisse um bolo tão cremoso, macio e gostoso quanto os que Laa fazia.
As aulas com Loua igualmente iam mal. No segundo dia, a aula foi em uma sala sem cadeiras, com pequenos tapetes no chão. Ele mandou que sentassem cada um em um tapete. Em seguida falou por vários minutos sobre cachorros. Quando terminou disse:
– Agora, não pensem em cachorros. Quero que limpem a mente e pensem em qualquer coisa, menos em cachorros.
Liara tentou, tentou, tentou, mas os tais cachorros insistiam em entrar em sua mente. Via-os correndo, andando, dormindo e até mesmo olhando para ela e rindo. Quanto mais esforçavase mais os cachorros surgiam.
Ao final da aula Loua perguntou a todos, um por um, qual havia conseguido e separou-os em dois grupos. Os que haviam conseguido e os que não haviam conseguido, grupo no qual Liara se encontrava, para sua vergonha.
Vocês, – E indicou o grupo de Liara. – Estão dispensados. Continuaremos tentando até conseguirem. – Indicou em seguida o outro grupo. – Não passam de um bando de mentirosos. Só voltem daqui há duas semanas. E os pegar mentindo novamente expulsarei de minha matéria.
Liara ficou impressionada, além de aliviada.
– Iá, como Loua sabia que tinham mentido? – Perguntou à mãe após lhe contar.
– Hahahaha… Velho salafrário. Ele continua aplicando este golpe? – E continuou rindo com gosto, antes de explicar:
– Quando pedem para nós não pensarmos em algo é o mesmo que dizer para pensar. O segredo para conseguir não pensar em algo que não se deve pensar é ter outra coisa para pensar. Por exemplo, você pode pensar em algo que goste muito.
– Posso pensar que estou nadando.
– Sim, isto mesmo. Se eu fosse você, treinaria um pouco antes da próxima aula. É o que Loua espera que faça.
Liara passou toda a semana tentando não pensar nos cachorros. Na próxima aula estava segura que conseguiria e ansiava por surpreender o professor. No entanto, ela que foi surpreendida quando ele surgiu com outro exercício, completamente diferente:
– Quero que fiquem absolutamente calados e de olhos fechados. Ninguém deve falar nada com ninguém e nem abrir os olhos.
Todos sentaram, fecharam os olhos e ficaram em silêncio. Os primeiros minutos foram fáceis. Aos poucos o silêncio começou a pesar. Liara teve vontade de abrir os olhos só um pouquinho, mas resistiu. Um barulho começou. Parecia algo se arrastando pelo chão. Tentou imaginar o que seria. Um animal? Não havia ruído de patas, só de algo que se arrastava.
– “Ah, meu Ur, é uma cobra!” – Ela pensou. Procurou se acalmar. – “Loua está aqui. Está vendo. Vai tirar a cobra daqui.” – Mas o barulho continuava e aproximava-se. Liara começou a tremer de medo. Não sabia se tinha mais medo da cobra ou do que Loua faria caso abrisse os olhos. Ouviu uma garota gritar, depois um menino. Ouvia sons de alunos levantando. Nada da voz de Loua. A cobra prosseguia seu caminho, cada vez chegando mais perto dela. As lágrimas desceram pelo seu rosto. Seria picada. Tinha que abrir os olhos. Mas não podia! Loua a expulsaria da aula e ela não aprenderia magia! A cobra chegou aos seus pés. Quando sentiu um toque gelado em seu joelho, não aguentou mais e pulou.
A cobra era apenas um pedaço de Ká animado com magia pelo Loua, mas o resultado da aula foi que todos os alunos saíram chorando, como Liara, embora ela tenha sido uma das últimas a quebrar o silêncio. Loua não disse nada a ninguém, não explicou, não recriminou e não cumprimentou ninguém. Apenas dispensou-os e também às próximas aulas, mandando que voltassem para casa mais cedo.
Liara ainda tremia quando chegou a sua casa.
O que houve? – Perguntou a avó assustada.
– Uma cobra, mamãe. Uma cobra que só existiu na minha imaginação. Quer dizer, eu pensei que era uma cobra. Tinha certeza. Mas não era. Era apenas um pedaço de Ká. – Ela disse, chorando.
– Tudo bem, querida. Já passou. – E ficou com ela no colo, até que parou de chorar e contou sobre o exercício.
– Iá, o que acha que Loua quis ensinar?
– Não sei bem, mas talvez sobre o perigo do excesso de imaginação. Ou talvez fosse sobre como o que imaginamos é diferente daquilo que vemos. Ah, este professor está extrapolando. Acho que vou conversar com ele.
– Não, Iá. Por favor, não diga nada. Não quero que me expulse. E eu nem contei a ele que já consigo não pensar em cachorros.
Agora, além de treinar para não pensar em uma coisa qualquer, também treinava para “ver” de olhos fechados. Ficava em silêncio e de olhos fechados, apenas ouvindo os sons e tentando identificar cada um. Depois abria os olhos e conferia o resultado.
As aulas, os exercícios de casa e os treinos consumiam seu tempo. Ani disse que precisava ir mais devagar e brincar mais. Lure reclamou de sua ausência e até modificou seu horário para encontrá-la na hora em que costumava nadar. Liara ainda treinava todos os dias para abrir as guelras. Não sabia por que aquilo era importante, mas era como um hábito. Sempre que chegava da escola, após almoçar, ia para o rio, afundava e ordenava às suas guelras que abrissem. E nada.
Naquele dia, após a centésima tentativa, subiu à tona, frustrada e sentou-se ao lado de Lure.
– Sabe que prejudica minha pescaria, não sabe? Os peixes fogem.
– É mentira. Eles gostam de mim e me rodeiam. Sempre tem mais peixes na água quando estou nadando do que quando não estou. É que eu os aviso sobre seu anzol e eles não mordem porque sabem que morrerão.
– Ah, menina malvada. E porque faz isto?
– Não quero que morram. São bonitos e bonzinhos e meus amigos. – Lembrou-se tardiamente do que Ani tinha dito sobre contar aos outros de seu entendimento da linguagem dos animais. Tentou consertar.
– É lógico que eu não “falo” com eles. Na verdade, fico perto do anzol e espanto todos que querem morder a isca.
– Pestinha. E como vão suas guelras?
– Ah… Na mesma. Acho que não tenho mesmo guelras para abrir.
Talvez esteja só pensando errado. As pessoas não têm guelras. Quem tem guelras são os peixes. Porque não tenta imaginar que é um peixe?
Liara pensou nisto. Talvez ele tivesse razão.
– Boa ideia. Vou experimentar amanhã. Agora tenho que ir. Tchau, Lure. Tente não matar meus amiguinhos.
– Vou tentar, mas não vou prometer, está bem? Tchau, lindinha.
E assim aquele ano passou rapidamente. Quando Liara percebeu os exames anuais já se aproximavam. Ela estudava mais do que nunca, disposta a passar em todos.
– Culinária estou fora. – Observou com desalento ao tirar mais um bolo murcho do forno. Jogou-o no lixo. – Desisto. Seja o que Ur quiser.
Ciências, linguagem e escrita, matemática, natureza e elementos, medicina básica e história tinha certeza de que passaria. Gostava de todas. Um pouco menos de matemática. Achava linguagem e escrita um pouco difícil, mas era fascinada com a linguagem. Considerava História uma das matérias mais chatas. Medicina básica era meio nojenta. Usavam alguns animais para experiências. E ela vomitou quando abriram um deles para ver como eram por dentro, mas gostava de saber das ervas e o que cada uma delas fazia, qual curava o quê. Também gostava de natureza e elementos, porque faziam passeios observando a natureza, coletando pedras, plantas e aprendendo os nomes de todas as coisas.
Magia elementar era o problema. Não tinha a menor ideia de como estava. Loua nunca comentava seus progressos. E cada vez que superavam um desafio, surgia com outro ainda mais difícil. Liara já sabia não pensar sobre algo com perfeição. Também sabia interpretar os ruídos de olhos fechados e mesmo a manter o controle quando não identificava o ruído. Treinou contando até 10, depois foi aumentando até chegar a 100 e depois ficava quanto tempo quisesse de olhos fechados e imóvel, qualquer que fosse o ruído ou a sensação, mesmo quando coisas percorriam seu corpo. Dizia a si mesma que era Loua, que ele não a deixaria em perigo real e recusava-se a ceder ao medo.
Aprendeu a pensar sobre algum tema que era proposto e não pensar em nada mais do que o tema. Isto também foi muito difícil. A mente parecia ter vida própria e ficava escapando para outros lugares. Ela tinha que pegar os pensamentos fugitivos e trazê-los de volta. Demorou a pegar a prática, mas cada vez foi identificando mais rápido quando um deles ia fugir e pegavaos cada vez mais cedo, até o momento em que nenhum mais fugia. Era como dividir a mente. Uma parte ficava pensando no que devia ficar pensando e a outra ficava vigiando os pensamentos para não fugirem. Era seu exercício predileto.
Agora ele queria que não pensassem em nada. Liara simplesmente não sabia como fazer isto. Podia não pensar em algo, desviando os pensamentos para outra coisa. Sabia como pensar só em algo, não deixando que desviassem, mas não pensar em nada?
O que faria com os pensamentos? Como impedi-los até mesmo de nascer, se para isto teria que pensar? Ela estava frustrada e irritada com este fracasso. E com receio de não ser admitida para magia básica do próximo ano.
A semana das provas começou. Liara fez ao menos uma por dia. Educação física fez no mesmo dia que matemática. Achou que tinha ido bem a todas, exceto em culinária. A prova de Loua foi a mais fácil de todas. Ele apenas chamou um a um e pediu que escolhesse, entre 1 e 5, o quanto havia conseguido fazer cada um dos exercícios. Alertou para que não mentisse, porque ele saberia. Liara também sabia que ele saberia e nem tentou. Deu notas entre 4 e 5 para todos os exercícios, exceto no último, de não pensar em nada.
No sábado haveria a entrega dos boletins com as notas, seguido de uma pequena comemoração com a presença dos pais e dos cidadãos de Sur.
Ani aprontou-a com capricho. Liara passava do entusiasmo ao pessimismo de minuto a minuto. Em um momento tinha certeza de que seria aprovada com louvor e em outros que seria reprovada em tudo. Nada do que a mãe falasse adiantava, até que desistiu.
Liara crescera muito neste ano. Era agora uma menina alta, magra, com longas pernas. O cabelo chegava à sua cintura e só a custo permanecia relativamente controlado através de uma grossa trança. Ela ainda chorava para penteá-los e queria cortar curtos como os dos homens. Só não o fazia pelo temor da ira de Ur. Ainda não superara o medo que tinha de perder sua casa e mais ainda, do absoluto pavor de perder Ani.
Na cerimônia de entrega dos boletins, somente os pais e os alunos podiam comparecer. Os pais ficavam sentados com os filhos em cadeiras na sala que utilizavam para reuniões maiores. Um a um, pais e aluno eram chamados até outra sala menor onde os professores estavam sentados atrás de uma mesa longa, juntamente com o diretor da escola, o Sr. Bren.
Os pais e a criança sentavam em cadeiras à frente da mesa e cada um dos professores dizia a nota que tivera e fazia os comentários que achasse próprios. Em seguida o Sr. Bren entregava o boletim a um dos pais e apertava a mão deles, cumprimentando ou lastimando, conforme o caso.
Liara foi uma das últimas e viu vários colegas saírem aos choros, o que somente aumentou seu próprio pavor. Quando finalmente foi chamada, junto com a mãe, não soube como conseguiu andar, de tão moles sentia suas pernas.
Oki, professora de quase todas as matérias foi a primeira a falar. Disse as notas de cada matéria, que variaram entre quatro e meio e cinco. Fez muitos elogios a Liara, apenas recomendando um pouco mais de atenção durante as aulas. Cinco era a nota máxima e Liara quase chorou de alívio, até olhar para Phena, que seria a próxima e afundar na cadeira.
– Nota 1. Está reprovada, Senhorita. Será um alívio não ter sua presença em minha matéria no ano que vem. Acho que jamais tive algum aluno tão incapaz e inapto para culinária em todos esses anos.
– Senhora Phena, sou testemunha de que ela tentou e se empenhou ao máximo. Acho que algumas pessoas podem simplesmente não ter este pendor ou talento, não acha? – Sua mãe tentou minimizar a situação.
Humpft… – Foi tudo o que obteve como resposta, passando a palavra para o professor de educação física.
O mestre Zue deu-lhe um três e meio e disse que não se comprometia como deveria.
– “Tudo bem.” – pensou Liara. – “Ele estava certo.” – Não gostava mesmo dos exercícios e até que fora bem generoso.
Loua teve a palavra. Demorou alguns segundos para falar, olhando-a atentamente antes. Liara sentiu o sangue gelar nas veias e empalideceu.
– Estou acostumado a lidar com todos os tipos de criança e confesso que a cada início de ano, fico mais e mais desapontado com as novas gerações, tão desinteressadas e inaptas. Mas confesso que esta menina me surpreendeu. – Ele falava muito sério e parecendo irritado. Liara teve certeza de que ele diria a seguir que ela conseguiu ser pior ainda do que os demais.
– Nota cinco. Faz onze anos que dei outra nota cinco neste Educandário. E não se anime garota. Isto não significa nada além do fato de que no próximo ano exigirei de você mais do que de todos os outros. – E sorriu, piscando-lhe.
Liara pensou que fosse sua imaginação esta piscada, mas flutuou em ondas de alegria. – “Passara! Com nota máxima!”
– Oh, obrigada, obrigada! – Quase saltou sobre o balcão para beijá-lo. Sabendo que seria uma impropriedade, limitou-se a dizer:
– Vou dar o melhor de mim, professor Loua. Não vai se arrepender!
O Sr. Bren entregou o boletim à Ani, dando-lhe efusivos parabéns.
– Confesso que fiquei preocupado no início do ano. Agora vejo que só temos a ganhar com sua filha no Educandário. – Disse ele.
– Obrigada, Senhor Bren. Fico feliz também. – Respondeu também emocionada.
Ao saírem Liara não se conteve. Abraçou e beijou a mãe enquanto dizia:
– Não acredito! Não acredito! Nota cinco!!!
– Psiu, querida. Não é de bom tom comemorar assim tão efusivamente. Não se esqueça de que alguns de seus colegas não tiveram sua sorte.
Liara fez o possível para guardar a alegria durante o resto do dia, durante a festa. Orientada pela mãe, calou-se sobre suas notas. “Não é bom que fiquem com inveja.” – Ani dissera. Apenas comentou sobre sua nota em culinária e mencionou o três e meio em educação física. Das outras apenas disse que tinha passado.
Ninguém pareceu perceber que estava sendo evasiva e nem viram um ou outro sorriso que escapava sem querer.
Ani estava contente, mas preocupada. Sabia que mesmo que a filha não comentasse com os colegas, os professores e o diretor iriam comentar. Em breve todos saberiam. Ela esperava que o comportamento exemplar da filha durante aquele ano tivesse atenuado a precaução com que todos a viam.
No dia seguinte, ao final da reunião, na igreja, foi cumprimentada por vários que antes a ignoravam e acabou por tranquilizar-se.
Liara também estava feliz por estar livre das aulas de culinária no próximo ano. E queria aproveitar cada minuto do período de férias e fazer muito de tudo que deixara de lado para estudar. Estas férias prometiam e ela mal aguentava esperar até amanhã.
O futuro parecia bastante promissor para ambas. Ani fez uma prece para que permanecesse tudo bem antes de voltar a se concentrar em todas as comidas gostosas que faria para Liara e todos os momentos felizes que teriam.
Ah, por Ur! Como férias são boas!!! – Liara pensou pela enésima vez, chapinhando no rio, sem pressa alguma, apenas saboreando o prazer de não ter que correr para fazer alguma coisa.
Mergulhou e tentou, mais uma vez, abrir suas guelras. Tinha a impressão de que sua garganta já estava inchada de tanto forçar o local, tentando, tentando e tentando. Subiu à tona, irritada consigo mesmo.
– Sou uma idiota! É lógico que pessoas não têm guelras. – Falou consigo mesmo e neste momento lembrou-se do que Lure dissera há algum tempo e que esquecera completamente envolvida como estava com a escola:
– “Pessoas não têm guelras. Peixes é que têm guelras.” – Fora o que ele dissera. Sorriu antes de mergulhar mais uma vez. Lá embaixo procurou acalmar a mente. Observou seus amigos peixes. Fechou os olhos e tentou imaginar como seria ser um peixe. Ouviu os ruídos do rio, tão fracos lá dentro. Sentiu a textura da água.
– “Tão bom!” – Pensou. – “Tão quente e acolhedor, tão livre.” – Ali era apenas um peixe entre outros. Era igual a eles. Podia sentir seu corpo se deslocando levemente, o ar entrando pelas guelras.
– Guelras? – Abriu os olhos. Tentou ver seu corpo, sem conseguir. Os peixes pareciam maiores do que antes ou talvez ela fosse menor agora. Respirou para ter certeza.
– Ó, céus!!! Consegui!!! – Virara peixe. Respirava dentro d’água. Movia-se velozmente.
Gostaria de saber que tipo de peixe era, mas não havia espelhos ali. Riu consigo mesmo, ao pensamento tão pouco “peixe”.
Quando passou um pouco o entusiasmo pela transformação, começou a perceber como tudo estava diferente. A primeira diferença que percebeu foi o silêncio. O Rio Lenx era raso e aquele lugar onde estava era ainda mais, com pouco mais do que sua própria altura e ainda assim era o suficiente para silenciar o mundo exterior, como uma camada protetora. – “É tão relaxante.” – Avaliou.
Olhou ao redor e notou como as pedras, limo, plantas e até mesmo a água tinham cores que nunca notara. Até mesmo as escamas dos peixes, vistas agora, eram diferentes. Liara entendeu que devia à mudança de tamanho grande parte das diferenças visuais. Podia ver mais detalhes e nuances do que antes. Sobretudo, era diferente porque os olhos de peixe são diferentes e através deles penetrava em outro mundo, desconhecido e muito mais belo.
Nadou por um bom trecho do rio, procurando novos detalhes e abismando-se com cada descoberta. Tentou comunicar-se com os peixes e conseguiu, mas não era como um diálogo de humanos. Não era como se pudesse falar a eles que era uma menina que virara peixe e eles respondessem algo como: “Oh, que legal!”.
Era um entendimento mútuo ou um reconhecimento. Eles a aceitavam como peixe e sabiam quem era antes. “Um mundo sem preconceitos.” – Riu ao pensamento. Tentou acompanhar dois peixinhos que pareciam rápidos e não conseguiu. Era um peixe lento e pesado pelo visto.
Tentou comer as algas como eles. A sensação era a mesma de comer uma raiz, crua e sem tempero. Não tinha qualquer gosto.
– “Que comida sem graça! Não estranha que gostem tanto das iscas que Lure coloca no anzol.” – E riu às gargalhadas com sua própria piada.
– “Que falta faz um espelho.” – Pensou, imaginando como gostaria de se ver, um peixe, gargalhando. Os peixes olhavam-na, sérios e não pareciam entender a graça da piada. Nem tinha graça mesmo.
Despediu-se, prometendo voltar e subiu à tona, em um gesto de coragem. – “Se tiver sido a única vez, ao menos terei a lembrança.” – Pensou. Ao sentir o ar do exterior, voltou à forma original, menina novamente. Correu para contar à mãe.
– Iá, Iá! – Subiu correndo e chamando por ela.
– O que foi, menina. Aconteceu algo? – Ela surgiu à porta, secando as mãos no avental, com cara preocupada.
– Eu consegui, Iá. Virei peixe. Lure estava certo. Pessoas não têm guelras. Por isto não consegui antes. Quando me imaginei como peixe, virei peixe. Tão fácil e simples!
– Hum… Muito bem. E como foi, ser peixe?
– Ah, é tão gostoso! O mundo fica silencioso, quentinho, leve. Parecia que eu não tinha peso nenhum, como se fosse uma pena tocada pelo ar.
– Isto deve ser realmente bom. – Concordou ela.
– E tem cores, mamãe. Acho que sempre teve, mas quando via como pessoa, não percebia porque era muito grande. Como peixe, fico pequena e então posso perceber. É tudo tão bonito… – Suspirou.
– E os peixes? Assustaram?
– Não, Iá! Eles acham tudo normal. – Abaixou o tom de voz, como se fosse fazer uma confidência. – A comida deles é ruim! Eu comi um pouquinho. E eles também não têm senso de humor. Nem parecem inteligentes. Quer dizer, não são como nós. Eles apenas vivem, não pensam como nós.
– Ah… Mas isto é porque só viu estes peixes. Dizem que existem peixes inteligentíssimos e que até mesmo têm uma linguagem. E eles também são muito brincalhões. Pena que não temos deles aqui.
– Verdade???
– Bom, eu nunca vi. Só ouvi falar. Pode nem ser verdade.
– Hum… – E parou pensativa, como sempre fazia, ao saber de algo novo.
Agora, venha comigo. Temos que conversar. – Pediu Ani, parecendo séria e encaminhando-se à sala onde sentou e indicou que sentasse também.
– Liara, o que você fez foi algo natural para você. É um dom que Ur lhe deu, poder se transformar em peixe. Talvez algum dia aprenda a se transformar em outros animais também. Mas as pessoas daqui não têm este dom e podem ficar assustadas em saber. Tudo que é diferente e desconhecido assusta.
– Não devo contar para ninguém, não é?
– Isto. Como sobre falar com os animais. Contou para alguém?
– Não, Iá. Eu queria muito contar para Lure. Tenho certeza de que ele entenderia e guardaria segredo. Dias atrás, quase deixei escapar que falo com os peixes. Quando percebi, disfarcei fazendo de conta que era uma brincadeira.
– Sim. Também acho que Lure entenderia. O problema dos segredos, querida, é que eles se tornam uma grande responsabilidade para aquele que as possui. O Lure, caso soubesse, não poderia contar para ninguém. Teria que esconder de sua mulher, sua filha e de todos de Sur. Desta forma, nós o estaríamos obrigando a mentir ou ao menos a esconder seu segredo. E você sabe que é contra as leis de Ur, não sabe?
– Nunca tinha pensado assim.
– Quando gostamos de verdade de alguém, não devemos colocar esta pessoa em uma situação que o obrigue a mentir. Além disto, se alguém descobrir e forem lhe perguntar se ele sabia, terá que confessar que sabia e não disse nada. Então ele seria tão culpado quanto nós, percebe?
– Verdade. Iá… Entendo porque temos que esconder, mas é ruim, não é? Não devia ser assim, como se estivéssemos fazendo algo errado. Como você mesmo falou, é natural, um dom de Ur. Não é ruim.
– Você está certa, querida. Infelizmente nós vivemos em um mundo em que as pessoas têm medo do que é diferente, porque no passado convivemos com um diferente que era ruim. Agora, quando algo é diferente, pode ser bom ou pode ser ruim, mas não sabemos qual será. E ficam com receio.
– Entendo isto, Iá. Espero que um dia eu possa mostrar a todos o quanto é bom.
– Eu também, Liara. Mas por enquanto, é melhor que fique só entre nós duas.
– Vou tomar cuidado.
– Sabe o que acabei de fazer? Os bolinhos doces que você adora. – Foi o que bastou para a conversa acabar, com a menina voando para a cozinha. Enquanto comiam a mãe falou:
– Tenho pensado que faz muito tempo que não convida seus amigos para um chá no telhado.
– Faz mesmo!
Porque não vai à cidade e convida-os para vir amanhã? Posso fazer bolo de Aliras.
– Mesmo? – Todas as crianças devem sentir a mesma compulsão por bolo de Aliras, que são umas frutinhas pequenas, brancas e muito, muito doces. O bolo em si era simples, mas recheado e coberto com a geleia branca, transformava-se no doce mais disputado.
– Consegui um punhado delas ontem, com o Viers. – Ele era o comerciante de alimentos de Sur.
– Mas tem bastante para todos? – E Ani teve de rir com gula.
– Tem sim, sua espertinha. Pode chamar que tem para todo mundo, até se fartarem.
Ani pensou que também deveria aproveitar as férias para ser mais social e pensou em convidar algumas amigas para um chá e visitar outras. Não era bom viverem tão isoladas.
Pouco depois de comer os bolinhos, Liara encaminhou-se para a cidade. Nos poucos quilômetros teve tempo para relembrar toda a conversa. A novidade de virar peixe parecia obscurecida agora, com aquele toque de segredo. Chegou a entristecer-se um pouco, mas depois pensou bem e achou que era besteira. Tudo bem não poder contar a ninguém. Iá sabia, os peixes sabiam e ela sabia. Era suficiente. Da próxima vez iria experimentar outras algas e veria se todas eram ruins. E também poderia ir mais longe, como nunca fora. Quem sabe não encontraria a Fada do Rio?
Esta ideia espantou de vez a tristeza. Se ela conseguiu virar peixe, praticamente tinha comprovado que a estória era verdadeira. Então… A fada do rio devia estar lá.
Imaginou o encontro com ela e toda a amizade que teriam. Com a fada do rio não precisaria ter segredos. Ela poderia ser sua melhor amiga. Quando chegou à cidade, já vivera – em pensamentos – várias aventuras com a nova amiga. E encontra-la era um fato consumado.
Liara não tinha realmente amigos íntimos. Raed, Ilo, Laa e Ker eram os mais próximos disto, apesar dos meninos sempre a perturbarem falando sobre sua altura ou orelhas. De qualquer forma, convidou-os.
– Morri! – Falou Raed dramaticamente, deitado no telhado, alisando a barriga.
– Eu não só morri como já fui para o Paraíso de Ur. – Retrucou a menina Laa.
– Liara, sua mãe sabe mesmo como fazer um bolo de Aliras! Meu Ur! – Foi o comentário de Ilo.
– Caramba, vocês são uns esfomeados. Limpem a cara. Estão todos sujos de Aliras. – Riu Liara.
– Estava mesmo bom! – Concordou Ker, sacudindo sua saia e olhando para a bandeja vazia, só com um ou outro farelo e nem um restinho de geléia de Aliras. Liara acompanhou o olhar.
– E era grande, como mamãe prometeu. – Suspirou feliz.
Durante alguns minutos ficaram deitados em silêncio, olhando para o sol pálido. Ninguém tinha forças para se mexer.
– Podíamos jogar alguma coisa. – Sugeriu Ilo.
– Está maluco! Mal consigo me mexer! – Raed tinha mesmo comido demais.
– Vamos jogar pedrinhas? Para isto não precisamos nos mexer – Sugeriu Ker.
O jogo de pedrinhas era muito atual. Consistia em dar a cada participante cinco pedrinhas chatas e lisas do rio. Outras cinco pedras eram marcadas de um lado com tinta. O primeiro participante jogava as cinco pedras marcadas e somava quantas saíram com o lado marcado para cima, podendo retirar dos outros jogadores a mesma quantia de pedras e ganhava quem conseguisse ficar mais tempo no jogo. Existiam algumas variações, como poder ou não recuperar as pedras perdidas, jogar com mais de cinco, mas este era o raciocínio básico. Quanto mais pessoas jogassem, mais engraçado se tornava.
– Vou pegar o saquinho. – Liara correu a casa. Todos tinham um saco com as pedras.
Jogaram por quase uma hora, alternando os vencedores e os jogadores, conforme a partida.
– Sabem o que vi hoje, quando estava vindo? – Laa falou.
– Um vulto preto? – Ironizou Raed.
– Engraçadinho. Vi a Ber e o Gao escondidos atrás de uma pedra, beijando-se. – Ber e Gao eram alunos mais adiantados do Educandário e viviam brigando.
– Mas ela queria? – Liara estranhou.
– Pode ter certeza. Estava abraçando seu pescoço.
– Não se confiar em ninguém. – Comentou Ilo.
Por que será que os adultos gostam tanto disto? Parece mesmo ser nojento. – Todos concordaram com Liara.
– O veem de bom nisto? Eu gostaria de experimentar para saber. – Continuou ela, corajosa.
– Eca, que nojo! – Disse Ilo e Raed surpreendentemente ficou quieto.
– Eu também queria saber com é. – Apoiou Laa.
– Porque não se beijam vocês duas? – Retrucou Ilo.
– Ah, Ilo, deixa de ser estraga-prazeres. Só um beijinho para saber como é. Você topa, Raed? – Perguntou Liara. Raed era sempre metido a ser homem, não iria recuar neste momento e apenas concordou com a cabeça.
– Está bem, mas de longe, sem corpo grudado. – Capitulou Ilo, após a aceitação de Raed.
Levantaram-se, Ilo com Laa e Laira com Raed. Fecharam os olhos e encostaram as bocas. Pareceram levar choques com o contato e recuaram, com expressões de nojo, todos limpando as bocas. Ilo cuspiu.
– Eu não disse que era nojento? – Perguntou ele.
– É nojento mesmo. Ergh… – Concordou Liara.
– Porque será que gostam de fazer isto? – Laa parecia intrigada.
– Deve ser, sei lá, como uma obrigação. Sabe quando nossas tias ou avós nos beijam a bochecha ou bagunçam nossos cabelos? É muito chato, mas ficamos quietos, por que é assim que demonstram que gostam de nós, não é? – A explicação de Raed parecia lógica.
– Pode ser. Como um costume. Algo que ninguém gosta, mas que devem fazer para mostrar que gostam do outro. – Liara disse isto fazendo caretas de desaprovação.
– Os adultos às vezes fazem coisas bem estranhas. – Ilo mencionou e não teve quem discordasse.
A brincadeira do beijo acabara por deixa-los constrangidos uns com os outros e logo se despediram.
– Ainda assim, foi uma tarde gostosa. – Pensou Liara, levando a bandeja vazia para a cozinha.
– Já foram? Tão cedo? – Estranhou a avó. – Gostaram do bolo?
– Se gostaram? Veja só, não sobrou um pedacinho. Raed quase passou mal de tanto que comeu. – Riu Liara.
– Que bom! Queria que hoje fosse mesmo especial para você.
– Por quê?
Não se lembra? Hoje é seu aniversário, querida. Parabéns pelos nove anos. – Abraçou e beijou a filha com carinho.
– Obrigada, mamãe. Esqueci completamente. – E Ani já a puxava para a sala e colocava um pequeno embrulho em sua mão.
– Uma pequena lembrança deste dia. – E beijou-a novamente. Em um canto de sua mente veio a lembrança da conversa anterior com as crianças. Mas gostava dos beijos da mãe.
O pacote revelou uma tapeçaria minúscula emoldurada com Ká rígido. Ela e a mãe estavam retratadas com perfeição.
– Nossa, é lindo! Incrível!
– Jon é mesmo um grande artista. Teve que usar suas linhas mais finas, mas ficou perfeito. – Concordou a mãe.
Beijou-a em agradecimento enquanto, absorta, admirava aquele milagre de miniaturização.
À noite, em sua cama, desejou que todos os dias fossem iguais àquele.
O dia amanheceu claro, quase sem vento, agradável. Liara desceu para o rio. Lure estava sentado em seu lugar rotineiro.
– Bom dia, Lure!
– Bom dia. Está feliz!
– Sim. – Contou-lhe sobre o dia anterior e o presente da Ani.
– Depois subirei para ver isto. Vou querer também, para minha mulher e filha. – Liara achava que todos iriam querer este novo tipo de tapeçaria.
– E, por falar em presentes…
– Sua boneca vai muito bem. Fui lá ontem. Está começando a cabeça. Falta muito pouco agora.
– Lure, você está só me enrolando. Fala a verdade.
– Estou falando.
– Posso ir lá ver?
– Isto não. Ele não quer ninguém xeretando em sua nova invenção antes que fique pronta.
– Aposto que é mentira e que a boneca não existe.
– Vai pagar sua língua, menina.
– Como vai a pescaria?
– Mal, muito mal. Você acabou com minha diversão. Seus amigos ficaram espertos. Não se interessam mais por minhas iscas. – Mas não parecia triste. Os olhos riam.
Lure, você precisa dos peixes?
– Na verdade não. Gosto do passatempo, da diversão, de ficar sentado, tranquilo, pensando em paz. Isto quando certa menina permite lógico. – E riu.
– Pode parar de usar iscas de verdade? Não quero que eles se machuquem.
– Eles quem? Ah… Os peixes? Mas, sem isca não vou pescar nada. Não vai ter graça.
– Lógico que vai. Ficará tranquilo, pensando em paz. Porque precisa dos peixes?
– Hum… Vou pensar, prometo. – E recebeu um beijo estalado.
– Obrigada! Vou nadar com eles. Tchau.
– Tchau! – Ele acenou ainda achando graça no pedido. Encolheu os ombros e pensou: – Porque não?
Liara nadou sem pressa, até pela presença do Lure. Gostaria de estar só para mergulhar e transformar-se, mas teria que esperar. Se demorasse a voltar à tona enquanto ele estivesse ali, provavelmente se jogaria no rio para salvá-la.
Ele era legal, diferente dos outros adultos, que sempre falavam com ela do alto. Ele a travava como se fossem iguais, ou quase iguais ao menos. Liara às vezes gostava de ser tratada como criança, mas era um pouco frustrante no sentido de que não levavam nada do que dizia ou pensava a sério, como se pensar certo fosse um privilégio de adultos. Alguns professores ouviam o que ela dizia, apenas para descartar logo após ou para explicar como ou porque estava errada. Ela não achava que estava errada em tudo. Achava que eles é que estavam tão certos de que o que pensavam era o certo e de que o que ela pensava era errado que não lhe davam oportunidade alguma. Nem ao menos pensavam no que dizia.
Por exemplo, havia a questão da thuga. Era bom usar a roupa que a mantinha quente e ao mesmo tempo era tão leve, mas achava um exagero ter que cobrir até os fios de cabelos e principalmente os olhos. Tinha momentos em que ficava mesmo sufocada, oprimida com aquilo e queria tirar ao menos a parte da cabeça.
Falou com alguns adultos sobre isto e eles apenas balançaram a cabeça discordando ou então desfiaram um rosário de motivos pelos quais devia ser assim. Só que os motivos que citavam não a convenciam da mesma forma. Porque era errado se mostrar? Porque precisava ficar oculta para ser igual? Quer dizer, não podia ser igual por dentro, com a mesma crença e diferente por fora? Muito esquisito aquilo.
Às vezes, pensava que eles não regulavam bem, mas como todos eles pensavam iguais, também podia ser que ela é era a errada. Só não entendia onde estava errando, porque o que pensava sobre a thuga parecia fazer muito mais sentido e lógica do que o que eles pensavam.
Este tipo de coisa é que a confundia, muitas vezes. Uma sensação de que algo estava errado e não saber onde estava o erro e nem se tinha erro mesmo.
Lure finalmente levantou-se para ir embora, em seu jeito sempre lento e desanimado.
“Parece vazio de energia.” – Ela pensou. Já notara que ele nunca ou raramente demonstrava entusiasmo por algo. Porque será? Teriam errado em sua designação? Ele não parecia levar jeito para Lure. Era tão tímido e quase sempre parecia ter medo. Lures deviam ser mais valentes, mais destemidos.
– “Coitado. Ainda bem que fui designada para a coisa certa.” – Ficou olhando ele partir, com seu andar arrastado, até que desapareceu de sua visão.
Olhou para todos os lados, certificando-se de estar só e mergulhou.
Levou um pouco de tempo para conseguir se transformar. Estava agitada, pensando em várias coisas ao mesmo tempo e demorou até descobrir como fazer. Não adiantou pensar em virar peixe. Só conseguiu quando se imaginou sendo peixe. Depois lembrou que fora exatamente isto que fizera da outra vez.
“Falou” um pouco com seus amigos e exasperou-se com a falta de diálogo real. Ela esperava que eles contassem estórias da vida no rio, queria saber de suas vidas, de seus pais, de onde moravam. Eles pareciam gravemente desmemoriados (não queria pensar que pudessem ser retardados). Todos os diálogos se resumiam ao momento presente. Se algo acontecesse, todos notariam. Se um fizesse algo, todos viam, alguns acompanhavam, outros comentavam. Falaram dela, de ter se transformado. Sem espanto, apenas um comentário de algo que ocorrera. A constatação de um fato.
Será que não tinham sentimentos também? Ficariam irritados, bravos, alegres como ela ficava?
– “O mundo é mesmo esquisito.” – Resumiu os pensamentos nesta conclusão e nada mais havendo de interessante para conversar, resolveu explorar mais o rio, ir além do ia normalmente nadando.
Foi olhando cada pedacinho do fundo do rio, descobrindo novas cores com seu olho de peixe que acabou encontrando o cadáver de Íris, sua boneca, irrecuperável, coberto de lodo. Mesmo se ganhasse uma boneca de Ká do Lure, não se esqueceria dela. Cobriu-a com algas em despedida.
O rio serpenteou, serpenteou e acabou dando com uma queda d´água à frente.
-“E agora? Será que posso seguir em frente ou as pedras vão me machucar?” – Parou indecisa. Nenhum peixe à vista que pudesse consultar. Subiu à tona para examinar melhor. Esqueceu que se transformava em gente ao contato com o ar.
Foi tudo muito rápido. Subiu em um impulso, o corpo de peixe saindo completamente d´água e caindo nele novamente em sua forma normal. Estava no alto quando seu olhar captou outros olhares, que se arregalaram conforme foi descendo.
– “Devia ter mergulhado novamente.” – Pensou depois, quando já era tarde demais. No impacto do momento apenas ficou parada, olhando-os, por tempo suficiente para que soubessem que não havia sido alguma ilusão de ótica e, pior, para que soubessem quem ela era.
Quando se recuperou do choque, mergulhou e voltou como peixe, nadando, até sua casa.
– “Outro erro.” – Recriminou-se. É óbvio que perceberam que ela não voltou à tona e reconfirmou a transformação.
– “Idiota!” – Não conseguia parar de se odiar.
– “E agora? E agora?” – O medo a rodeava. Sabia quem eram. Lógico, tinha que ser ela, Faya, que nunca a suportou e três amigas.
Assim que chegou, checando agora as bordas do rio, pulou para fora e correu para casa.
– Iá, Iá! – Foi chamando, o coração gelado. Ani estava na cozinha, preparando o jantar, despreocupadamente.
– Que houve, Liara?
– Fui vista desvirando de peixe. Eu sei, foi burrice. Você pediu para ter cuidado, droga! Estava tão enlevada com o passeio, esqueci completamente. Daí, subi e elas me viram voltando a ser pessoa. Justo a Faya. Droga! Tinha que ser ela? Ah, Iá, estou encrencada? Muito? O que vai acontecer? Será que devo fugir? Eu devia ter pensado antes. Desculpe, desculpe.
– Pára! Respira! Calma! Senta. Vou pegar uma água para você.
Na verdade, Iá compreendera já, tudo. Detalhes seriam pouco importantes. Precisava acalmar Liara e ao mesmo tempo pensar no que fazer.
– “E agora?” – Pensou por sua vez. – “O que iria acontecer? E, o que fazer? Mentir? Poderiam. Seria a palavra delas contra das outras. Mas, seria o certo para Liara? E se confirmassem? Seria pior? O que poderiam fazer?“
– Tome. Beba devagar. – Estendeu-lhe o copo que a menina tomou segundo recomendou, mesmo que as mãos tremessem.
– Escute, querida, não há motivos para que fique tão assustada. Seria bom que não soubessem, mas aconteceu e nós vamos tentar explicar e tudo ficará bem. São nossos amigos. – Decidira que mentir só pioraria a situação.
– O que vai acontecer, Iá?
– Não sei. Isto nunca aconteceu. – Mas ela sabia que a origem de Liara viria à tona. Inevitável e fatalmente.
– Querida, preciso contar algo a você, antes que cheguem. Vamos até meu quarto. – Ani subiu as escadas devagar, como se estivesse cansada. De fato estava. Sentia-se fraca. A idade começava a cobrar seu peso e Ani pensou quanto mais aguentaria. Rezou por Ur, para que vivesse até que Liara chegasse à idade adulta, que era de 15 anos em Sur.
– “Seis anos mais, Meu Ur. Não é muito que peço. Só me deixe viver este tempo e depois vou feliz a seu encontro.” – Ur haveria de atender este pedido, estava certa. Liara não carregava seus olhos? Ele também deveria querer sua proteção.
Sente-se na cama. – Pediu, enquanto abria seu baú com a chave que levava carregada ao pescoço e dele resgatava algo. Liara tentou olhar, mas de onde estava, só via a tampa levantada. Ani nunca a deixara ver o que continha a imensa caixa.
– O que é isto, Iá?
– Nove anos atrás houve uma noite sem vento. Foi esta noite que te trouxe à minha vida e à Sur. Estávamos na Cala, jantando e conversando, quando ouvimos batidas na porta. Abri e lá estava você, minúscula, recém-nascida, embrulhada nestas mantas.
– Olhe, Iá, é diferente das nossas. É muito macia. – Acariciava o rosto com ela, sentindo a maciez. – E tem cor. Como se chama esta cor, você sabe?
– Rosa. Cor de rosa. Os Outros usam muito esta cor para crianças do sexo feminino.
– Os Outros? – Liara soltou a manta, como se subitamente houvesse se transformado em uma cobra prestes a lhe picar.
Nas aulas ficaram sabendo brevemente sobre os Outros, o povo com o qual viviam antes da separação. E nas reuniões dominicais, nos sermões do Sure, Liara aprendera o quanto eram maus e perigosos. Soube que foi para se protegerem dos Outros que a bondade de Ur os isolara dentro da cortina de sombras. Sure contara casos de guerra, depravação, assassinato e atos de maldade extrema que os Outros cometeram contra os Surs.
– Mas… Os Outros não são os Adoradores de Er?
– Menina, muita coisa que se diz sobre eles são exageradas. Existem Adoradores de Er entre eles assim como existem os Adoradores de Ur. Houve uma guerra entre eles e os que seguem Ur ganharam. Os fiéis de Er foram banidos, exilados e sua religião proibida. Isto quer dizer que a maioria dos Outros é formada por pessoas que seguem Ur, como nós.
– Então… Não são todos maus?
– Exato. O Sure e os Surs acham que são todos maus, porque existem lá muitas raças, muitas formas diferentes de sociedade e costumes. Alguns são considerados perigosos, subversivos.
– Subversivos? O que é? – Liara estava agora intrigada com aquela reviravolta no que sabia sobre os Outros, esquecida de sua origem.
– É tudo que vai contra a ordem estabelecida, contra os costumes praticados. São novos pensamentos, novas formas de organizações sociais. São considerados um grande risco e perigo para a sociedade.
– Entendi. – Embora parecesse não ter entendido nada.
– Bem, o importante é que você saiba que o grosso, a maior parte dos Outros, é formada por pessoas que seguem Ur, assim como nós. São pessoas como nós que procuram fazer o bem e não o mal.
– E eu nasci lá? Mas… Como vim parar aqui?
Sim, querida. Você é uma dos Outros. Sabemos disto não apenas pelas mantas coloridas. Sua pele tem uma cor diferente da nossa. Já percebeu, não?
– Lógico, minha cor é feia e esquisita.
– Não é feia. Você acha feia por que é diferente da cor que nós temos. Ser diferente não significa que algo é feio, errado ou mal. É isto que quero que você entenda. Sabemos que é dos Outros, porque você é diferente de nós. Além da pele, também há suas orelhas e seus olhos, maiores do que os nossos e de cor diferente.
– Eu sou feia sim, Iá. Não precisa mentir. Já faz tempo que entendi isto. – A voz estava um pouco trêmula, os olhos marejaram. Procurou mudar de assunto. – E como vim parar aqui?
Em casa elas normalmente recolhiam as thugas. Era um hábito já arraigado, que começara desde o primeiro dia. Assim que pisavam em casa, as thugas desapareciam ao comando mental praticamente inconsciente.
Ani gostava de ver as cores de Liara, os cabelos acobreados, agora mais selvagens, encaracolados, fartos e abaixo da cintura entremeados com sua pele ainda rosada, mesmo que mais pálida e os olhos, imensos e verdes. O corpo ainda se definia, mas já era mais alta que a maioria, as pernas imensas.
– Ah, querida, se pudesse se ver com meus olhos entenderia o quanto é bela, mais do que qualquer um de nós. Somos uma raça de pessoas sem graça, resultado de muitas e muitas misturas. Somos quase como os Comuns.
– Que são esses?
– São pessoas sem magia, sem nenhum dom de Ur. Isto não importa. Não posso explicar tudo agora, apenas, acredite em mim: você é muito bonita! – Liara acreditou. Não tinha como não reconhecer sua beleza através daquele olhar e daquelas palavras.
– São seus olhos. – Mas já estava sorrindo.
– Bem, o fato é que você apareceu na frente da Cala, desta forma como estou contando. Ninguém sabe como foi parar lá. É um mistério.
– Minha mãe de carne não me queria?
– Não sabemos, querida. Ninguém sabe. Eu penso que quem te trouxe até nós fez isto para te proteger de algum perigo. Porque estando aqui está fora do alcance deles.
– Mas também poderiam apenas querer livrar-se de mim. – Constatou ela.
– Neste caso não teria sido mais simples mata-la? Não. Quem trouxe você aqui queria garantir que viveria.
– Pode ser. – Concordou.
– Liara, escute. É importante que agora conversemos sobre outra coisa. Depois voltaremos à este assunto.
Está bem. – Liara lembrou-se do motivo de terem esta conversa. O peixe.
– Dentro das raças que existem dos Outros, a mais pura e especial é a dos Elfos, a qual você pertence. São seres que sentem uma conexão muito especial com a natureza e os animais. Dentro desta raça, existem várias classes. Como as que temos aqui: mineradores, construtores, professores. Só que lá são classes diferentes, dedicadas a outros afazeres. Uma destas classes é chamada de Druidas. Eles são os protetores da natureza e dos animais. Não apenas conseguem entender e falar com os animais como podem se transformar neles.
– Ah! – Sentiu a claridade que invadiu sua mente. Tudo se explicava e encaixava agora. – “Então era isto!” – Pensou, sentindo-se leve naquele momento. A leveza era-lhe estranha, após tanto tempo carregando o peso do inexplicável que era.
– Sim. É por isto que você pode entender o que dizem. É por isto que conseguiu se transformar em peixe. – A velhinha observava as emoções passando por seu rosto, tão expressivas como se tivesse dizendo-as.
– E os Surs sabem disto? – Perguntou ela.
– Alguns. Os mais antigos. A maior parte não sabe. Não se esqueça de que se passaram mais de quinhentos anos desde que nosso povo teve contato com algum de sua raça ou classe. Alguns Onais preservaram a história, passando o conhecimento de um para o outro, secretamente. Eles achavam que um dia poderia ser importante para a sobrevivência dos Surs.
– E como vão reagir? Será que vão aceitar?
– Não sei, Liara. Teremos que ver para saber. O importante é que você saiba o que é e entenda que não é errado. É apenas o que você é. Faz parte de você. Não poderia ser de outra forma.
– Entendi, Iá. – E foi bem a tempo, porque neste momento ouviram as batidas na porta. Ani guardou as mantas no baú novamente, vestiram as Thugas e desceram de mãos dadas.
À porta estava Cure, acompanhado de dois assistentes.
– Sim? – Ani perguntou, enquanto percebia que seria mais difícil do que imaginara.
O Cure era uma espécie de protetor da paz dos Surs. Era quem mantinha a ordem decretada pelo conselho e quem executava suas ordens. Em Sur era raro precisarem de seus serviços, mas vez ou outra ocorria algum evento: pequenas brigas entre casais ou entre jovens, muito de vez em quando algum roubo e quase nunca eventos mais sérios, como morte. Sua atuação mais frequente era no cumprimento das regras de Ur: o uso correto da thuga, participação nas reuniões dominicais, entrega dos filhos à Cala, leituras indevidas, arte e atividades não permitidas.
Na maior parte das vezes, os transgressores eram apenas advertidos e apenas em casos mais graves, eram levados à Cura e ali permaneciam até o julgamento do conselho. A Cura era uma edificação pequena, composta da sala onde Cura trabalhava e outro aposento, uma espécie de quarto, onde estes ficavam fechados.
Ani, perdoe o desrespeito, mas recebemos uma acusação de práticas de bruxaria não permitidas pela menina Liara. Terei que levá-la comigo. – Ele segurava o chapéu entre as mãos, parecendo mesmo constrangido. Normalmente era truculento e grosseiro, entretanto, também vivera na Cala até sua segunda infância e, como todos, tinha um profundo respeito pela anciã.
– É mesmo necessário, Serg? – Chamou-o pelo nome próprio, invocando o passado e sua ascendência sobre ele.
– Sinto muito.
– Ela não vai fugir. Deixe-a ficar aqui até a reunião. – Pediu a senhora.
– Não posso. Até para a proteção dela é melhor que vá comigo. As pessoas estão comentando, estão assustadas. Não sabemos o que podem fazer.
– Entendo. – E entendia. Para que ele dissesse aquilo, a situação estava mais séria do temia. – Quem foi?
– Faya e algumas amigas. Estão na praça, contando a todos e incitando-os. – Ani lembrou-se da mulher que treinara por tantos anos. Conhecia seu coração e neste momento alegrou-se por ter feito a escolha certa, uma dúvida que a angustiava de quando em quando, o temor de ter cometido uma injustiça.
Agora entendia que estivera certa, que lera corretamente o coração daquela mulher e que ele continha, tal como percebera na Cala, inveja e egoísmo. Entendeu que Liara estaria mais segura na Cura, protegida por Serg e seus assistentes.
– Liara, não precisa ter medo. Vamos com ele. Você vai passar a noite na Cura. – Apertou sua mão mais forte, reforçando suas palavras.
Ela estava com medo, mas confiava em Ani. Pensou em falar ou perguntar algo, mas as palavras não saiam. Então decidiu que não iria demonstrar o medo, não queria parecer uma menina fraca e chorona e seguiu-os.
Anoitecia quando chegaram à cidade. Passaram pela praça repleta de pessoas que a um primeiro momento silenciaram e recuaram à passagem do grupo e logo após começaram a vaiar. O primeiro som surgiu baixinho, quase imperceptível, foi seguido por outro e outro e outro, sempre um pouco mais forte do que o anterior. Quando entraram na Cura já tinham recuperado a coragem, pela constatação óbvia da maioridade numérica e foi um alívio ouvir a porta sendo fechada às suas costas.
Liara agora sentia medo de verdade, como jamais sentira. Felizmente foi levada ao pequeno quarto, onde desabou na cama. Teria caído se tivesse que ficar em pé por mais tempo. A mãe entrou com ela e sentou-se na cama.
– Liara, não tenha medo. Eles estão apenas agitados com a notícia de algo que não compreendem. Amanhã tudo será diferente, após uma boa noite de sono. A luz do dia coloca as coisas em seu verdadeiro foco.
Ficará aqui, comigo? – Perguntou, aflita.
– Ninguém me tirará de seu lado. Fique calma. Espere aqui. Vou falar com Serg. – Deixou-a deitada e Liara fechou-se em busca de proteção, com os joelhos quase encostados ao queixo, os braços ao redor das pernas. Procurou acalmar-se com os exercícios de Loua. “Não pensar em algo, pensar em outra coisa.” – Dizia-se e era como com os cachorros que tornavam a invadir a mente ao tentar não pensar neles.
Recusou-se a ceder e insistiu, insistiu. Mudou o foco para sua origem e só então conseguiu abstrair-se do que ocorria.
Ani ao voltar à sala do Cure, dissera:
– Ficarei com ela hoje. – Não foi um pedido, apenas uma constatação.
– Naturalmente. – Respondeu ele, ambos sabendo que era completamente contra as regras e ao mesmo que era o certo e inevitável.
Suri entrou naquele momento.
– Ani, vim assim que soube. Como estão?
– Bem, querida. Obrigada por ter vindo. E Lure? – Perguntou em um tom mais baixo.
– Falei com ele. – Respondeu também em tom baixo e afastaram-se para um canto. – Ele será o juiz. Não pode vir, para não parecer que está ao lado dela.
– Sim, lógico. Como estão as coisas lá fora?
– Ao menos o Cure mandou todos para suas casas. Aquela Faya!!! – As narinas de Suri tremiam de indignação.
– Já marcaram a assembleia?
– Sim, amanhã à tarde. Lá fora. – Fez um gesto com a cabeça, indicando a praça. – O que houve, Ani? Ela virou peixe mesmo?
– É a natureza dela. Aconteceu, mesmo sem incentivos ou ajuda.
– Você sabia?
– Sim, desde o começo. Pedi que tivesse cuidado, mas é uma criança. Pobrezinha. Está muito assustada. Quer vê-la? – E à concordância da amiga, entraram no quarto. Liara tinha adormecido. Saíram em silêncio.
– Ao menos dormiu. – Comentou Suri.
– Quem fará a acusação? Faya mesmo?
– Sim. E precisamos decidir quem a defenderá. Você?
Não sei se posso. Não sou assim tão boa para falar. Tenho receio de prejudica-la. – Ponderou Ani.
– Eu poderia fazer, mas talvez seja mais importante que eu testemunhe.
– Nisto tem razão. O testemunho de uma Suri tem mais peso.
– O que faremos? – Perguntou a senhora, passando em revista as pessoas que poderiam ajudar.
– Terá que ser você, Ani. Não há mais ninguém. Acho que deve confiar em sua capacidade. Sei que o amor que sente por ela ajudará a escolher as palavras.
– Tem razão. Não há alternativa. Quais serão nossas testemunhas?
– Podemos chamar seus professores e até mesmo o Sure. E Alendra e os amigos. Pelo que sei ninguém tem nada contra Liara. A menina sempre foi doce e meiga com todos.
– Sim. Bom, é melhor irmos dormir agora, aproveitarmos para descansar.
– Tem razão. Vá. Tentarei conversar com algumas pessoas amanhã de manhã e explicar melhor as coisas.
– Obrigada, minha amiga. – Despediu-se de Suri com um abraço carinhoso.
Ani deitou-se no pequeno colchão que colocaram no piso do quarto. O sono de Liara era pesado, mas inquieto, mexendo-se na cama e falando coisas incompreensíveis. Ani deitou-se ao seu lado e falou com ela baixinho até que se acalmasse e assim dormiram até que o dia chegou.
– Bom dia! – Ani beijou-a quando acordou e deparou-se com a menina quieta, olhando-a.
– Bom dia, Iá. Eu te acordei?
– Acho que dormi demais. Que horas são?
– Não sei, Iá. Acho que é cedo ainda.
– Vou buscar algo para comermos. – Ani foi primeiro ao pequeno banheiro anexo ao quarto, arrumar-se.
– Bom dia! – Disse ao Cure. – Vou buscar algo para comermos. – Avisou.
– Bom dia. Não é preciso. Alendra veio agora a pouco e trouxe para vocês. – Fez um gesto indicando o pacote em cima da mesa.
– Ah, que pena que não nos falamos. Obrigada. – Pegou o pacote e voltou ao quarto.
– Veja, querida. Alendra trouxe nosso café da manhã. – Abriu-o no chão.
– Leite, chá, pãezinhos, geléia de acá e bolinhos doces. – A geléia que você gosta.
– Não estou com muita fome. – Disse Liara, com a voz um pouco triste.
– Faça um esforço para comer. Sempre ficamos mais felizes com o estômago cheio. – Passou uma camada generosa de geléia em um pão e entregou-lhe com um copo de leite. Serviu-se também e comeram em silêncio.
– Iá, o que vai acontecer agora?
– Haverá uma assembleia com os Onais, os idosos mais sábios de Sur. Lure será o Juiz. Eu falarei em sua defesa e vamos chamar testemunhas.
– Testemunhas?
– Pessoas que vão falar sobre você. Acho que a maioria vai falar bem. Você nunca fez mal a ninguém.
– Algumas pessoas nunca gostaram de mim.
– Eu sei o que você é e confio em que seja mostrada com justiça e liberada logo após. Hoje à noite estaremos em casa. – Uma batida na porta interrompeu o diálogo.
Era Oci, velho amigo da Ani. Ao longo da manhã receberam várias visitas e a hora da assembleia chegou mais rápido do que imaginavam.
Na praça foram colocadas cadeiras em um grande semicírculo para os anciões. À frente, mais algumas cadeiras nas quais sentariam a Ani, Liara, Faya e uma testemunha. Lure sentaria na metade do semicírculo. Do lado oposto às cadeiras dos Onais, havia outro semicírculo de cadeiras, menor, para pessoas importantes como o Sure e a Suri, o Cure e seus assistentes.
Os Surs já estavam por ali desde cedo e aguardavam ansiosos. O primeiro Onai chegou e após ele, todos os demais foram entrando na praça e sentando. Lure tomou seu lugar. Na hora determinada, fez um gesto para o Cure que trouxe Liara, Ani e Faya.
Liara olhou para a multidão ao redor das cadeiras. Não conseguia ver onde terminava e calculou que enchiam toda a praça. Teve medo.
O Lure levantou a mão e pediu silêncio.
– Liara, filha de Ani, levante-se.
– Você foi acusada de prática não autorizada de bruxaria. Como se declara sobre a acusação? Culpada ou inocente? – Antes que Liara pudesse levantar e responder, Ani segurou sua mão indicando que ficasse quieta e falou.
– Sr. Lure, até onde sabemos a acusação não envolve bruxaria. A bruxaria, tal como entendo, envolve ritual e elementos de feitiço, para fazer poções ou evocar entidades de outros mundos. – Faya falou em seguida.
– E como denomina o processo de uma pessoa transformar-se em peixe senão como bruxaria, como arte demoníaca dos devotos de Er?
– Senhora Ani, como acredita que possamos designar o que sua filha fez?
– Como um processo natural de sua raça, sendo ela o que é. – Lure aquiesceu e perguntou:
– Liara, filha de Ani, você foi acusada de transformar-se em peixe. Declara-se culpada ou inocente desta acusação?
– Culpada.
– E, sabendo que esta prática, natural ou não, é proibida por nossas leis, porque o fez?
– Eu não sabia. – Respondeu a menina com um fio de voz.
– Para transformar-se em peixe, utilizou algum ritual ou algum feitiço?
– Não, Senhor. Eu apenas me senti como um peixe e me transformei.
– E porque fez isto?
– Por causa da Fada do Rio. – Respondeu. A plateia riu.
– Queira, por favor, explicar para todos o que vem a ser a Fada do Rio. – Lure estava envergonhado.
– Ouvi uma estória sobre uma jovem que se apaixonou pelo rio e tentou até conseguir abrir suas guelras que estavam adormecidas e foi viver entre os peixes. Achei bonito e fiquei tentando também, até que consegui. Só que eu não fiquei vivendo entre eles. Sempre voltei para casa e para a Ani. – A menina pensou que era melhor não dizer que o Lure é que contara esta estória.
– Ah, que estória bonita e comovente! Não se deixem seduzir pelo feitiço da bruxa! – Sibilou Faya.
– É verdade. Fui quem contei esta estória para a menina. Inventei isto para que ficasse quieta, mas ela não sabia. Acreditou e passou a tentar respirar embaixo d´água. Falou disto para mim algumas vezes e era totalmente inocente. – Lure sentiu-se na obrigação de dizer. E a assembleia e a plateia não podiam ignorar seu depoimento.
– A mãe de Liara pediu e eu como dirigente concordei em que a menina fosse dispensada da fase de testemunhos, devido à sua pouca idade. Liara, pode voltar para a Cura. Chamaremos você quando chegarmos a uma conclusão. – Um assistente do Cure acompanhou-a de volta.
– Muito bem, senhores. Agora devemos avaliar se a criança é ou não culpada de prática não autorizada de transformação humana. Passaremos para as testemunhas da defesa. Quem deseja chamar Ani?
– Chamo Alendra, a atual mãe da Cala. – Ouviu Faya bufar ao seu lado.
Alendra sentou-se na cadeira das testemunhas e contou a todos sobre sua vivência com a menina, desde o dia em que chegara até hoje. Aos seus olhos não poderia haver criança mais suave e bem educada. Suri completou o depoimento, fazendo elogios à menina, falando de como ouvia com atenção todos os ensinamentos sobre Ur dados na Casa de Ur.
Após Alendra seguiram-se alguns testemunhos de professores que falaram sobre o bom comportamento da menina. Talvez um pouco falante e com mais energia do que as outras, disseram, mas muito inteligente e obediente. O Sure também foi chamado e declarou que a menina nunca faltou às reuniões dominicais e ficava sempre quieta, prestando atenção. Os próximos a depor seriam as crianças amigas de Liara. Chamou Ilo primeiro.
Ele só fez elogios à amiga e quando estava para ser dispensado, Faya pediu para questioná-lo, no que era seu direito, ainda que não o tivesse exercido até o momento.
– Na última vez em que se viram, o que fizeram?
– Brincamos, comemos bolo, jogamos pedrinhas e … – Neste ponto parou indeciso, olhando para a plateia.
– E? – Pressionou Faya.
– Nos beijamos. – Concluiu ele falando muito baixo.
– Na boca? – Ela perguntou.
– Sim. – E estava completamente vermelho agora.
– Por quê?
– Alguém comentou que tinha visto duas pessoas se beijando e ficamos curiosos para saber o que sentiam.
– E quem propôs esta coisa? – Faya parecia saber muito bem para onde ir. Certamente ficara sabendo de algo antes.
– Liara. – A plateia reagiu, explodindo conversas paralelas. Lure teve que pedir silêncio.
– Não tenho mais perguntas. – Faya dispensou Ilo.
Laa, Raed e Ker confirmaram, com Laa dizendo que foi praticamente forçada a participar e Ker explicando que não beijou ninguém, mas presenciou a brincadeira. Raed também falou que todos ficaram com nojo, menos Liara, que parecia ter gostado. Ani olhou-o dentro dos olhos e o menino ficou vermelho e saiu depressa. – “Traidor, rato.” – Pensou ela.
Agora que já ouvimos as testemunhas de defesa, é a vez das testemunhas de acusação. Quem deseja chamar, Faya?
– Quero chamar o Professor Loua. – Ani não tinha incluído Loua em sua lista, justamente porque já constava da lista de Faya, embora ela não soubesse o motivo.
– Professor Loua, o que tem a dizer sobre sua aluna Liara?
– É muito inteligente e com talento natural para a magia. – Respondeu ele, conciso.
– Diria que ela é igual às outras crianças?
– Sim, apenas mais inteligente e aplicada, apenas.
– Quanto mais inteligente? Pode explicar-nos com algum exemplo?
– Sim. – E contou sobre os exercícios e o resultado destes. E sobre a nota.
– E quantos de seus alunos já tiveram o mesmo desempenho?
– Apenas um, Hir. – Exclamações partiram da plateia. Hir era um jovem que causara muitos problemas aos Surs, criando artefatos proibidos ou perigosos. Fora expulso da sociedade em uma assembleia como esta.
– Obrigada, professor. Não tenho mais testemunhas.
– Ani, pode fazer a defesa.
– Quando Liara chegou até nós, vocês se reuniram aqui mesmo, em uma assembleia informal e decidiram que ela poderia ficar. Todos sabiam que ela pertencia aos Outros, assim como sabem que os Outros são formados de várias raças diferentes de nós, com capacidades outras que não as nossas. – Parou para sentir e viu a piscadela de Suri, em apoio.
– Liara não pode ser considerada culpada de ser diferente, uma vez que nós a aceitamos sabendo disto e também porque ninguém, muito menos uma criança, pode ser considerada culpada por ter nascido nesta ou naquela raça. É Ur quem decide e traça nosso caminho em seu mundo. Foi desejo de Ur que ela tivesse nascido neles e não conosco, que ela fosse um deles e não uma de nós. – Ficou satisfeita com os gestos de concordância que via na plateia.
– Nós podemos questionar os caminhos de Ur? Podemos dizer que ele agiu errado? – Esperou pela resposta sabendo que ninguém falaria sim.
– Se não podemos e se aceitamos Liara, como agora podemos questionar se é culpada ou inocente por ser quem é? Sim, pois a transformação em animais faz parte de sua raça há milênios. Ela pertence a mais antiga e pura raça, a mais próxima de Ur. Ela apenas fez o que nasceu para fazer, o que lhe é tão natural quanto respirar ou andar ou comer.
A plateia aplaudiu e ela sentiu-os favoráveis. Respirou aliviada e sentou-se. Era a vez de Faya.
– Nós a aceitamos sim, entretanto, não sabíamos o que era exatamente. Desde o início esta menina tem o poder mágico de manipular as pessoas. O professor Loua testemunhou sobre sua capacidade intelectual, superior aos de seus colegas e apenas igualável ao de Hir. Todos se recordam dos problemas que nos causou. Esta menina pratica o mal disfarçadamente, sorrateiramente, corrompendo adultos e crianças. Não ouviram sobre a estória do beijo? Até onde irá antes que percebam seu potencial para a subversão de nossos costumes e moral? – Ani percebeu que muitos concordavam com ela.
– E quanto a estas transformações “naturais”, – disse frisando a palavra natural e dando-lhe sentido exatamente oposto. – o que mais veremos no futuro? Como reagirão nossos filhos ao constantemente serem expostos a estas “coisas”. – Novamente frisava, com tom pejorativo.
– O que mais virá no futuro? Teremos que viver inseguros? Teremos que trancar nossos filhos em casa, para não serem contaminados? – Algumas mães já abraçavam protetoramente o filho ou filha.
– É só no que peço para que pensem: em seus filhos, em nossa amada sociedade e em sua proteção. – Sentou-se após esta conclusão.
– Os Onais devem deliberar se a menina é culpada ou não da acusação de prática ilegal de transformação humana. – Anunciou Lure, na sequência, mantendo a ordem.
Os anciões se retiraram para a Casa de Ur e enquanto aguardaram, Ani pôde perceber que a plateia estava nitidamente dividida. Antes que começassem a brigar, os Onais voltaram e um deles falou com Lure, em tom baixo antes de sentar.
– Tragam a menina. – Pediu ele. Liara chegou e Ani segurou sua mão em apoio, ficando ambas em pé, para ouvir o veredito.
– Os Onais decidiram que Liara é inocente da acusação que a trouxe aqui. – Balbúrdia na plateia, protestos, aplausos.
– Silêncio! – Ele ordenou com voz potente.
– Entretando, mesmo reconhecendo que a menina não é culpada por ser quem é, os Onais entendem que ela pode representar um perigo à sociedade, caso não abdique destas práticas.
Assim, daremos à Liara a opção de renegar sua raça e tornar-se um de nós ou será excluída de nossa sociedade. – A menina levantou os olhos para a Ani, sem saber o significado daquilo. A senhora pediu com os olhos, que aguardasse.
– O que decide, Liara?
– Posso falar com ela e explicar o que isto significa, Lure? – E tendo recebido licença, foi com Liara para a Cura, onde sentaram na cama.
– Mamãe, o que é excluída? Vão me matar? – E já chorava, apavorada.
– Claro que não. – Embora, pensou, fosse melhor a morte do que a exclusão.
– Se não aceitar, não poderá mais participar da sociedade de Sur. Nunca mais poderá entrar na cidade e nem em qualquer outra cidade do reino. Ninguém falará com você. Será como ser invisível.
– Ohhh…
– Praticamente não há outra opção exceto aceitar, querida. Basicamente não poderá voltar a se transformar.
– Tudo bem, Iá. Acho que posso fazer isto. – Ani estava visivelmente triste e Liara quis confortála com esta decisão.
Retornaram à assembleia e Liara disse que gostaria de ser como eles e prometia não efetuar mais nenhuma transformação.
– Até que tenhamos certeza de que cumprirá a decisão, não poderá participar das atividades em Sur. Nós lhe daremos um ano, durante o qual será observada. Após este ano, se não existirem novos relatos de práticas não autorizadas, poderá retornar à nossa sociedade, aos seus estudos e será aceita como igual perante todos. – Lure sabia que esta última parte era um despropósito e tentou mudar a decisão dos Onais enquanto elas estavam na Cura. Infelizmente não conseguira. Eles eram os responsáveis por zelar pela sociedade. Não permitiriam riscos.
– Declaro esta assembleia encerrada.
No retorno para casa, Liara e a mãe, estavam quietas. Liara gostaria de falar, mas percebia que ela preferia ficar em silêncio e ficou também, embora estivesse cheia de perguntas.
Liara dormiu junto à mãe, abraçada com ela e mesmo assim teve pesadelos, onde vagava por paisagens escuras e solitárias. Quando acordou viu que sua avó ainda dormia e estava muito quente. Chamou-a e ela tentou levantar, sem conseguir, falando palavras incoerentes. Entendeu que estava doente.
Desceu e lembrando-se das receitas que aprendera em Medicina Básica, fez um chá de folhas de Erenis para Ani. Levou-o com alguns pães que sobraram do dia anterior em uma bandeja. Esforçou-se para fazê-la tomar, mas só conseguiu que engolisse alguns goles. Ani estava sem forças para ficar sentada e Liara era muito pequena para suportar seu peso e ainda manter a xícara na outra mão.
– Iá, espere aqui, vou pedir ajuda.
– Liara, não vá. Eu logo vou ficar bem.
– Mãezinha, preciso ir. Volto rápido. Procure descansar. Durma.
Correu o mais rápido que pode até a cidade. Foi até a loja de Leda que vendia ervas. A vendedora era sua amiga e médica. Assim que entrou, houve silêncio e o ajudante de Leda expulsou-a, antes que pudesse falar algo, fechando a porta às suas costas. Liara bateu e falou que Ani estava doente, mas não houve resposta.
Tentou encontrar Lure, mas não estava em lugar algum. No caminho, as pessoas desviam dela.
Ia por uma calçada e quando a viam mudavam para a outra. Janelas e portas se fechavam. Viu Laa e Ker e correu para eles, confiante que ajudariam. Eles também correram para longe e entraram na casa de Laa.
As lágrimas escorriam por seu rosto ao entender que ninguém falaria com ela. A humilhação e a mágoa não eram tão importantes quanto o desespero em conseguir ajuda para Ani. Sua mãe estava doente, por sua culpa, por ter sido imprudente e agora, poderia morrer. Ela tinha que fazer algo. Alguém tinha que ouvir.
Lembrou-se da Cala, mas suas portas já estavam fechadas. Alguém deveria ter alertado sobre sua presença. Correu para a Casa de Ur. As portas estavam abertas. Suspirou de alívio.
– “Graças a Ur.” – Pensou que sua casa não se fecharia. Entrou correndo à procura de Suri. À sua passagem todos se calavam e desviavam, mas não se importou. Apenas Suri importava.
– Suri! – Exclamou ao encontra-la rodeada de crianças. A mulher ficou parada, sem saber o que fazer.
– Ani está doente. Está ardendo em febre. Por favor, Suri, ajude-a. Sei que não podem falar comigo e já estou indo. Por favor, envie ajuda. Por favor. – Ela não se atrevia a chegar mais perto. Não suportaria ser desprezada também por ela. Suri nada dizia, apenas ouvia.
Liara voltou-se e saiu. Fizera o que podia, agora tinha que voltar e rezar para que não fossem tão insensíveis. Voltou mais devagar, chorando, consumida pela tristeza. Não imaginava que seria assim o ano de observação que lhe deram. Não queria que a mãe percebesse que tinha chorado e até chegar a casa já conseguira recuperar o controle. Lavou o rosto, para tirar qualquer vestígio das lágrimas e subiu para o quarto.
Ani estava ainda muito quente. Liara conseguiu fazer com que bebesse mais um pouquinho do chá. Molhou panos em água fria e colocou em sua testa. Tentou fazê-la comer algo, mas foi inútil. Se ao menos conseguisse levá-la até a banheira! Um banho morno certamente baixaria a febre. Desceu e acendeu um fogo pequeno que serviria para tirar a friagem da água e que não aqueceria muito. Estava para subir quando bateram à porta.
– “Obrigada, Ur. Obrigada.” – Agradeceu em pensamentos antes de abrir.
Suri, Leda e mais duas senhoras estavam à porta. Leda carregava sua sacola de medicamentos. Não falaram com ela. Entraram e subiram ao quarto da senhora. Liara sentia-se tão aliviada que não se importou.
Nos próximos dias ninguém falou com Liara. As mulheres se revezavam nos cuidados com Ani, cuidavam da casa, faziam comida, mas tratavam Liara como se fosse invisível. Algumas vezes ela pensou ter visto um pedido de desculpas no olhar de Suri, mas foi tão rápido que não teve certeza.
Ani esteve muito doente. Em alguns momentos achavam que não resistiria. Liara ouvia suas conversas e sabia o que estava acontecendo. À noite, deitava-se em sua própria cama e apenas conseguia rezar a Ur, pedindo para que não deixasse Ani morrer. Fez tantas promessas que nem mesmo se recordava de todas.
Lembrou-se do discurso de Sure sobre as coisas que Ur nos empresta e de como poderia retirálas se desejasse. Teve certeza de que isto só estava acontecendo por causa da transformação. Ur a colocara naquele lugar, para ser como todos eram. E o que ela fizera? Fora diferente. Ele estava bravo com ela e com razão.
Liara prometeu nunca mais virar peixe. Depois achou que era pouco, então prometeu nem mesmo voltar a nadar. E que devotaria sua vida a ele, a divulgar seu nome, a zelar pelos costumes.
No domingo, foi à igreja. Sabia que não seria bem vinda, mas tinha que ir. Ur precisava saber o quanto ela estava arrependida. Entrou e ficou em pé, quieta, meio escondida em um canto, atrás de um pilar. Os Surs viram que estava ali e ela teve medo que a retirassem, mas deixaram que ficasse.
O discurso de Sure foi justamente sobre os filhos ingratos, que tudo recebem de Ur e não valorizam. Liara sabia que era para ela. E concordou com cada palavra. Ela fora uma má filha, para Ani e fora ingrata com Ur. Ela também fora desrespeitosa com os Surs que a acolheram com tanta boa fé. Arrependeu-se. Ajoelhou-se durante a oração e novamente prometeu a Ur que seria diferente e que ele se orgulharia dela no futuro. Pediu por Ani. Falou a Ur que ela é quem devia ficar doente, não a mãe. Pediu para que a deixasse doente no lugar dela. Que fizesse o que fosse necessário com ela, mas que salvasse Ani.
Foi embora sentindo algum conforto, com a vaga esperança de que talvez Ur a tivesse ouvido e que poderia atender seu pedido.
Aquela noite foi decisiva. Ani teve muita febre. Chamaram o Sure, para preparar seu espírito para ir ao encontro de Ur. Liara não saiu mais de seu lado. Tentaram tirá-la sem conseguir. Ela ficou ajoelhada no chão, segurando a mão de Iá, mesmo quando seus joelhos doíam a ponto de querer gritar.
Em algum momento deve ter adormecido assim, com o rosto encostado na cama, porque acordou em seu quarto. Levantou-se assustada.
– “Ani!” – Tremia enquanto corria para o quarto dela. Entrou e amoleceu de alívio ao ver que continuava lá e que seus olhos estavam abertos.
– Iá! Iá! Você acordou?
– Sim, querida. – Ela respondeu com a voz ainda fraca e deu-lhe um pequeno sorriso.
Eram as primeiras palavras que alguém lhe dirigia durante mais de uma semana. Liara não conseguiu reter as lágrimas, tanto pelo alívio de ver a mãe melhor quanto por receber aquela dose de carinho.
– Não chore, meu bem. Já está passando. Logo estarei como antes. – E tossiu forte.
– Ani, não se preocupe comigo. Estou bem, só feliz por você. Durma, está bem? – Liara não se atreveu a chegar perto dela. Teve receio de que piorasse. Disse isto da porta e saiu.
Nas próximas duas semanas, Liara evitou sair de seu quarto. Não queria causar problemas para a mãe e nem para ninguém. Tinha certeza de que se fosse boa, comportando-se bem, Iá melhoraria. Ia ver a mãe de manhã e à noite, antes de dormir. Ela continuava melhorando a cada dia, o que só reforçava a ideia de Liara de que sua cura estava ligada a seu bom comportamento.
Ela comia o que lhe traziam. Alguém deixava uma bandeja com comida na porta de seu quarto. A maior parte do tempo passava em um estado meio inconsciente quando não sabia se estava dormindo ou acordada. Não pensava em nada, apenas rezava pela Iá e fazia promessas a Ur.
Continuou indo à Igreja. Sempre em seu canto, escondida. Quanto mais duro o discurso do Sure, melhor ela se sentia. Era culpada, tinha que pagar. Era o preço pela cura de Ani. Nunca seria tanto quanto ela merecia.
Ani continuou a melhorar. Um dia levantou-se da cama e desceu as escadas, ajudada por uma das mulheres. Passou a tarde sentada na sala. Chamou por Liara e ela veio. Ficou sentada a seus pés, apenas olhando-a e sentindo-se feliz.
Uma semana após Ani dispensou as mulheres. Disse que estava farta de sentir-se inválida. Apesar de seus protestos decidiram que uma mulher viria todos os dias para os afazeres domésticos até terem certeza de que poderia voltar a fazê-los. Liara queria fazê-los ela, mas teve receio até mesmo de sugerir isto. Não sabia se estaria infringindo alguma regra. Não sabia se seria correto.
Mais uma semana se passou e Ani enfim conseguiu despachar a mulher e tornaram a ficar sós. Era o que Ani esperava para saber o que acontecia com Liara.
Liara se assustaria caso pudesse se ver como Ani a via naquele momento. Os cabelos revoltos e embaraçados, os olhos fundos e ossos aparecendo para todos os cantos. Emagrecera muito. Vivia calada e apática. Ani estava muito preocupada. Tentara saber o que lhe passava pela cabeça, sem resultado. Liara não respondia, apenas dizia que estava feliz por Ani estar se recuperando e dizia para não se preocupar com ela.
Naquele dia, perguntou se a levaria para um passeio à beira do rio. Liara aceitou, feliz por satisfazer um desejo da mãe. Subiram devagar até o começo do rio.
– É tão bonito aqui. – Disse ao chegarem. Sentaram-se em um tronco caído e ficaram olhando a passagem das águas.
– Tão relaxante… – Ani parecia estar gostando e Liara ficou contente, silenciosa, ao seu lado.
– Porque não vai nadar um pouco? – Sugeriu a senhora.
– Não, Iá. Não quero. Quero ficar com você.
– Não me importo. Gostaria de olhar você nadando. – Suri contara que a menina ficara trancada no quarto o tempo todo e que não voltara a nadar.
Liara ficou dividida. Não podia nadar. Prometera a Ur que não voltaria a nadar. Não queria que a avó soubesse ou ficaria triste, achando que ela estava perdendo algo importante. Mas não era importante. Não como a saúde de Iá. Era um preço pequeno para tê-la ali, ao seu lado.
– Iá, por favor, eu não quero. Não fique chateada comigo, está bem?
– Lógico que não, querida. Se não quer, não tem problema. Vamos apenas ficar aqui mais um pouco então. – Ela não iria falar, não agora, entendeu. Teria que ter paciência e esperar.
Foram juntas à igreja naquele domingo. Liara estava preocupada. Sabia que não poderia sentar-se com os outros e também sabia que a mãe não a deixaria ficar em seu canto, escondida.
– Iá, enquanto esteve doente fui à Igreja toda semana. Eles não falam comigo, ninguém mais fala. – Sua voz ficou um pouco embargada ao dizer isto em voz alta pela primeira vez. Mas não queria entristecer a mãe, só queria prepara-la para o que aconteceria. Então engoliu o choro e continuou.
– Eu acho que eles não gostariam que eu me sentasse nos bancos. Tenho ficado em pé, em um canto. E também, prefiro que seja assim. – Era mentira, mas não queria criar um problema para sua mãe.
– Oh, querida. Sinto muito. Eles não fazem por mal, apenas seguem o que foi decidido pelo conselho. Tente perdoá-los, está bem? – Ela tinha parado e acariciava seu rosto. Liara precisou de todo autocontrole para não chorar.
– Sim, Iá, eu sei. Só estou falando isto, para que você não fique preocupada.
– Eu sei. Mas é errado, sabia? Você é filha de Ur, tanto quanto eles e ficará sentada no seu lugar, junto com as outras crianças ou eu ficarei com você, no canto. Eles não vão querer que uma velha senhora como eu, ainda se recuperando, fique em pé durante toda a reunião, não é? – E piscou-lhe sorrindo.
Liara percebeu que a mãe já sabia de tudo que acontecera e estava decidida a mudar o rumo das coisas. Engoliu em seco, com o súbito temor de estarem infligindo alguma regra de Ur. Não podia deixar isto acontecer.
– Por favor, mamãe, não faça isto. Eu quero ir à Igreja. Preciso ir. E ficarei feliz, muito feliz, apenas por saber que você também está lá. Por favor, não quero me sentar com eles.
– Não posso permitir isto. É injusto e indigno.
– Não, Iá. Está errada. Isto é o certo. Eu pequei contra as leis de Ur. Eu estava errada e ficar em um canto não é nada. É o mínimo que posso fazer para mostrar a Ur o quanto me arrependo.
– Querida, está dizendo que merece ser castigada?
– Sim, Iá. É lógico que mereço. Eu me transformei em peixe e não tomei cuidado, como me pediu. Você ficou doente por isto. Foi um aviso de Ur. Ele estava dizendo que tiraria você de mim, porque eu não te merecia, porque fazia coisas que não devia.
-“Desgraçados!” – Ani pensou. Viu o desespero no rosto de sua filha e soube que não mudaria de ideia. – “Não posso permitir que eles destruam esta menina. Não enquanto viver. “ – Mas o que faria. Como mostrar a ela que estava errada?
– Meu bem, vamos parar um pouco? Talvez eu tenha me precipitado ao achar que poderia ir e voltar. – Sentou-se em uma pedra na beira do caminho.
– Você quer voltar, Iá? – Disse a menina, preocupada.
– Sim, por favor. Vamos voltar. Ur entenderá. – Felizmente a menina não percebeu o truque. Não queria deixa-la preocupada, mas não podiam ir à Igreja enquanto continuasse pensando daquela forma.
Liara estava sim, muito preocupada. Pensou que bastou a Ani querer que se sentasse junto com os outros para que ficasse cansada. Era mais um aviso que Ur lhe dava.
Ani passou os próximos dias pensando em como fazê-la entender que não era culpada, que sua doença não tinha sido um castigo de Ur. Toda vez em que tentava conversar sobre o assunto, Liara ficava tão nervosa e agitada, que era obrigada a mudar de assunto. Resolveu dar tempo a ela e deixou que seguisse como desejava.
Aos poucos Liara parecia despertar da letargia que lhe tomara nos últimos tempos. Sorria de vez em quando, recuperava o apetite e saia às vezes. Na maior parte do tempo, apenas subia no alto da encosta ou no telhado e lá ficava quieta, olhando para o nada. Nunca mais voltou ao rio, mas vez por outra saia para caminhar obrigada pela Ani ou quando esta recebia visitas.
Doía demais ver Suri, Lure ou Alendra entrando na casa e a ignorando. Passou a evitar as pessoas e sempre que alguém vinha saia antes, andava por horas sem rumo e só voltava para casa perto da noite.
Seis meses se passaram. Apesar de tudo o tempo passou rápido para Liara e não foi tão ruim como imaginara devido a dois acontecimentos insólitos.
O primeiro ocorreu cerca de três meses após a assembleia. Liara estava voltando para casa após uma de suas caminhadas quando ouviu vozes próximas. Sem saber a quem pertenciam, escondeu-se atrás de uma pedra para esperar até que se fossem e acabou ouvindo a conversa. – Não aguento mais. Vamos parar um instante. – Uma voz arfante de homem disse.
– Não. A cidade está próxima. Precisamos contar a todos o mais rápido possível! – Respondeu outra voz masculina desconhecida.
– Cinco minutos não farão diferença. Estamos correndo desde que saímos da mina. Vou parar nesta pedra até recuperar-me um pouco. – Ele estava se encaminhando para onde ela estava agora.
– Talvez tenha razão. – E chegaram ainda mais perto. A pedra onde se escondia não era grande. Se chegassem mais perto a veriam.
– Estou cansado! – Liara tentou sair antes que chegassem, mas gravetos ao entorno da pedra estalaram quando se mexeu.
– Que barulho é este? – Perguntou um deles.
– Não sei. Algum animal, talvez. – Respondeu, desinteressado.
– Deixa ver.
– “Pronto!” – Liara pensou – “Agora estou perdida. Ficarão bravos, com certeza.”
Os passos se aproximavam e Liara só conseguia pensar no quanto gostaria de ser invisível para que não a vissem. Fechou os olhos e ficou repetindo baixinho que era invisível e que ele não a veria.
Ouviu-o chegar onde estava. Tinha a respiração ainda ofegante. Parou um instante e depois disse ao outro:
– Não há nada aqui, mas é melhor irmos embora antes que anoiteça completamente. – Ele teria ficado com pena dela para não a denunciar?
As vozes foram se afastando e Liara criou coragem para abrir os olhos. Estava sentada, abraçando os joelhos com os braços e o rosto pouco acima deles. Seu olhar recaiu em seus joelhos, ao menos onde deveriam estar, porque não viu nada além do chão e dos gravetos que se partiram quando ela tentou sair, mais cedo.
Procurou por suas mãos, seus braços, seus pés e não havia nada. Era como se tivesse desaparecido.
– Estou invisível! – Notou, com horror.
Ao se levantar, com o primeiro movimento, tornou a ficar visível, mas não menos assustada. Correu para casa. Precisava ver sua mãe, saber se estava bem.
– “Era mais um dos poderes de sua raça? Era magia? Ou … “ – Pensava em todas as hipóteses, mas aquela era a pior de todas. – “Sua thuga seria a responsável? Teria vida própria?” – Céus. Estava com medo. Queria tirar a thuga. Sentia-a como se fosse um bicho grudado em sua pele. Correu ainda mais rápido.
– Iá! Iá! – Começou a gritar assim que avistou a casa. A mãe saiu à porta.
– O que houve, menina? Porque está nesta gritaria?
– Iá, graças a Ur! Você está bem? Preciso tirar a thuga. Iá, acho que ela está viva! Não sei, tem algo estranho nela. Ficou invisível. Iá, eu posso ficar invisível, quer dizer, os de minha raça podem? Se não podem, foi a thuga. Não fui eu, não fui eu! Eu só desejei ser invisível, só isto. Não foi minha culpa. – As palavras saiam incontroláveis de sua boca, enquanto abraçava a mãe, entrava na casa e tirava a thuga.
– Ok. Tudo bem. Calma. Respire pausadamente contando até dez. Enquanto isto vou pegar água para você.
– Um… dois… três… Iá, você está mesmo bem? Está escondendo algo?
– Algo como, querida? – Perguntou a mãe retornando com o copo d’água.
– Está sentindo alguma dor? Deixa ver se está quente. – E colocou a mão na testa da Ani. Só depois de verificar que estava normal é que tomou a água.
– Então, deixe-me ver se entendi. Você ficou invisível por algum motivo que não entende e está apavorada por achar que sua thuga pode ser responsável e também por achar que vou ficar doente por isto?
– Se não foi a thuga, se fui eu, quer dizer… Fiz o que Ur não quer e ele pode me castigar tirando você de mim ou deixando-a doente novamente.
– Hum… Entendi. Como pode ver minha saúde está melhor do que nunca. E não me parece que vou cair doente daqui a pouco. E agora quero ver você ficar invisível.
– Não, mamãe.
– Eu estou pedindo, Liara. Você está obedecendo. Não será sua culpa, certo?
– Está bem. – Fechou os olhos e desejou ser invisível, sem sucesso. Depois tentou sentir-se invisível e também não aconteceu nada. Tentou de novo e de novo e de novo e nada!
– Não está acontecendo…
– Hum… Vista a thuga e tente novamente.
– Está bem. – Cobriu-se por completo com ela e desejou ser invisível.
Olhe, Liara! Funcionou. – Liara abriu os olhos e olhou para baixo, procurando pelo seu corpo. Nada. Quando ergueu os pés para vê-los, voltou a ficar visível.
– Da outra vez também aconteceu isto. Assim que mexi, deixei de ficar invisível. – Explicou para a avó.
– Certo. Então, fique assim, com os braços para frente e faça de novo. Não se mexa enquanto eu não falar, ok?
– Sim. – E fechou os olhos. Abriu-os ao aviso da avó. Onde antes estavam seus braços, agora não havia nada.
– Estou toda invisível, mamãe? – Perguntou.
– Sim, querida. Se não falasse eu nem mesmo saberia que está aí. – Ani aproximou-se, tocandoa. – Bem, não ficou sem corpo. Está aqui, inteirinho. Só que invisível. Que maravilhoso!
– Maravilhoso, mamãe? Como pode falar isto? Depois de tudo que ocorreu… – Liara encaminhou-se para o sofá, quebrando a invisibilidade.
– Está mais do que na hora de termos uma conversa definitiva sobre o que aconteceu. Você acha que foi culpada pela minha doença, não é?
– Não acho. Eu sei que sou. Porque me transformei em peixe, todas as aquelas coisas ruins aconteceram e você quase morreu. O Sure diz que tudo que temos é um empréstimo de Ur e que ele pode pegar de volta quando quiser. E aqui ninguém vira peixe e eu virei e Ur ficou bravo e você ficou doente. Quando eu prometi para ele que nunca mais viraria, você melhorou.
– E porque Ur ficaria bravo por você se transformar em peixe?
– Ele me trouxe para cá, onde ninguém faz isto.
– Exatamente, ele trouxe você para cá, mas te fez nascer em outro lugar. Não acha que ele poderia ter feito você nascer aqui se quisesse que fosse como eles?
– Mas…
– Porque Ur daria a você estes dons, a capacidade de se transformar, de falar com animais, de entender a magia, se não quisesse que você os utilizasse? Acha que ele estaria sendo justo com você?
– Não. Olhando assim, não, mas a igreja, o povo.
– Ah, sim, a igreja e o povo. A igreja é feita pelo povo, que interpreta a vontade de Ur da forma que é mais conveniente ao momento. E eles, e não Ur, não querem, não gostam de seus dons.
– Mas o Sure, ele não é a voz de Ur, assim como Suri?
Eles são pessoas como nós, Liara. Têm defeitos e qualidades, fraquezas, medos, incertezas, como nós. As leis de Ur hoje estão embaralhadas com as leis dos Surs de tal forma que fica difícil entender o que é de quem.
– E como podemos saber?
– Pela lógica, pelo bom senso e pelo coração. Veja, você tem dons maravilhosos. Seria um crime se não pudesse usá-los, até mesmo para o bem dos próprios Surs.
– Mas e a assembleia?
– A assembleia é um instrumento das pessoas, não tem ligação com Ur. Eles sentem medo do desconhecido, do que pode acontecer e por isto querem te impedir de seguir seus instintos e de ser o que você é. Isto é errado.
– Entendo o que diz, mamãe. Talvez esteja certa quanto a Ur. Não sei. Tenho que pensar um pouco mais nisto, mas quanto à assembleia, nós não podemos fazer nada, exceto obedecer, não é?
– No momento temos que obedecer. Mas, veja, é importante que você entenda esta distinção entre a lei dos homens e as leis de Ur. Um dia você poderá ir embora, encontrar a saída para o Outro lado e reencontrar as pessoas de sua raça, iguais a você.
– Não, mamãe. Jamais deixarei você. – E abraçou-a.
– Tolinha. Você ainda tem toda sua vida pela frente e eu…
– Vai viver muitos e muitos anos, comigo.
– Sim, querida. Pretendo mesmo, mas… Talvez seja a vontade de Ur levar-me de volta para seu lado e neste caso eu quero ir tranquila, sabendo que você estará bem e que saberá seu verdadeiro lugar no mundo.
– Mas não agora.
– Não. Não agora. E este será o teste definitivo. Veja, você utilizou uma magia para ficar invisível. Não é algo próprio de sua raça e funciona por causa da thuga. Nós comandamos nossas thugas, deixando-as com um ou outro formato, mas o que você fez hoje foi muito além. Ela ficou invisível ao seu comando. Não conheço ninguém que já tenha adquirido esta capacidade de controle do Ká. – Esperou para que a menina compreendesse.
– De acordo com seu pensamento, ao utilizar magia, estaria fazendo algo proibido por Ur e poderia ser castigada. Eu serei sua comprovação de que estou certa, ao não adoecer. Que tal?
– Tem certeza, Iá? E se…
– E se nada!
– Bom, mas e a assembleia? – E contou à mãe sobre uma conversa que ouvira alguns dias antes. – O que Ilo disse a meu respeito, mamãe?
Ah, aquele moleque ingrato! Bem, querida, não foi tão sério. Apenas contou sobre uma brincadeira de beijos no dia de seu aniversário.
– Oh… Liara ficou muito vermelha ao imaginar que todos sabiam. – A mãe riu, divertida. – Não se preocupe. Todos com a idade de vocês fizeram o mesmo. Eu fiz, sabia?
– Foi mesmo?
– Sim. Tinha um garoto em minha classe. O danado era bonito como só ele. Éramos amigos. Vivíamos juntos para todo canto. Estudávamos juntos, brincávamos, enfim, inseparáveis. E um dia brincamos de beijar também. Para ser sincera, brincamos algumas vezes. – Ela estava com uma aparência sonhadora e feliz.
– E o que houve, Iá? Você se casou com ele?
– Ah, não, querida. Eu estava designada para ser a próxima Ani e você sabe, nós não nos casamos, vivemos para as crianças. Ele se casou com outra quando teve idade suficiente.
– Que triste…
– Bom, na época chorei um pouco, achei injusto. Depois o tempo foi passando, as crianças precisavam de mim e entendi que esta era minha verdadeira vocação. Teria sido infeliz presa a um casamento e a um único filho. Bem, mas voltando ao nosso assunto, a assembleia é nossa maior lei, acima da qual apenas a lei de Ur. Não temos como não obedecer.
– Então?
– Eu não deveria dizer isto, mas mesmo sabendo que podemos estar entrando em uma grande encrenca, acho importante que você aprenda a dominar esta nova habilidade. Ela pode ser importante para você no futuro, dela pode depender sua sobrevivência algum dia. Sei que Ur lhe mostrou esta capacidade tão prematuramente por um motivo e acho que ignorar este dom não seria sábio.
Ani rezou para estar fazendo a coisa certa. Ela não tinha certeza. Nunca fora contra as regras de Sur e muito menos desobedeceu a um decreto decidido em assembleia, mas seguia seu instinto neste momento, mesmo lutando contra décadas de obediência que faziam soar sininhos de advertência em sua mente e faziam seu coração bater mais rápido.
– Você acha mesmo, Iá, que posso continuar treinando invisibilidade?
– Dentro de casa. Não vamos correr riscos desnecessários. Promete?
– Prometo, Iá.
– E outra coisa, falei com Suri hoje. Você não pode continuar sem nada para fazer. É ruim para uma criança saudável como você, esta falta de ocupação e de afazeres. Ela vai conversar com seus professores e tentará trazer suas lições para que estude em casa. No final do ano, talvez possa realizar a prova e ser aceita para o próximo ano. O que acha?
– Ah! Sinto tanta falta de estudar! Mais do que tudo! Obrigada, Ani.
Faremos assim: de manhã você me ajuda com a casa, pois já é uma mocinha e precisa saber cuidar de si mesma. À tarde estudará e eu te ajudarei. Após os estudos poderá fazer uma caminhada ou algo que queira. O que acha?
– Vou adorar, mamãe. – Abraçou-a feliz e Iá sentiu que tinha sua menina de volta, como era antes.
O segundo acontecimento que acabou com a monotonia daquele ano foi justamente o assunto que levara aqueles dois homens a correr até a cidade: a descoberta de uma jazida com um minério de Ká nunca visto, absolutamente puro e totalmente transparente.
Segundo ficamos sabendo por Suri, mineiros de uma mina afastada distante quase dois dias da cidade, estavam finalizando um veio antigo. O local de escavação aprofundado depois de tantos anos de exploração desembocara em um imenso depósito deste novo Ká. Uma gruta de proporções inacreditáveis, absolutamente incomum no minúsculo reino.
Os construtores ficaram eufóricos com o potencial do novo minério, logo denominado de Urká, o Ká digno de Ur. Minas foram abandonadas e os mineiros deslocados para o novo posto.
No dia em que iniciariam o processo de extração deram com dois gigantes guardando a entrada do depósito. Obviamente não eram seguidores de Ur, com as peles morenas repletas de desenhos expostas a qualquer um. Homens com mais de 3 metros de altura, peitos largos, músculos extremamente desenvolvidos e o olhar surpreendentemente dócil.
Nada faziam, nada diziam. Apenas postavam-se de braços cruzados na entrada, como guardiões da jazida. Como armas traziam lanças e arcos com flechas às costas. Tentativas de diálogo foram infrutíferas, bem como qualquer entrada pacífica.
Os Surs viviam em paz, não eram guerreiros, não sabiam mais como lutar, nem mesmo tinham armas. Ainda que as tivessem, não saberiam usar. O bom senso dizia para darem a volta e esquecerem o Urká.
Entretanto, os Surs julgavam-se os legítimos proprietários de toda aquela terra e de tudo que continha, nisto incluso a gruta e o depósito do mineral.
Uma assembleia foi organizada às pressas e entre as mais variadas hipóteses venceu a da oferta de presentes e aproximação amigável.
Elas recebiam as notícias dos avanços, ou na verdade, do não avanço, praticamente todos os dias. Era o assunto de Sur, de todas as conversas. O assunto Liara fora absolutamente esquecido. Ainda que não tivessem esquecido também dos termos da assembleia (e isto era uma lástima), vez por outra acabavam por esquecer que deveriam ignorá-la e, no calor da notícia viam-se contando também a ela ou olhando-a a espera de uma reação.
Liara não parecia se deixar seduzir, tão pouco demonstrava tanta simpatia quanto esperavam após meses de isolamento. Ela deixara de sair durante as visitas, mas apenas porque não tinha mais tanto tempo livre a perder em passeios sem rumo e não porque ansiasse por este contato, como poderiam imaginar. Na realidade, eles agora pertenciam a um mundo ao qual ela não sabia mais como entender ou decifrar e que a incomodava, ainda que não soubesse interpretar exatamente como ou por quê. E nem que gastasse tempo pensando nisto.
Todos os professores concordaram em enviar-lhe o material do ano letivo e, juntando com as tarefas domésticas e o treino de invisibilidade era tanto a fazer que ela tinha sorte quando conseguia uma hora ou duas para uma caminhada em busca de ar fresco.
O professor Loua enviara os princípios básicos da magia sobre a matéria, várias amostras de Ká para seus experimentos e mais um exercício incompreensível: anotar todos os pensamentos que pudesse e posteriormente catalogar cada um de acordo com sua origem: fato ou pensamento e o sentimento que despertara. Teve que se impor um limite diário ou passaria nisto o dia inteiro. Assim, anotava e catalogava 10 pensamentos todos os dias.
Ani insistiu em que aprendesse ao menos o rudimentar da culinária, a despeito dos infinitos bolos queimados, murchos ou empedrados do ano anterior. Disse que todas as pessoas deviam saber cozinhar o suficiente para não morrer de fome, mas o argumento definitivo foi que se um dia ela, Ani, ficasse doente poderia precisar que Liara fizesse a comida de ambas. E arrematou dizendo que gostaria de poder contar com algo ao menos passável. Surpreendentemente desta vez seu desempenho não foi tão ruim e começou mesmo a ter um interesse saudável pelo assunto.
Elas já não consumiam nenhum tipo de carne. Liara começou a sentir repulsa por carne, por imaginar que fosse algum de seus amigos. Peixe estava completamente fora de cogitação. Liara nunca falara com as cabras, mas sabia que também eram seres como os demais. Não poderia comê-los. Explicou a Ani que no início relutara, principalmente pelo temor da falta de energia que diziam trazer. Após algumas pesquisas, com a ajuda das Onais, conseguiram organizar uma seleção de receitas que supririam toda necessidade energética. Em algumas semanas Ani confessou que o novo regime lhe fazia bem, talvez até mesmo mais do que o anterior. Liara sorriu.
Naquela manhã sua primeira torta de vegetais cheirava excepcionalmente bem e ela estava orgulhosa. Estavam à mesa quando Lure chegou, cumprimentando-as.
– Bom dia. O que o trás aqui hoje? – Perguntou Ani.
– Vim pescar. Estava precisando de um pouco de isolamento para pensar. E pensei em fazer-lhe uma visita. Cheiro bom. O que é?
– Torta de vegetais, feita pela Liara.
– Oras, oras, oras. Que surpresa. – Comentou, piscando para Liara. Ela olhou para o prato com atenção exagerada.
– Sente-se, coma conosco e conte-me: a situação está assim tão ruim?
– Ah… Nem me lembre. – Mas sentou-se e parecia contente em falar. – Não sei o que há com aqueles gigantes. Parecem estátuas. Não saem do lugar, não falam, não aceitaram nenhum dos presentes que levamos. Em resumo, continuamos na estaca zero.
– Porque simplesmente não desistem? Parece óbvio que estão guardando o depósito. Talvez seja um local sagrado para eles.
– Está em nossas terras, portanto é nosso. E é muito importante para nós. Os construtores desenvolveram já uma série de protótipos de artefatos que podem ser criados com o novo mineral. É incrível! Daremos um salto em nossa qualidade de vida com o Urká.
– Só precisam tirar os gigantes da frente.
– Vamos conseguir. É uma questão de tempo. Ei, esta torta está mesmo muito boa. – Sorriu para Liara novamente, embora ela fizesse de conta que não tinha visto.
– Também acho. Coma mais um pedaço. E o que vão tentar agora? – Respondeu a mãe.
– Justamente isto que vim pensar. Sugeriram algo que considero, hum…, perigoso.
– Vão atacar os homens?
– Não, não. Tentaremos fazê-los adormecer com setas de Losi. – Era uma planta muito utilizada como tranquilizante, em forma de pasta para dores musculares ou de chá para acalmar os nervos.
– Supondo que dê certo, farão o quê, após? Ficarão adormecidos pelos próximos anos? E os outros que devem estar lá dentro?
– Uma coisa de cada vez. Primeiro vamos tentar adormecer os gigantes. Se conseguirmos, entraremos e veremos o que encontramos lá dentro. Se possível, tentaremos tirar ao menos mais uma porção de Urká. – Boa sorte. – Ani desejou.
– Obrigado. Agora vou. Depois volto para lhes contar. E obrigado pela torta. Realmente deliciosa.
Ani e Liara olharam-se significativamente.
– Acha certo, mamãe?
– Adormecerem os gigantes?
– Insistirem em pegar esta pedra, mesmo parecendo claro que pertence aos gigantes e não a nós.
– Não sei, querida. Algumas questões ficam nebulosas e difíceis de enxergar claramente quando existem dois lados e só vemos um deles. Seria bom se eles se manifestassem, falassem algo.
– Talvez não saibam falar nossa língua.
– Pode ser. Ainda assim, poderiam gesticular ou desenhar, caso desejassem estabelecer contato.
– Verdade. Esquisito.
– Às vezes tenho receio de que este seja o início de algo muito ruim para todos nós e gostaria que esquecessem o assunto. Sei que não vão desistir. Então, apenas rezo para que tudo termine bem.
– Vou rezar por isto também, mamãe.
– Muito bem. Agora, deixe a cozinha por minha conta e vá para suas lições.
Liara estudou até quase o final da tarde e só então saiu para sua caminhada. A mente estava cansada, mas o corpo pedia por ar e espaço. Aprendera a gostar destes momentos solitários, quando podia deixar a mente solta, sem rédeas. Apreciava o cheiro da terra após a chuva e mesmo o vento que antes lhe parecia hostil, agora era um amigo. Nos dias em que ventava mais forte, nem caminhava. Subia no alto da encosta e ali ficava com os braços abertos, sentindo-o no corpo. Às vezes sentia que se fechasse o olho e se soltasse, flutuaria como uma pena, levada por ele. Era uma espécie de fascínio, de desejo, que nunca se permitiu experimentar, incluído no rol de seus dons banidos. “Algum dia farei isto.” – Prometia-se.
Nos outros dias caminhava. Às vezes ao longo do rio, cujas águas a acalmavam. O simples fato de ficar próxima delas aplacava um pouco do desejo de nadar ou de virar peixe. Ou percorria algumas trilhas desconhecidas, só para ver onde iriam dar. Quase sempre em lugar algum, em nenhuma paisagem diferente. Sempre as pedras, a vegetação rala, o solo arenoso. Eventualmente dava com alguma casa solitária ou mina ou aldeia.
Foi recompensada um dia, ao encontrar um local com terra, meia dúzia de árvores mirradas e algumas grandes pedras meio cobertas de ervas. A junção de três destas pedras criou um nicho que era parcialmente tapado pelos troncos das árvores e pareceu a Liara que seria o esconderijo perfeito, caso algum dia necessitasse de um.
Era tão silencioso e quente lá dentro que rapidamente tornou-se seu local predileto e onde se refugiou muitas vezes na época em que se afastava de casa para não ver ou ser vista pelos visitantes de Ani ou depois, quando apenas queria ficar quieta. De alguma forma parecia sentir-se melhor após ficar ali algum tempo.
Nesta tarde, foi para este lugar que se dirigiu, agitada com a questão dos gigantes.
Ela deixou os pensamentos vagarem enquanto se dirigia ao refúgio, conforme apelidara o local. Apenas caminhava de forma solta, sem prestar muita atenção ao caminho, deixando que os pés fizessem o trajeto tão conhecido.
Sentia os cheiros da terra da qual se aproximava, os sons do vento passando pelas folhas das árvores, a sensação de estar em casa. Não conhecia outra natureza que não fosse aquela e por minguada e rala que fosse ou talvez por isto mesmo, saboreava cada pedacinho daquele cenário.
Muito fugazmente, como aqueles pensamentos rebeldes que tentavam escapar pela lateral quando tentava focar a mente em algum tema específico, talvez tivesse passado por sua mente a ideia que de no outro lado pudesse existir outras paisagens diferentes. Talvez mais árvores, plantas e flores, ainda que não conseguisse formar em sua mente este retrato, sem referências passadas.
Não conseguia nem mesmo imaginar um sol que não fosse pálido. Como seria? Qual seria a sensação na pele? E na paisagem? Como refletiria na copa das árvores quando ao cair da tarde ou nas águas do rio ao amanhecer? Quando observava as infinitas gradações de cinza em um destes momentos com seu sol enluarado, tentava imaginar como seriam se ao invés das variações de cinza fossem cores. Mas, se nem mesmo as cores conhecia direito, como poderia pintar a tela em sua imaginação?
Talvez não existissem de fato. Talvez fossem apenas estórias, como a Fada do Rio. Ou, mesmo que existissem, as cores poderiam não ser tão bonitas como diziam. As cores poderiam desagradáveis de se ver, como quando comemos tortas de Alirias demais e ficamos enjoados depois.
Aquela paisagem que tinha sob seus olhos era tão calma, tão pacífica e repousante, tão absolutamente harmônica, que era difícil crer que pudessem ser diferentes e conter a mesma beleza plácida.
– Invencionices, com certeza. – Falou consigo mesma, parando um momento para observar o refúgio próximo, quando notou fumaça saindo do meio das árvores ralas.
– “Incêndio? Como?” – Eram tão raros por ali, tão pouco a queimar, que ficou surpresa mais do que temeu. Ainda assim, aproximou-se devagar e pela lateral.
Bem em frente à pequena gruta formada pelas pedras havia uma minúscula fogueira de gravetos verdes, que mais servia para fazer fumaça do que para fazer fogo.
– Mas quem faria tamanha idiotice? – Perguntou-se baixinho.
Pé ante pé chegou um pouco mais perto. Dentro da gruta havia algo que se mexia. Com esforço conseguiu entender que era uma pessoa deitada, um homem, pelo tamanho. Uma pessoa que não usava thuga e que tremia de frio.
– Lógico! Com este vento. Deve estar muito frio aqui sem thuga. – Ela não sentia por estar com sua thuga, o que todas as pessoas normais faziam em Sur.
Talvez tivesse se machucado e com isto perdido a thuga. Aproximou-se para verificar se precisava de ajuda.
– Olá. – Falou baixinho, a uma distância que considerou segura. Dali poderia correr ou esconder-se atrás de uma pedra e ficar invisível se fosse o caso. A pessoa não pareceu ouvir.
– Olá! – Disse mais alto. Chegou mais próximo e um pouco mais, até que ficou em frente a ele. Era um menino grande, do tamanho de um adulto, tremendo muito e parecendo inconsciente. Liara tocou seu pé para ver se reagia e assustou-se com o quanto estava frio. Entendeu que ele estava próximo de um congelamento e poderia morrer se não fizesse algo.
Olhou ao redor tentando pensar. Não podia dar-lhe sua thuga. Não havia nada com que pudesse cobri-lo.
– A fogueira! – Tinha que juntar madeira seca e fazer uma fogueira de verdade. E ela sabia onde havia um tronco de árvore caído não muito distante. Correu para o local. Era um tronco fino, mas ainda assim era um tronco. Felizmente estava já um pouco apodrecido e esfarelando em alguns pontos que se romperam facilmente. Voltou ao refúgio com uma boa quantidade de do tronco em pedaços grandes e pequenos.
Arrumou-os devagar ao redor do pequeno fogo que o garoto fizera com os galhos verdes. Com calma conseguiu fazer o fogo pegar nos pedaços menores e em pouco tempo alcançariam os maiores. Voltou ao tronco para pegar o que sobrara e aumentou a fogueira que agora já atingia um tamanho razoável para aquecer bastante até onde ele estava.
– “Acho que aguentará até meu retorno.” – Pensou ao observar seu trabalho. Tocou novamente o menino. Continuava frio, mas não tanto. Tremia ainda.
– “Fique aqui. Volto logo.” – Disse mesmo sem saber se ouviria, antes de voltar-se para o caminho de onde viera.
Voltou correndo para casa, torcendo para ser tão rápida quanto precisava naquele momento. Precisava voltar ao refúgio antes que a fogueira apagasse, com mantas e comida quente.
Lembrou-se de Ani somente ao entrar na casa, esbaforida e dar com ela olhando-a.
– Iá, eu não posso explicar isto agora, mas vou precisar pegar algumas coisas e sair novamente. Assim que voltar eu te conto tudo, juro. – Foi falando e subindo para o quarto. Tinha uma thuga reserva. Pegou-a e também duas mantas grossas, de lã de cabra.
A mãe ainda estava parada, em pé na mesma posição, quando desceu e pegou junto à lareira dois pedaços grandes de resíduo de Ká. Eram sobras do Ká usado pelos construtores. Ficava poroso e queimava durante horas antes de extinguir-se. Lembrou-se da comida e foi até a cozinha pegar algo.
Ani tinha já preparado uma sopa para o jantar. Despejou um pouco em uma garrafa que tampou, pegou algumas frutas e um pedaço de pão enquanto falava:
Tem um garoto em uma gruta. Ele está sem thuga e quase morrendo de frio. Preciso levar isto rápido. Não fique preocupada. Eu volto logo. – Colocou tudo que pode em uma sacola grande e após um beijo, saiu.
A fogueira ainda queimava quando chegou. Verificou o menino e embora mais quente, continuava inconsciente. Pegou primeiro a thuga e a encostou em sua pele, torcendo para que funcionasse. Era uma thuga genérica, que poderia ser usada por qualquer pessoa, mas não sabia se este qualquer pessoa envolveria outros que não fossem Surs e estava claro que ele não era um Sur. Respirou aliviada quando reagiu ao contato com a pele envolvendo-o rapidamente. Arrumou-a manualmente, abrindo um espaço na área dos olhos, para que ele não estranhasse ao acordar.
Em seguida, cobriu-o com uma das mantas. Gostaria de colocar outra por baixo dele. O chão deveria estar muito frio, mas ele era pesado demais. Teria que esperar até que acordasse. Reanimou a fogueira com os resíduos de Ká. Deveria ser o suficiente para toda esta noite.
Examinou mais uma vez o menino. Parecia estar apenas dormindo agora. Não tremia mais e o corpo estava quente.
– “E agora?” – Deveria tentar acordá-lo? Talvez fosse melhor deixar que dormisse. Estava escuro agora. Felizmente era noite de lua cheia ou teria dificuldades para voltar. Lembrou-se da mãe que deveria estar aflita e decidiu que o restante poderia aguardar até o dia seguinte.
Para ter certeza de que ele os encontraria ao acordar, deixou a garrafa com a sopa e os outros alimentos que trouxera dentro da gruta. Olhou-o mais uma vez, cheia de perguntas para as quais gostaria de ter respostas e voltou para casa.
Deveria contar tudo para Iá? Por algum motivo não queria fazer isto. Ao mesmo tempo, não teria como não contar e também não tinha uma razão concreta para não o fazer.
Ficou contente consigo mesma por ter feito tudo tão bem. – Pensei rápido. – Concluiu. – E não hesitei. – Elogiou-se ainda. Sorriu. Era a primeira vez que alguém precisava dela.
– Se bem que… – Continuou a reflexão – não sabia ainda nada daquele menino. Poderia ser perigoso, ruim? – Franziu a testa, tentando decidir. Não tinha como saber ainda.
Abriu a porta com cuidado para não acordar Ani, na vaga esperança de que tivesse adormecido enquanto esperava. Umas boas duas horas haviam passado desde que saíra.
– Liara?
– Sim, mamãe.
– Então, mocinha. Pode explicar agora?
– Sim. Desculpe.
A mãe estava sentada no sofá tecendo. Era um hábito, talvez apenas para relaxar, já que nunca fazia avanço significativo. Liara notou como parecia pequena sentada ali com os pequenos olhos meio míopes apertando-se para vê-la. O coração ficou pequeno com a ternura que sentiu e piscou para desanuviar os olhos.
– “É estranho como posso estar com ela todo o dia e agora parecer que não a vejo há muito tempo e perceber como não notei antes as rugas que vejo agora e o quanto é frágil.” – Considerou enquanto sentava ao seu lado, ainda quieta.
– Você já jantou, mamãe?
– Não. Fiquei preocupada com você e não tive fome.
– Então, vamos comer enquanto conto?
A mesa já estava posta e a sopa permanecia quente no fogão. Serviu dois pratos e sentou-se.
– Tem um lugar que encontrei a algum tempo do qual gosto muito. Chamo de Refúgio. Foi lá que encontrei o menino. Ele não usava thuga e estava com muito frio. Acho que teria morrido congelado se eu não tivesse chegado. Estava tremendo demais e sua pele estava gelada, gelada, mamãe. – Parou para tomar uma colherada de sopa. A mãe ouvia quieta.
– Ele não tinha roupas de frio. Quando vi, pensei que poderia ser um dos gigantes, mas ele é do nosso tamanho, então não deve ser. Não sei quem é. Não parece ser dos Surs. – Uma ideia passou pela sua cabeça. – Mamãe, será que ele também é dos Outros?
– Ele falou alguma coisa? – Ela perguntou.
– Não. Estava dormindo até a hora que sai. Mas já estava quente e tinha parado de tremer. Deixei uma fogueira acesa e a comida, caso ele acorde antes que eu volte. – O que acha?
– Pode ser perigoso. Talvez seja melhor avisarmos o Lure ou o Cure. – Ela ponderou, com certa razão.
– Não, mamãe. Por favor, não vamos contar nada ainda. Vamos esperar até saber o que ele é.
– Mas porque, querida?
Liara não sabia explicar. Ele era seu. Foi ela que o encontrou. Era a ela que devia a vida. Tinha receio de que o tirassem dela. Parecia egoísta e talvez fosse mesmo, mas também tinha medo por ele. Porque parecia diferente como ela e tinha receio do que fariam. Imaginou-o em uma assembleia, ouvindo todos decidirem seu destino. Ele teria algum dom, como ela? E se tivesse? Como lidaria com uma proibição de uso? Ela tinha Ani e ele?
No fundo, mesmo que não admitisse, Liara sabia que não queria que outros soubessem por que ele talvez fosse como ela. O fato de ser diferente dos outros não o tornava igual a ela, mas era uma aproximação maior do que a que tinha com os outros Surs. E Liara não queria abrir mão desta possibilidade antes mesmo de saber. Mas, como explicar para a mãe?
– Por favor, Iá. Deixe-o comigo, ao menos até que esteja bom. Vou tomar conta dele direitinho, juro. E vou tomar cuidado, também.
– Não sei, Liara. Não parece certo.
Só amanhã então, Iá. Volto lá amanhã cedo e se estiver bem, viremos para cá e então você decide. – Propôs, para ganhar tempo.
– Vou com você.
– Não, mamãe. É longe. Quase uma hora daqui. E pode ser perigoso para você. Eu posso ficar invisível ou correr. Você não. – Ainda que a contragosto, acabou por concordar.
Liara demorou muito para conseguir dormir naquela noite, a cabeça revirando hipóteses, das mais prováveis às mais loucas.
Liara aproximou-se devagar e olhou. Não havia mais fogueira. Ele estava sentado na entrada da gruta, comendo. Ela nem sabia quanto medo tivera de que tivesse morrido durante a noite até vê-lo vivo e sentir um alívio tão grande que deixou escapar um suspiro alto demais.
Ele ergueu-se e pegou a lança em um único movimento, pondo-se em posição de defesa.
– Morzalla kati? (Quem está aí?) – Ela entendeu perfeitamente, sem saber como.
– Vrid ken. (Não tenha medo) – Tinha realmente falado aquilo? Tocou a própria boca em dúvida.
– Krabico kati? (Quem é você?) – Como ela podia entender o que ele dizia?
– Liara. – Aproximou-se o suficiente para que a visse. Devagar. Com as mãos espalmadas na frente do corpo, mostrando que não estava armada.
– Grodesi iabá ontei? (Foi quem fez isto?) – E fez um gesto ao redor, indicando a roupa, a manta e a comida.
– Ibei. Krabico envinou. (Sim. Você estava gelado.) – Relaxou ao ver que ele depunha a lança e foi até ele.
Era realmente um menino. Talvez 15 ou 16 anos. Tinha o corpo bem desenvolvido, largo e forte. Os Surs tinham ossos pequenos e constituição fraca. Era a primeira vez que via alguém assim. Teve vontade de tocar em seu braço para ver se era tão duro quanto parecia.
Ainda estava com a thuga, mas ontem Liara pode ver que usava apenas uns penduricalhos na frente do corpo, abaixo da cintura. Não usava mais nada no restante do corpo que era coberto com desenhos em cores estranhas para ela. Até mesmo o rosto tinha aqueles desenhos.
Mesmo agora, com a thuga, parecia muito diferente deles. Não apenas o corpo. O rosto também era largo, grande. Os cabelos eram pretos, lisos e longos. Os homens de Sur mantinham os cabelos cortados curtos. Ele devia parecer afeminado por isto, mas Liara achou que era o contrário. Que parecia mais homem do que todos que conhecera.
Não tinha medo. Apesar de emanar força, não parecia realmente agressivo.
– Jokói. (Obrigado.) – Falou.
– Ohkó. (De nada.) – Respondeu. Sua cabeça estava rodando um pouco e sentou-se no chão. De onde vinham aquelas palavras? Como sua boca podia falar algo que não estava em sua mente? Onde aprendera?
– Krabico kati? (Quem é você?) – Perguntou-lhe.
– Inoliói. – Respondeu.
– Mundo? – Era este o significado da palavra.
Ele acenou com a cabeça, concordando.
Oneshu? (De onde vem?) – Ele não respondeu e sentou-se também. Com as pernas cruzadas uma sobre a outra, em uma postura que Liara não conhecia. Ela sentava com as pernas dobradas ao lado do corpo.
– Abrishu? (Para onde vai?) – Já que não respondera a outra pergunta, talvez pudesse explicar isto.
Ele não respondeu também. Tinha parecido entristecer-se com a pergunta anterior e Liara viu que agora estava ainda mais triste.
– Tanlá honkati? (Quer vir comigo?) – Não queria força-lo a nada, mas não sabia mais o que falar. Talvez Ani ajudasse a entender.
– Rikalú? (Para onde?) – Olhou-o com o canto dos olhos, parecendo desconfiado.
Liara contou que morava com a mãe, perto dali. Disse que não precisava ter medo. Que lá poderia comer e seria mais quente.
Ele parecia amedrontado, como se temesse estar indo para uma armadilha. Estava fugindo? Do quê? Ou, de quem?
– Bentik olí. (Pode vir depois) – Liara disse levantando-se e virando-se para voltar para casa.
Ele ficou sentado, sem se mexer até que se afastou. Conforme foi andando, sentiu, mais do que percebeu, que estava seguindo-a a uma distancia segura e por isto andou devagar. Queria ter certeza de que saberia o caminho.
Queria tanto saber mais sobre ele. Parecia desamparado com aquela tristeza que tentava ocultar no silêncio. Era apenas um menino, afinal de contas.
– “Na verdade,” – pensei, – “Em Sur já seria considerado um adulto.” – Mesmo assim, não era certo.
Lembrou de que tinha entendido tudo que falara e falado também naquela língua estranha. Tentou lembrar-se das palavras e foi estranho, porque não conseguiu. Recordava apenas o sentido da conversa.
Sua mãe estava na cozinha que era justamente o local que queria. Pegou um pedaço grande do bolo que tinha feito, juntou algumas frutas e uma garrafa com leite de cabra e colocou tudo em uma bandeja enquanto conversava.
– Já estava ficando preocupada. – Ani dissera assim que entrou. – Ele veio?
– Veio, mas está escondido. Acho que tem medo. Veja lá na janela, pela fresta. Vou deixar estas coisas na porta, para que ele pegue se quiser. Talvez entre.
Enquanto ela ia para a janela, abriu a porta e colocou a bandeja no chão. Olhou ao redor, sem vê-lo, mas sentindo que estava perto ainda.
– Mundo. – Chamou. – Shu Krabico. (Para você.) – Disse, apontando a comida e entrou, deixando a porta apenas encostada e indo para a janela com a mãe.
Ela queria conversar, mas Liara fez um gesto pedindo silêncio e aguardaram quietas.
Mundo surgiu por trás de uma pedra, em postura de defesa, com a lança preparada. Olhou para todos os lados e passo por passo aproximou-se da porta. Pegou as coisas da bandeja com as mãos, de forma muito rápida e afastou-se em um pulo, desaparecendo a seguir. Liara suspirou.
– Isto não vai ser nada fácil. – Sua mãe concordou. – O que você falou na porta?
– Mundo. É o que significa o mundo dele. É mais fácil de dizer do que a palavra que usou.
– Conte. O que ele falou? Como entende nossa língua? – Olhou-a meio incerta em prosseguir.
– Ele não fala. Eu é que falo a dele.
– Como?
– Não sei, Iá. Quando ele falou, entendi e antes que percebesse aquelas palavras estranhas saíram de minha boca. É só isto. Não estão em minha mente. Não consigo repetir qualquer uma delas para você. Não lembro. Não sei. Quando estou com ele, elas surgem espontaneamente. Eu não penso. É como se surgissem de algum outro lugar. Pensei que você poderia ter alguma explicação.
– Os peixes!
– O que têm eles?
– Não entende o que dizem? Não fala com eles? E os outros animais? É a mesma coisa. – Considerou aquilo.
– É, pode ser. Será que posso entender qualquer língua e não apenas as dos animais, então?
– É o que parece. – Ela olhava-a daquele jeito bobo, como se a menina fosse espetacular.
– Ah, pára! – Reclamou. Sabia como sentia-se sobre seus dons. Achava que eram mais uma maldição do que um bem. Mudou de assunto, contando-lhe sobre a conversa, ou pelo menos, sobre a tentativa de conversa.
– Sabe, Iá, tive a impressão de que está fugindo de alguém ou alguma coisa. E que está com medo e também triste. Senti pena dele, assim, em um lugar estranho, sem conhecer ninguém e nem falar nossa língua. Ele teve sorte em me encontrar. Poderia ter sido qualquer pessoa e imagina! – Ambas sabiam que não teria sido bom.
– O que vamos fazer? – Liara perguntou.
– Esperar até que confie em nós. Depois decidimos. Um passo de cada vez. – Respondeu.
– Não vamos contar para ninguém, não é?
– Não acho que seria bom para ele. Melhor aguardar um pouco mais. – E rezou para estar certa.
Os próximos dias seguiram um ritmo próprio ao qual acabaram por se acostumar.
De manhã Liara deixava a bandeja na porta para Mundo, esperava até que ele aparecesse para pegá-la e depois ia cuidar de sua própria vida.
Às vezes ele ajudava a fazer algo fora de casa. Limpar o terreno, consertar alguma telha e coisas deste tipo. Já aceitava a presença de Ani sem desaparecer com um pulo. Mas nada o convencia a entrar em nossa casa e nem a conversar com ela.
Liara continuava ajudando sua mãe com a casa e a comida, fazia suas lições de casa e treinava invisibilidade.
Sobre isto, sentia-se cada dia mais frustrada. O avanço era praticamente nulo. A única coisa que aprendeu é que podia mexer-se o quanto quisesse desde que não saísse do lugar. Bastava levantar um dos pés e voltava a ficar visível. Naturalmente era uma fonte de irritação e normalmente ela precisava de uma caminhada depois do treino.
Levava mais comida e resíduos de Ká para a fogueira noturna de Mundo. Quase não conversavam. Parece que Mundo não era muito falante. Resolveu não forçar e esperar. Ele mostrou-lhe uma pequena nascente de água que encontrara e ela o levou ao rio. Avisou para tomar cuidado e não se deixar avistar por outras pessoas.
Ele era ágil e eficiente. Caçava pequenos animais e pescava peixes com sua lança de uma forma que tudo parecia ser muito fácil. Liara explicou que não gostava de matar animais e nem comer carne, porque eles eram seres vivos também. Ele falou que Itshara, a Mãe Terra, não se importava desde que só matassem o que precisassem para comer. Como não queria explicar sobre virar peixe e estas coisas, ela não disse mais nada.
Voltava para casa ao anoitecer e ele sempre ia junto. Sabia que fazia isto apenas para protegêla e algumas vezes tentou dizer que não era necessário. No fundo, gostava de ter sua companhia, mesmo que ficasse quieto na maior parte do tempo. Convidava-o para entrar toda vez e ele sempre recusava.
À noite ela e a mãe ficavam em frente à lareira, conversando. Ela penteava seu cabelo e depois tecia. Às vezes Liara estudava, mas quase sempre conversavam.
Ani era muito querida e o povo de Sur não a esquecia. Por mais que Liara tivesse criado certa resistência a eles, aquilo a comovia. Não passava um único dia sem que alguém aparecesse à tarde. Era como se houvesse um sistema de rodízio e um por um, a cada dia, entravam na casa, com algo nas mãos. Normalmente algo de comer, como uma fruta, um pedaço de doce ou uma torta especial que tinham feito em casa e que traziam para repartir com ela.
E ela nunca precisava ir à cidade para comprar nada. Encomendava para um e no dia seguinte o próximo visitante trazia a encomenda. Sabia que gostavam de Ani de verdade, mas também pensava no quanto aquilo não se devia aos receios de que pudesse fazer mal a ela. Talvez fosse meio neurótico de sua parte. Em todo caso, achava bom que ela fosse assim, protegida.
Eles contavam as histórias da cidade e ela sabia tudo que se passava com cada um deles através daquele sistema. E à noite contava a Liara os casos engraçados ou interessantes, embora nos últimos tempos as notícias fossem mais sobre os Gigantes.
O plano de adormecer os guardiões não deu certo e isto porque no dia em que tentariam houve uma movimentação nova entre eles. Alguns mais apareceram na entrada do depósito de Urká, inclusive mulheres e crianças. Pareciam agitados, gritando algo e olhando para todos os lados. As crianças seguiram o túnel de escavação até o exterior e passaram algum tempo ali fora, esquadrinhando o lugar e gritando. Não aguentaram o frio por muito tempo e voltaram para o interior. No outro dia apareceram cobertos de peles e as mulheres menores conseguiram sair pela entrada. Não se afastaram muito da entrada, mas ficaram por mais tempo na superfície. Duas das mulheres ficaram à porta com seus arcos armados e prontos para disparar.
Ani e Liara concluíram que buscavam por Mundo. Liara contou-lhe, o que foi um erro, pois ele percebeu que ela sabia quem ele era e talvez tenha achado que o levaria de volta ou os traria até ele, pois desapareceu assim que ouviu.
Estavam voltando para casa naquele dia. Chamou-o várias vezes antes de desistir e seguir sozinha.
– Do que será que tem medo? Terá feito algo errado? – Considerou à noite.
– Talvez. A mãe dele deve estar preocupada. Imagino o que eu sentiria se você desaparecesse. – E fez-lhe um carinho no rosto.
– Será que estamos agindo certo em ficarmos quietas? – Era mais um pensamento em voz alta.
– Tente conversar mais com ele amanhã, querida. Já lhe demos bastante tempo. A cada dia é mais provável que alguém o veja naquele lugar ou mesmo aqui em casa.
– Eu tento Iá, mas ele não cede um milímetro.
– Será que eu não conseguiria?
– Comigo traduzindo?
– Sim.
– Vou tentar, vamos ver.
Mas na manhã seguinte Mundo não apareceu para pegar a comida. Liara acabou não estudando à tarde, de tão preocupada e foi ao refúgio levando comida.
Ouviu vozes ao se aproximar e rapidamente escondeu-se atrás de uma das árvores. Eram pessoas de Sur, revirando seu refúgio. Estavam com as mantas nas mãos, mostravam os restos de fogueira e os traços de alimentos.
– Alguém está vivendo aqui, Ore. – Falou um deles.
Com certeza. A questão é quem e por quê. Não sabemos de ninguém desgarrado. – Respondeu o que devia se chamar Ore.
– Juf, fique aqui de guarda, vamos à cidade e traremos o Cure. – Tornou a falar o outro.
Ela não conhecia nenhum deles, mas não conhecia muitos que viviam nas aldeias próximas. Deviam ser de uma delas e estarem passando por ali a caminho da cidade quando descobriram a gruta.
Ia ficar invisível para não ser avistada por eles quando viu Mundo um pouco atrás, com o dedo na boca, encaminhando-se para os homens. Percebeu que ele pretendia lutar.
Fez gestos dizendo que não, enfaticamente, mesmo correndo o risco de ser vista. Seria a pior coisa de todas, porque, exceto se matasse todos, saberiam que não era um Sur que estava vivendo ali e tudo estaria acabado.
Mandou que se escondesse e fez o mesmo até que os dois homens fossem embora. Ainda ficara um deles, mas conseguiram sair dali sem que percebesse. Assim que entraram em uma área segura, ela bateu em seu ombro, com a raiva do medo.
– Seu idiota! Quase estraga tudo. O que estava pensando? Ia matar todos eles?
– Não. Não matar. Apenas fazer dormir. Iam pegar você.
– E acha que precisava de sua ajuda? Dê só uma olhada nisto, seu burro! – Ficou invisível enquanto falava.
Ele pareceu apavorado e ajoelhou-se antes que ela voltasse ao normal, o que fez o mais rápido que pode.
– Hei, hei. Tudo bem. É só… algo. Algo que sei fazer e que é útil.
– Você é uma deusa. Perdoe por não ter percebido. – Ele continuava ajoelhado, mal olhando para ela, com as mãos estendidas para frente.
– Levante-se, Mundo. Não sou deusa. É só magia. Vocês não usam magia?
– O que é magia? – Ele perguntou, confundindo-a.
– Ah, é… Controlar a matéria com a mente. Mais ou menos isto. Fazer coisas com a imaginação que você não pode fazer com os braços.
– Acho que não usamos magia.
– Aqui é natural. Desde criança aprendemos sobre magia. Isto que me viu fazer não é algo comum, mas também não é inexplicável. Depois explico melhor. Agora temos que ir. Eles voltarão e começarão a procurar.
– Ir para onde?
– Para minha casa.
Não posso. – Mundo parou e cruzou os braços em frente ao peito, para demonstrar a decisão.
– E porque não?
– Sua casa não está purificada. Espíritos podem me tomar ali.
– O que está dizendo? Minha casa não tem espíritos maus.
– O curandeiro tem que purificar todas as casas antes que possamos entrar nelas.
A cabeça de Liara dava voltas tentando entender e resolver ao mesmo tempo. Sabia que não tinham muito tempo. – “Droga! Bem que Iá poderia estar aqui. Ela saberia o que fazer.” – Pensou, frustrada.
– E se ficarmos aqui os Surs é que vão pegar você e vão leva-lo para a Cura, onde ficará trancado e vão lhe fazer montes de perguntas e depois vão leva-lo de volta para a gruta. O que prefere? Espíritos ou pessoas em carne e osso? – Falou irritada.
Mundo pareceu ainda indeciso, mas descruzou os braços e a seguiu.
– Vou com você até lá. Para que fique segura. Mas depois vou embora. – Ele disse.
– E para onde vai? – Ele fez um gesto vago, que indicava que iria sair andando sem rumo.
– Você não entende. Não há para onde ir. Sur é muito pequeno. Será encontrado sem nossa ajuda. – Como iria explicar a ele sobre a cortina de fumaça e que não havia como sair?
– Eu me viro. – Insistiu, teimoso.
– Tive uma ideia. Tem um lugar onde poderá ficar esta noite. Amanhã veremos.
Lembrara-se de sua casa no telhado. Olhou-o disfarçadamente procurando medir seu tamanho. A casa era pequena, mas achou que caberia. Ao menos para esta noite.
Quando chegaram Ani estava na porta, esperando. Liara explicou a situação rapidamente.
– Liara, traduza, por favor. – E começou a falar, sem meias palavras.
– Escute, rapaz, você está em um lugar com costumes diferentes dos teus. Não sei como é lá, mas aqui, recusar hospedagem é considerado uma ofensa muito grave a nossos deuses e eles costumam punir severamente quem faz este tipo de coisa. – De onde Iá tirara aquilo, Liara não sabia, mas traduziu.
– E nossa casa foi purificada pelo nosso curandeiro. Está completamente livre de espíritos. – Continuou.
Mundo olhou para Liara pedindo confirmação. Ela cruzou os dedos atrás das costas e fez que sim com a cabeça.
Nem mesmo o espírito de um animal, por menor que seja, garanto. – Afirmou e ele entrou na casa, devagar, olhando primeiro para certificar-se. As duas acharam graça, mas esconderam o riso.
Sentaram-se na sala e Liara contou então tudo, devagar. Analisaram a situação e concluíram que iriam lá, com certeza. Mundo teria que ser escondido. Isto seria fácil. O problema maior seria mentir para o Cure e seus assistentes. Caso fossem descobertas depois a situação ficaria complicada.
Liara pensou em quantas mentiras sua mãe já estava envolvida por sua causa e teve pena dela. Não merecia isto naquela altura da vida.
– Escute, menino. Vivemos em um reino que tem normas muito severas sobre vários assuntos. Liara e eu estamos infringindo várias delas desde que você apareceu. E se vamos continuar queremos saber exatamente no que estamos nos metendo. – A mãe falava e Liara traduzia, facilmente.
– Vou preparar algo para comermos e enquanto isto você vai nos contar tudo a seu respeito. – Continuou, já levantando.
– Está bem. O que quer saber? – Ele parecia aceitar sua liderança.
– Pode começar dizendo se veio daqueles gigantes que apareceram perto de uma de nossas minas há algumas semanas.
– Sim.
– Você não parece gigante. – Liara falou.
– Não. – Ele pareceu triste ao concordar.
– E então? – Instigou a mãe, para que prosseguisse.
– Eu não sou grande como eles. Quando nasci, era normal, como todos. Mas depois não cresci. Fiquei assim, pequeno. O curandeiro falou que é por causa de uma dívida de meus antepassados.
– E você é o único deste tamanho ou existem outros? – Ani perguntou.
– Só eu. Meus irmãos são até maiores do que meu pai. Eu sou o primeiro filho. Meu pai é o chefe e eu deveria chefiar depois dele, mas todos riem de mim. Até meu pai, prefere meus irmãos. Ensina a eles o que deveria me ensinar. E minha mãe também gosta mais deles. Acho que sentem vergonha de mim.
Liara e Ani entreolharam-se. Mundo estava visivelmente triste agora. Felizmente Ani acabara de fritar os bolinhos doces e colocou o prato em sua frente, junto com um copo grande de leite.
– Coma isto, filho. Tudo parece pior com a barriga vazia.
– Obrigado. – Ele comeu em silêncio, sempre com os olhos baixos.
Liara, coma um pouco também. – Ani estava aproveitando para lavar alguns utensílios e arrumando coisas na cozinha enquanto ele comia. Quando viu que já estava pronto, continuou.
– Então você fugiu por causa das brincadeiras e para que seus pais não precisassem mais sentir vergonha? – Perguntou.
– Mais ou menos. – Pareceu acanhado em continuar.
– Como assim?
– Eu pensei que se encontrasse uma solução para nosso problema, talvez pudesse ser diferente.
– Vocês tem um problema? – Ani perguntou, bem mais interessada agora.
– Sim, … – Um barulho lá fora interrompeu o que começava a dizer. Ani fez um gesto para que ficassem em silêncio enquanto olhava pela fresta da janela.
– Não vi nada, mas por segurança quero que os dois subam. Liara, leve-o para meu quarto e entrem embaixo da cama. Fiquem lá até que eu suba e diga para saírem.
– Sim, Iá. Vamos, Mundo. – Ela pegou em sua mão, puxando-o, nervosa.
Mundo quase não coube embaixo da cama pesada de Ani. Quando conseguiu entrar, Liara também entrou e ficaram quietos, esperando.
Ani saiu da casa. Cure e dois homens chegavam pela entrada.
– Boa tarde, Serg.
– Olá, Ani. Como vão as coisas por aqui?
– Tudo bem. E por lá? – Neste ponto já estavam bem próximos.
– Viu alguma pessoa desconhecida nestes dias?
– Não. Por quê?
– Ani, recebemos uma denúncia de que há alguém acampado aqui perto. Não sabemos quem é ou se é dos nossos. – E apontou para um dos homens, que ela não conhecia.
– É verdade, Senhora. Somos da vila de Leru. Estávamos indo para Sur quando vimos os sinais do acampamento. Meu parceiro e outros homens já foram para lá. – Ele falou.
– Resolvi vir aqui antes, Ani. Sua casa é a mais próxima do lugar e você sabe… Isolada demais. Só você e a menina. Fiquei preocupado.
– Oras, Serg. Que gentileza! Muito obrigada. Mas não houve nada. Estamos bem.
– Fico contente. De qualquer forma, só por precaução, podemos dar uma olhada na casa?
– Não há necessidade. Estivemos trancadas desde ontem por causa do vento. Ninguém entrou. – Ele pareceu ponderar sobre aquilo e estava pronto para insistir quando o outro falou.
– É melhor irmos, Senhor. Quanto mais demorarmos, mais difícil será seguirmos seus rastros com este vento. – De fato, o vento estava ainda mais indócil desde ontem.
– Ani, por precaução, o Vors ficará aqui até encontrarmos o responsável. Não posso deixá-las desprotegidas. Exceto se quiserem ir para a cidade, por enquanto.
– Que bobagem, Serg. Nem sabe se é perigoso. Estamos bem. Leve-o.
– Sinto muito. Ele fica. – Ele estava daquele jeito, constrangido, por ter que impor sua autoridade a ela.
– Não quero ninguém lá dentro, atrapalhando nossa rotina e intimidade.
– Ele fica aqui fora.
– Serg, está muito frio para alguém ficar aqui fora.
– Está acostumado. É treinado para isto. – Ani percebeu que Serg não desistiria.
– Tudo bem. Pode ficar. À noite verei como faremos. Olhou para o rapaz que se mantinha em posição rígida de sentido. – Pensou em como era jovem.
Muito bem, Ani. Voltarei assim que tivermos notícia. Mesmo com Vors aqui, seria bom não facilitarem. É melhor que fiquem dentro da casa, vocês duas. – Dito isto, despediu-se rapidamente e saiu com o outro homem.
– Vors, não é? – Sim, senhora.
– É de onde? – Não era um de seus alunos.
– De Onen – Uma vila quase na fronteira de Sur.
– Deve ser muito bom para ter sido aceito como assistente de Serg.
– Obrigada, Senhora. Tive um bom desempenho e ele foi bondoso comigo. – Falou, humildemente.
– Muito bem. Precisa de algo? Comida, bebida?
– Não, Senhora. – Mostrou-lhe um cantil e uma mochila onde deveria levar alimentos. – Aqui tenho uma pequena barraca que armarei à noite. Estarei bem.
– Certo. Até mais então.
– Até, Senhora.
– “E esta agora?” – Pensou Ani, retornando a casa. Sem dúvida complicaria a situação.
Subiu as escadas até seu quarto.
– Liara, Mundo. Podem sair. – No que foi obedecida rapidamente. Sentaram-se à cama.
– Iá, o que houve?
– Estão procurando por ele e Serg deixou um de seus homens aí em fora, para nos proteger.
– Droga! – Falou Liara.
– Olhe a boca, menina.
– Desculpe, mamãe.
– Mundo terá que ficar aqui em cima. Não poderemos ficar com as janelas fechadas todo tempo e aqui ninguém entrará e também não será visto de lá. – Liara traduziu.
– Talvez fosse melhor que eu me entregasse. – Ele falou, preocupado agora.
– Não. Nem pense nisto. – Liara tinha muito medo do que fariam com ele.
– No momento não faremos nada, menino. Daqui a uns dois dias desistirão da busca. Vão concluir que a pessoa retornou à sua aldeia.
– Será? Sur é pequeno. Saberão que não foi ninguém de nós.
Teremos que esperar para ver. – Ela falou. Fique aqui com ele. Vou descer e fazer alguns ruídos para que ele não desconfie.
Liara e Mundo ficaram quietos, pensativos, durante algum tempo. Por fim, ele rompeu o silêncio.
– Esta magia de que falou mais cedo. Pode explicar? – Pediu. Liara olhou em torno, pensando em como explicaria. Lembrou-se da banheira.
– Venha. – Foram até o banheiro. – Vê isto? – Perguntou abrindo a torneira de água quente.
Ele pôs a mão e tirou instantaneamente, fazendo-a rir.
– Não queima, bobo. Só está quentinha. – Então explicou o funcionamento e como a magia atuava.
Liara apontou a banheira, a pia e voltando ao quarto, todos os móveis e a parede e o teto.
– Tudo que estou mostrando foi feito com magia. A base é a mesma. Um mineral chamado Ká. Sabe o que é um mineral?
– Sim. Nós fazemos algumas coisas com um deles.
– Muito bem. Aqui em Sur só temos este minério, mas temos vários tipos dele. Do mais duro ao mais macio. E usamos para tudo, praticamente. Tiramos da terra e usamos a forja. – Olhou-o para ver se sabia o que era ao que ele balançou a cabeça positivamente. – Com a forja conseguimos dar várias formas a ele.
– Isto não é magia.
– Não. Até aí não. Nós usamos a magia para transformá-lo em tudo que não conseguimos moldar com a forja. Esta roupa que te dei, por exemplo, a thuga.
– Thuga. – Ele repetiu, pegando na roupa.
– Sim. Você percebeu como ela é diferente das tuas? Às vezes fica mais grossa e em outras fica mais fina e, veja isto. Aos olhos espantados de Mundo, foi mudando a aparência de sua thuga para os vários formatos que costumava usar.
– Entendeu?
– Sua roupa obedeceu ao seu pensamento?
– Isto mesmo. Podemos fazer isto com todo minério de Ká. Espere aqui. – Correu até seu quarto e pegou as amostras de Ká que Loua enviara para os exercícios.
– São amostras de minério de vários tipos. Pegue este. – Entregou-lhe o mais negro deles.
– Sente com é pesado? Agora veja este. – Pôs o mais claro na outra mão do menino.
– Não é leve? – Ele concordou. – E são o mesmo minério. Este daqui, indicou o mais claro, pode até mesmo boiar na água, de tão leve.
Boiar na água?
– Sim. Não afunda. Quer ver?
– Sim. – Foram até o banheiro e Liara abriu a torneira para encher a banheira.
– Depois podemos aproveitar para tomar banho. – Cheirou-o e tapou o nariz. – Você está fedendo! – Ergh.
– Como se você estivesse com um cheiro muito bom. – Retrucou o menino carrancudo. E era verdade. Estavam ambos sujos e suados da aventura da manhã.
Liara colocou todos os minérios na água. Eles afundaram, exceto o mais claro. Mundo pareceu fascinado.
– Enquanto termina de encher, vou te mostrar algo. – Voltaram ao quarto com os pedaços.
Liara colocou-os no chão e fechou os olhos. Eles começaram a vibrar, alguns mais levemente e outros mais intensamente.
– Nossa! – Ele falou.
– E veja isto. – Liara estava se exibindo, contente. Era orgulhosa de seus avanços naquela área.
Pegou um dos pedaços na mão e ele assumiu vários formatos diferentes: redondo, chapado, irregular, quadrado, com pontas que pareciam pernas. Ela colocou este último no chão e o minério saiu andando.
– Oh! – Mundo estava com a boca aberta.
– Sim. E isto não é nada. Eu estou só aprendendo. Fazemos muito mais com isto. Sabe a luz daqui de casa? É feita com minério, óleo e lã de cabra. Mas controlamos com a magia para que não pegue fogo e fique apenas iluminando.
– E eu posso fazer também? – Liara olhou-o com sérias dúvidas à pergunta.
– Não sei. Nós fazemos isto fácil. Todos nós fazemos. Nas plantações, usamos magia para ajudar as plantas a crescerem. Até as crianças menores fazem alguma magia. Mas, você? Não sei.
– E como você aprendeu o restante? – Ele quis saber.
– Eu estudo para isto. No futuro serei uma construtora. A melhor de toda Sur. Os construtores criam objetos e artefatos que melhoram a nossa vida. E fui designada para ser uma. – Ela sorriu orgulhosa.
– Você me ensina?
– Não sei posso. Temos que ver com Iá. E também, não sei se você consegue aprender. – Olhou-o em dúvida.
– Se você pode, posso também.
Hahahaha – Ela riu, deixando-o carrancudo.
Iam começar a brigar quando se lembraram da banheira. Correram para lá e estava quase derramando já.
– Você primeiro. – Ela falou. – Já tomou banho quente alguma vez na vida?
– Em nosso mundo temos uma lagoa com água quente. É gostoso.
– Tire tudo e lave sua thuga também. Ela seca rápido, mas vou procurar alguma coisa para você vestir depois. Vou deixar na porta. E aqui tem uma toalha.
– Obrigado. – Ele falou antes de fechar a porta.
Mundo deve ter gostado, porque ficou no banheiro por muito tempo. Liara não encontrou nada que lhe servisse e teve que se contentar com um roupão grande que encontrou no armário de Iá. Nem sabia de quem era ou o que estaria fazendo ali. Encheu novamente a banheira e tomou seu banho, saindo sem a thuga, como era seu hábito com a mãe, usando a roupa de baixo, uma calça e camisa, que considerou ser decente o suficiente.
Ele estava no quarto, mexendo nos minérios.
– “Tentando fazer magia.” – Liara concluiu. Ele parou à sua entrada e ficou olhando-a com uma expressão esquisita.
– O que foi? Nunca viu?
– Você é bonita! Muito branca, mas muito bonita. – Ele disse.
– Muito branca? Aqui sou considerada muito rosa. – Riu satisfeita.
– Todos vocês são bonitos assim, sem a roupa?
– Para falar a verdade, não me acham bonita. Sou diferente deles e feia. – Falou meio constrangida. – É por causa da cor da minha pele, dos olhos grandes, da cor dos cabelos e das orelhas. E também sou maior do que eles. Ou seja, quase tudo. – Concluiu.
– Como eles são?
– Como Iá. São menores do que eu. E os cabelos são escuros, no máximo um marrom claro. Os olhos também são escuros e menores do que os meus. As orelhas são redondas e a pele deles é muito, muito branca. E eles também são um pouco enrugados na pele.
– Verdade, sua mãe é assim. – Liara concordou com a cabeça.
– E porque você não é? – Ela suspirou, enquanto pensava se devia contar.
– Quando eu era pequena, com alguns dias de vida apenas, alguém veio até a cidade e deixoume na porta da Cala, onde minha mãe me encontrou. Eles falam que venho de outro lugar, do outro lado da cortina. Você veio de lá também?
– Você diz de onde o sol não é tampado?
Isto.
– Isto sim, mas de onde vim, não tem pessoas como você. Nós somos assim. – E mostrou os braços cheios de desenhos e as pinturas no rosto.
– Ah… – Liara não pode deixar de sentir-se um pouco triste. – Sabe como você é diferente para sua aldeia? Eu também sou diferente aqui. Eles me acham feia, mas o pior é que eles tem medo de mim.
– Medo por quê?
– Porque não sabem o que posso fazer. Nem eu sei direito. Lembra-se de quando desapareci?
– Sim. Foi assustador.
– Sim. Eles não sabem fazer isto. E você não pode contar se algum dia conversar com eles.
– Tudo bem.
– E isto de compreender sua língua. Eles também não conseguem fazer. Eu entendo a linguagem dos animais também. E dos peixes. E eu posso me transformar em um deles. – Pronto. Falara tudo, de um impulso, antes que desistisse.
– Você se transforma em peixe? Não acredito. Está mentindo!
– Antes estivesse. – Pensou entristecida. Contou-lhe o que acontecera e sobre a assembleia e de como ninguém falava com ela há quase um ano.
Mundo segurou sua mão, indicando que compreendia.
– É mesmo tão ruim quanto eu ser pequeno entre os grandes. – Falou após algum tempo.
– E ainda se chama Mundo. – Liara falou e ambos riram, descontraindo o ambiente.
Ani apareceu à porta.
– Vamos descer. Em silêncio.
Ela tinha feito o jantar e comeram na cozinha, contando a Mundo sobre outros artefatos e mostrando alguns utensílios que tinham.
– Liara faz a magia parecer muito fácil, mas acredite Mundo, é bem difícil. Na realidade, a magia está morrendo neste mundo. Eu mal consigo ajustar minha thuga e controlar algumas coisas, como o cozimento nas panelas ou fazer alguma fruta cair das árvores. Antigamente era diferente.
– Diferente como, mamãe?
– Não posso falar sobre isto. É Tat, você sabe. – E explicando para Mundo. – É proibido falar sobre o passado antes de virmos para cá.
– Vocês não viviam aqui antes? – Ele quis saber.
– Não, não. Nós vivíamos espalhados, alguns em grandes cidades do Reino de Rut, outros em lugares menores. Fomos reunindo aqui a pedido de Ur e quando éramos em número suficiente, Ur criou a cortina de fumaça e desde aquela época não saímos daqui.
– Quem é Ur? – Perguntou Mundo, causando perplexidade nas mulheres.
– Como assim? Foi quem criou tudo que existe. Nosso Deus. Não é o Deus de vocês?
– Não. Nunca ouvi falar em Ur.
– Então, quem criou o mundo de vocês?
– O grande pássaro Issurú bateu suas asas e o vento que provocou foi tão forte que separou o céu e a terra. Ele tirou os próprios olhos e jogou-os na Terra. Um deles transformou-se na Mãe Terra Itshara e o outro se transformou em Kalenoi, o Pai dos oceanos e rios. Soltou as suas penas e delas nasceram árvores e plantas. Issurú voou o mais alto que pode e fez com que seu corpo se partisse em milhões de pequenos pedaços que se tornaram estrelas no céu. De Issurú restou apenas o coração e a mente. Seu coração transformou-se no sol e sua mente na lua. – Ele contou.
– Quanta imaginação! – Zombou Liara.
– Liara! Mais respeito, por favor. – Recriminou Ani.
– Desculpe, mamãe. Desculpe, Mundo, mas é que é tão fantasioso.
– E como vocês acreditam que o universo tenha sido criado.
– Do jeito que foi, é lógico. – E contou-lhe sobre Ur e seu irmão Er e de toda a briga que ainda travavam.
– E você acha que nós somos fantasiosos? Que absurdo! – E foi sua vez de rir, descaradamente.
Ora, você não compreende por que são selvagens, não são civilizados como nós. – Ela retrucou.
– Liara, Mundo! Quietos vocês dois. – Falou em um tom que não deixou margem a dúvidas e ambos se calaram.
– Agora me escutem. Estou muito envergonhada com você, Liara. Justamente você, que ouviu pessoas rindo de sua aparência, que veio de um mundo diferente do nosso, deveria ser a única a entender que não se zomba de costumes e ideias de outras sociedades. – Liara ficou muito vermelha e abaixou a cabeça.
– E você, Mundo, mesmo que nunca tenha ouvido sobre Ur, deveria ter um pouco de respeito por nossas tradições. – Foi a vez dele se envergonhar. Ambos se desculparam.
– Vocês querem saber qual está certo, não é? – Eles concordaram com as cabeças.
– Liara, você já viu Ur ou Er alguma vez?
– Não, Iá, mas… – Sua mãe a cortou.
– E você, Mundo, já viu Itshara ou Kalenoi?
– Eu não, mas… – E também foi cortado.
– Já que nenhum de vocês viu com seus próprios olhos, nenhum de vocês pode provar que seu Deus é o verdadeiro e até que não possam, até que tenham visto e falado com eles, podem acreditar no que quiserem, mas não podem dizer que outro Deus que não o seu não existe.
– Sim, mas… – Ani não a deixou continuar.
– Mas nada. Vocês dois vão subir e pensar sobre isto antes de dormir. Mundo dormirá no chão de meu quarto. Liara, arrume algumas mantas no chão e algo para ele se cobrir. Esta noite fará frio. Eu já vou subir. – Ambos levantaram das cadeiras e se encaminharam para a escada.
– Ah… Em silêncio! Nada de discussões. Não se esqueçam de que Vors está bem abaixo da janela do quarto.
Horas depois, deitada em sua cama, Liara não conseguia dormir. Era óbvio que aquela Itshara não existia. – Que estória! – Estava frustrada por não poder se expressar. Por não ter podido argumentar e demonstrar a ele o quanto estava errado.
No dia seguinte acordaram cedo e tomaram o café da manhã juntos. Pareceu a Ani que o clima estava um tanto denso e teve impressão de que Liara estava mais calada do que o normal e que embora tratasse Mundo com educação, havia um distanciamento que não existia ontem.
Após o café da manhã, Liara começou a seguir sua rotina normal, de arrumação da casa junto com a mãe. Ani procurou incluí-lo, pedindo-lhe para ajudar Liara, mas ela declarou que preferia fazer as coisas sozinhas para terminar mais rápido e assim restou a ela a companhia dele. Sem falarem a mesma língua e o diálogo por mímicas fracassando por que eram péssimos nisto, Mundo acabou sentado no sofá durante parte da manhã, olhando para os pedaços de Ká.
Liara terminou as atividades a tempo de ajudar a mãe no almoço, mas Ani dispensou-a, dizendo para ir conversar com Mundo.
– Está tentando fazer alguma magia? – Perguntou ao vê-lo olhando fixamente para um Ká.
– Tentando entender. – Ele falou.
– Não viu mamãe dizendo que é difícil até para nós?
– Posso tentar, se puder entender melhor como funciona.
– Ah, verdade. O problema é conseguir entender.
– Qual o problema, Liara?
– Problema? Nenhum problema. Apenas estou dizendo que é dificílimo para nós e que para vocês deve ser ainda mais difícil.
– E por que seria mais difícil?
– Ah, você sabe. Nós fomos educados – e deu ênfase à palavra. – com a magia.
– Está querendo dizer que não temos educação?
– Não estou querendo dizer nada. Você que concluiu. – Ela olhou-o, zombeteira. – Alias, já que você tocou no assunto, vocês estudam, Mundo? Quais tipos de matérias estudam?
– Liara, você está irritada comigo por quê?
– Não fuja da pergunta. Vocês estudam ou não? – Ela falou meio histérica.
– O que está havendo aqui? – Era Ani que ouviu as vozes se elevando.
– Estou perguntando ao Mundo se eles estudam e ele não quer responder. – Mundo estava com a cabeça baixa, quieto.
– Liara, eu estou começando a achar que errei e muito na sua educação. – Falou a senhora irritada. Vá para o quarto e fique lá até que eu suba. – E quando Liara esboçou uma reação, não lhe deu tempo e continuou. – Sem discutir. Já. – Esperou até ouvir a porta do quarto fechando.
Ani gostaria de conversar com ele, perguntar o que tinha acontecido, mas sem saber sua língua, apenas sentou-se ao seu lado e pegou uma das mãos dele e acariciou-a com os dedos da outra mão e olhou-o querendo que entendesse neste gesto um pedido de desculpas. Em seguida, levantou-se, fez um gesto para que esperasse ali e subiu.
Liara estava recostada à cama, com os braços cruzados ao peito, parecendo muito irritada.
– Vai defendê-lo, Iá? Vai ficar contra eu e a favor dele?
– Liara, estamos em uma disputa, algo que tem dois lados?
– Eu só perguntei se ele estudava.
– Dando a entender que ele era um selvagem. Não queira me tratar como tola, mocinha, porque não sou. O que quero que me explique é porque está agressiva com ele desta forma. Ele fez algo que não devia?
– Não, Iá. Ele não fez nada.
– Então?
– Acho que errei em ajuda-lo, Iá. Ele é um selvagem. Eles não são educados.
– Até onde vi Mundo se portou com muita boa educação durante todo tempo. Não vi nada que fosse repreensível. Do que está falando?
– De nada, mamãe. É só algo que estive pensando. Eles não estudam, não é?
– Não sei, Liara. Talvez não estudem como você, como nós, mas isto não significa que não possuam educação ou que não tenham cultura.
– Como não, mamãe? São selvagens! E trouxe o aqui! Pode ser perigoso.
– Até ontem a noite era seu melhor amigo. O que houve?
– Eu só pensei melhor.
– Muito bem, você não quer dizer. Tudo bem. Então eu falo: apoiei quando ajudou este garoto, mesmo sem o conhecer, apenas por saber que era quase uma criança e que estava só, com frio e fome. E agora que o conheci, por ver seu comportamento, sua postura, de educação e respeito, continuarei a ajudar não apenas porque ele precisa, mas porque merece.
– Iá, vamos falar com Lure!
– Não vamos não. Enquanto você não me der um bom motivo para fazer isto, não farei. E estou muito, mas muito aborrecida com você, Liara. E envergonhada. Jamais pensei que pudesse ser volúvel desta forma e muito menos tão mal educada a ponto de destratar nosso hóspede, sendo grosseira com ele.
– Mas, Iá.
Então, diga-me, menina cheia de um nível tão mais elevado de educação: acha que agiu certo?
Liara ficou quieta, emburrada.
– Quer ficar aqui até refrescar as ideias e repensar sua atitude? Ou podemos descer e você pede desculpas e conversamos os três sobre o problema que o trouxe aqui?
– Iá, desculpe, estou irritada, nem sei direito por que. Posso dar uma volta?
– Sim, querida. Vá. Caminhe até sentir que a irritação foi embora. Depois volte e conversamos você e eu se quiser. Sabe que pode falar o que quiser comigo, não sabe?
– Eu sei, mamãe. Desculpe por te decepcionar.
– Vá, vá. – Ani deu-lhe um tapinha afetuoso na bunda e Liara saiu.
Enquanto estava na escada, Ani ouviu Liara falar a Mundo que ia sair para caminhar um pouco e que já voltaria. Não pediu desculpas e nem o convidou, mas ao menos deu uma explicação, pensou ela, suspirando.
Na sala, fez um gesto querendo dar um sentido de despreocupação e chamou-o para o almoço, que fizeram um pouco em silêncio e um pouco tentando aprimorar as mímicas. Acabaram se divertindo com elas e aprendendo algumas palavras do idioma do outro. Mundo ajudou a arrumar a cozinha, secando os utensílios e ao final, Ani decidiu mudar os móveis da sala de lugar, apenas para terem algo a fazer, juntos. A sala acabou por ficar mais agradável na nova formatação e Mundo começou uma limpeza que a lareira nunca vira e da qual ele saiu completamente sujo, direto para o banho.
Liara saiu caminhando sem direção, até perceber que Vors a seguia. Ele pediu para que não se afastasse, pois não poderia proteger sua mãe e ela ao mesmo tempo, caso fosse mais longe. Ainda mais contrariada e irritada, parou à beira do rio. Ficou ali um tempo, jogando pedrinhas na água, sentindo a irritação crescer.
Estava com raiva de Mundo. Não sabia por que e nem interessava. O que disse à mãe era o que pensava. Agira por impulso quando o ajudou. Não pensou e agora achava que fora errado e não tinha como voltar atrás.
– “Tudo bem, ele não é perigoso.” – Reconheceu. – “Mas é ignorante.” – Quanto mais pensava, mais raiva sentia. Queria fazer algo, mas o quê?
– Não posso caminhar, não posso ficar em casa, não posso nada! E tudo culpa dele!” – Pensou. À beira das lágrimas. – “E Iá ainda o defende. Droga!” – E pulou na água sem perceber. Só deu por si quando já estava nela e lembrou-se de que não nadava mais.
– “Dane-se! Preciso fazer algo.” – E nadou. Não se esqueceu de Vors, observando-a e não virou peixe. Apenas nadou furiosamente, atacando a água como gostaria de atacar Mundo. Quando estava à beira da exaustão saiu e sentou-se à margem, abraçando os joelhos.
Chorou arrependida de ter maltratado Mundo. Ainda não sabia por que ficara irritada, mas entendia que tinha algo a ver com aquela estória da criação do mundo. Porque, se era como Iá dizia, se fosse possível existir outros deuses… Ela não entendia direito porque aquilo era tão importante, mas era isso. Parece que tudo dependia do mundo ter sido criado por Ur e não por um pássaro, mas não sabia definir porque exatamente.
Mais calma ao compreender onde estava o problema, pensou em Mundo. Sabia que ele não tinha culpa e sua avó tinha razão. Ele era mesmo adorável.
Voltou para casa cansada. O nado seguido do choro a deixaram vazia, como um balão de gás furado, mas ao menos não estava mais irritada.
Quando entrou um Mundo recendendo a banho recém-tomado e sua mãe estavam sentados no sofá, rindo juntos.
– Liara, querida, que bom que voltou. Mundo e eu estamos nos divertindo aqui com nossas tentativas de fazer magia. – Disse a mãe, como se nada houvesse acontecido. Mundo apenas a olhou, curioso.
– Ah, bom. O que estavam tentando fazer com este pedaço? – Ela achou melhor entrar no jogo de sua mãe.
– Queríamos apenas que ele se mexesse, mesmo que milimetricamente. – Ela respondeu.
– Assim? – Liara fez um pequeno gesto com a mão, como se estivesse tirando o pó da roupa e o metal moveu-se vários palmos para o lado.
– Ah, Liara… Você faz parecer tão fácil… – Sua mãe cumprimentou. Mundo continuava quieto, apenas olhando.
– E é fácil quando se compreende. Ao menos eu acho que é isto. Mundo, você precisa concentrar sua atenção neste metal, não pensar em mais nada, não ver mais nada.
– Você pode explicar melhor depois. Não quer comer um pouco agora? Deve estar morrendo de fome e deixei a comida ainda quente no forno. – Ani percebeu os sinais de cansaço e choro em seu rosto.
– Morrendo de fome. Obrigada, Iá. – E saiu meio correndo para a cozinha, grata pela oportunidade de se recuperar.
Ani e Mundo recomeçaram seus exercícios e da cozinha ouvia suas risadas que acabaram por relaxa-la também. Quando voltou estava pronta.
Mundo, porque quer aprender magia? – Ela perguntou.
Acho que a magia e o Ká são tudo que precisamos para resolver nosso problema e voltar ao nosso mundo. – Liara traduziu para a mãe, antes de comentar.
– Como assim? Explica tudo.
– Nós vivíamos lá, do outro lado, se entendi direito o que me explicou sobre Sur e a cortina de névoa e os outros, acho que é isto.
– Lá tinha sol descoberto?
– Sim, sim. Muito sol, completamente sem névoa ou sombras.
– Mas não tinha Ur. – Liara complementou.
– Não. Estive pensando e acho que posso explicar isto.
– Explique então, por favor. – Foi Ani quem falou.
– O mundo em que vivíamos era muito grande, mas nós estávamos em uma área bastante isolada e não tínhamos praticamente qualquer contato com os outros povos. Por isto não partilhamos de sua cultura e temos a nossa própria.
– E, porque a área em que viviam era isolada? – Liara ficou curiosa.
– De um lado tínhamos o mar e do outro, as Terras de Fogo e a Montanha de Gelo. Não são muitos que se atrevem a passar por elas, principalmente as Terras de Fogo. Além de serem formadas em grande parte por lava derretida e o solo ser muito quente, também existem os Gigantes de Fogo, os dragões, a Fênix e outros monstros selvagens.
– Como assim, Gigantes de Fogo. Vocês não são os gigantes de lá?
– Ah não… Perto deles somos pequenos, muito pequenos.
– Formiguinha. – Liara disse pensando, fez uma careta esquisita e eles riram ao entender que estava se imaginando perto deles. Se os Gigantes eram pequenos, como ela seria?
– E dragões e a Fênix? Eles existem mesmo? – Ela deu um olhar culpado à mãe e explicou. – Foi um Onai. Ele contou uma estória com dragões e sei o que é uma fênix.
– Hum. – Ela apenas resmungou, não muito contente.
– Sim. Existem. Não são fáceis de domar, mas quando conseguimos são ótimos parceiros para voos.
– Você tem um dragão??? – Agora Liara estava com a boca aberta, literalmente. Ele riu gostosamente.
– Sim, tenho ou melhor, tinha, um dragão chamado Pequeno. Não que ele fosse pequeno. Era enorme. O maior de todos da aldeia, mas quando o encontrei era minúsculo, um pintinho molhado que acabara de sair do ovo. E acabou ficando Pequeno.
Uau!!! – Era Liara, ainda babando.
– Como estava dizendo antes, não recebemos muitos visitantes por conta destas barreiras e nem gostamos muito, para falar a verdade. Eles capturam os animais de fogo e levam-nos contra suas vontades. São cruéis. Os dragões escolhem a quem servir e muitos deles nem mesmo querem servir a ninguém.
– Isto deve ser cruel, de fato. – Foi Ani quem falou.
– Sim. Nossa aldeia os protege a muitas eras. É nossa função.
– Queria muito ver um dragão ou a Fênix. E também voar em um deles. – Liara tinha expressão sonhadora, já se imaginando em um destes passeios.
– Quem sabe um dia. – Cortou sua mãe. – Deixe-o continuar, querida. Quero entender este problema deles. – Mundo concordou e continuou.
– Há alguns meses frustramos a tentativa de alguns caçadores de capturarem Zior, o Dragão Maior. Pensamos que ficaria tudo bem, mas eles voltaram e jogaram uma magia muito forte em nossa vila. Não sabemos como foi. Era noite, estávamos dormindo e fomos acordados por um ruído muito forte, seguido de um clarão. Durou um segundo talvez, mas nossos olhos levaram algumas horas para enxergar novamente. E então estávamos aqui, quer dizer, na caverna abaixo de Sur. Não todos nós e nem toda a aldeia. Uma parte de nós e uma parte da aldeia, a mais próxima da praia.
– Foram transportados?
– Não sei se esta é palavra certa. É como se nossa terra tivesse se partido, rachado ao meio e uma das metades veio para cá. Talvez tenha durado mais tempo do que sentimos e tenhamos vagado como um navio pelo mar até chegarmos aqui. O fato é que viemos para cá, com tudo, desde o chão que pisávamos até nossas casas, animais, tudo.
– Incrível! – Foi só que Liara conseguiu dizer.
– Sim. Onde estamos temos apenas uma faixa de nossa terra, um pouco de praia e o mar. Ao longe avistamos o final do teto da caverna e a luz de nosso sol. – Ele completou.
– E ficam no escuro?
– Não. Existem algumas pedras transparentes no topo da caverna que transportam a luz de fora até nós.
– O UrKá! – Concluiu Liara, vendo Ani concordar.
– Há algumas semanas o teto mais para o fundo da caverna começou a esfarelar e concluímos que estava ruindo. Abrimos caminho para cima, na tentativa de solucionar o problema e encontramos vocês e seu mundo. Vimos algumas pessoas retirando pedras da gruta e entendemos que era esta movimentação que estava fazendo nosso teto ruir e procuramos impedir.
Então é isto! – Foi a vez de Ani interromper.
Sim. Não queríamos fazer mal a vocês. Percebemos que eram inofensivos e que não eram guerreiros, pela falta de armas e de pinturas. Só queríamos mantê-los longe até conseguirmos encontrar um jeito de voltarmos à nossa terra. – Por isto ficam lá, parados? – Liara perguntou.
– Sim. Itshara, a Mãe Terra, não gosta quando matamos pessoas inocentes. Só podemos matar para nos defendermos. E, além de vocês não nos terem feito nenhum mal, também sentíamos pena de vocês.
– Por quê? – Liara pareceu indignada.
– Quando soubemos que havia um mundo lá fora, os menores de nós, que conseguiam passar pelo túnel que abriram, foram ver se era um local que poderíamos habitar ou até sair por ele para chegar ao nosso mundo. Eles voltaram dizendo que não há mar à vista e que é muito frio no exterior. Também contaram que existem poucas árvores e que o sol é pálido e que é um mundo feio e cinzento. Consideramos que era um local impossível de se viver e que a vida de vocês deveria ser muito triste.
– Ohhhh! – Ela estava mesmo chocada e Ani teve receio da próxima asneira que diria. Olhou-a feio e em tom de ameaça para que compreendesse.
– E o que farão?
– Concluímos que nossa única forma de voltar é pelo mar. Precisamos fazer um navio. Mas não temos recursos aqui, limitados como estamos.
– E então você fugiu para tentar encontrar uma solução. – Ani concluiu.
– Sim. E o restante da estória vocês já sabem. Eu não sabia o que era frio de verdade, até quase morrer congelado e se não fosse esta mocinha linda, nem estaria mais aqui. – Olhou-a e sorriu. – E graças a ela, não apenas continuo vivo, como já sei como construiremos nosso barco. – E mostrou o pedaço de Ká mais leve, o que flutuava na água. – Isto e magia devem resolver.
– Você só tem que aprender magia e conseguir Ká suficiente. – Liara estava pensando alto.
– Sim! Sim! Exatamente.
– E você não sabe magia e não tem Ká. – Continuou.
– Bem, ainda não. Posso aprender. Eu sou esforçado. E vocês querem as pedras que brilham. Talvez possamos fazer um acordo com seu chefe. Vocês lucrariam com nossa partida.
– Você é bem esperto, rapaz. – Elogiou Ani. – Mas tem um problema, aliás, dois, no mínimo. – Falou.
– Hum?
Primeiro que aprender magia, ao menos neste nível que você precisa saber, é algo que pode levar anos. Segundo que precisaria falar com nosso chefe para obter o Ká necessário e você não fala nossa língua. Teria que aprender.
– Liara pode traduzir.
– Não. – Falaram ambas ao mesmo tempo.
– Não posso. Lembra que te falei sobre meus dons, sobre eles não gostarem?
– Liara está proibida de exercer qualquer atividade que não seja própria dos Surs até o final do ano. E mesmo depois, não sei como isto seria. – Ani completou.
– Então eu teria que aprender magia e a língua de vocês? E isto demoraria meses, talvez anos.
– E ainda teríamos outro problema que seria explicar a eles seus conhecimentos. Logo saberiam que alguém te ensinou.
– Verdade. – Concluiu Liara.
– E agora? – Ele quis saber.
Ninguém tinha ideia de como resolver estes problemas.
– Acho que já avançamos muito. Sabemos o que tem que se saber e já há uma solução para o problema de vocês e para o de Sur também, no caso do UrKá. Falta pouco. – Ani ponderou.
– Sim. Apenas temos que pensar em como iniciar o processo, porque não queremos ficar aqui por anos e também porque a caverna pode desmoronar a qualquer momento.
– Se pudéssemos contar para todos, também poderíamos fazer algum tipo de apoio para o teto. Nossos construtores são excelentes.
– Boa ideia, mamãe.
– Se conseguíssemos encontrar uma forma de contar a eles, talvez também pudessem construir o barco, mais rápido do que eu aprender magia e a língua de vocês.
– Com certeza. – Liara falou. Ela duvidava que ele conseguisse aprender magia.
– O problema é esta proibição da Liara. A pena é a expulsão da sociedade. Não temporária como agora. Definitiva. Não podemos correr este risco.
– Eles querem muito ou pouco as pedrinhas? – Mundo quis saber.
Liara e Ani se olharam.
– Muito. – Responderam juntas, rindo.
– Então talvez aceitem rever a condenação, tendo em vista que a utilização dos poderes dela ia resultar em um grande bem para a sociedade. – Ele ponderou.
É arriscado. – Falou Ani.
Mamãe… – Implorou Liara.
– Tenho que pensar, querida. Talvez possa sondar o Lure a respeito.
– Sim, sim, por favor.
– Não quero trazer mais problemas para vocês. Vamos pensar mais um pouco. Talvez exista alguma outra solução.
– Concordo. – Disse Ani, aliviada por ganhar algum tempo.
– Ah… – Liara estava desapontada.
– Mocinha, você é a impulsividade em pessoa, sabia? – Ani riu e Liara amuou.
– Deixe disto. Já está na hora de preparar o jantar e depois podemos jogar pedrinhas. O que acham?
E assim evitaram o assunto pelo restante da noite, que foi agradável e tranquila, embora com certa delicada tensão pairando na sala.
Ani acordou cedo, antes que os dois e tomou uma decisão. Desceu as escadas, preparou e serviu o café da manhã de Vors e despachou-o com a incumbência de voltar com o Lure.
– “Há momentos na vida em que temos que deixar a zona de conforto e arriscar. Este, com certeza é um destes momentos.” – Pensou a guisa de conforto e para espantar de vez o temor de que desse tudo errado.
Quando Liara e Mundo acordaram, a mesa já estava posta com um café da manhã caprichado e depois foram cuidar da casa. Com a ajuda de Mundo acabaram mais cedo do que deveriam e ficaram rondando os cantos, nervosos e agitados demais para qualquer conversa ou outra atividade.
Quando Vors voltou, a tarde já começava. Veio só e Ani saiu para falar com ele. Voltou meio acabrunhada.
– O que Lure disse, Iá?
– Ele não está na cidade. Sentem-se. – E ela sentou-se no meio de ambos, pegando a mão de
Mundo entre as suas e continuou falando diretamente para ele, contando com a tradução de
Liara.
– Mundo, parece que a situação lá na gruta não é boa. Ontem no começo da noite um pedaço do chão ruiu, tapando a entrada que seu povo utilizava para vir até a superfície. O seu pessoal que estava acima não pode retornar e está tentando reabrir a passagem.
– E lá dentro? – Ele perguntou empalidecendo.
– Não sabemos. Ninguém sabe. Aparentemente foi um desmoronamento pequeno, o suficiente apenas para tampar a entrada. Não deve ter acontecido nada muito grave lá embaixo.
– Minha mãe, meu pai, meus irmãos, minha família toda está lá! Preciso ir. – Ele se levantou ou pelo menos tentou.
– Sim, eu sei, apenas espere um minuto. – Ele sentou-se a contragosto, visivelmente alterado e trêmulo.
– O que faremos, Iá? – Quis saber Liara.
– Acho que Ur decidiu por nós. Não podemos esperar ou agir com cautela. Se quando o dia amanheceu já tinha esta impressão, agora é uma certeza. Temos que ajudar este povo. Eles precisam da ajuda dos Surs. Temos que ir com Mundo e abrir o jogo com Lure e com todos.
– Posso ir e voltar assim que verificar a situação. Contando que não tenha sido nada grave realmente, converso com quem da tribo estiver lá fora sobre como vocês podem ajudar e volto para prosseguirmos com o plano. – Mundo falou.
– Você não conseguirá chegar lá sem ser notado. Ainda mais porque está vestindo uma thuga. E nem pense em tirá-la. A temperatura está em nível muito abaixo do que você poderia suportar.
Posso tirá-la um pouco antes da entrada. – Ele argumentou.
Pensei nisto, mas o fato é que duvido que você saiba retornar sozinho. Levaria muito tempo procurando o caminho. Será mais fácil e rápido se Vors te acompanhar. Sem contar que ele provavelmente o veria quando saísse daqui. Estes são detalhes, entretanto. A verdadeira questão é o fato de que vocês podem estar precisando e muito de nossa ajuda, de nossos mineiros e nossos construtores. Não sabemos o tamanho do desabamento, mas se uma parte desabou, a restante está ainda também em risco. É urgente que façamos uma avaliação e iniciemos o mais rapidamente possível algum tipo de estrutura de suporte.
– Sim. – Ele concordou seco.
– E não podemos fazer isto sem contar tudo a todos.
– Iá…
– Eu sei, querida. Acredito que no fim o povo será sábio e reconhecerá o valor de sua ajuda, pois os dois lados precisarão de você. Infelizmente é a única que pode fazer isto neste momento. Não temos tempo a perder e precisamos de você. Eu te apoiarei e usarei toda minha influência para que entendam, mas quero que entenda que há riscos de que isto não aconteça. E que pode ser banida. No que te acompanharei, evidentemente.
– Também acredito que entenderão, mas quero que saibam que sempre terão um lugar em nossa tribo. – Prometeu Mundo.
– Iá, não tenho medo. Vamos.
A mina ficava à quase um dia de distância. Era muito para Ani percorrer em sua idade. A cidade tinha um meio de transporte que só era utilizado em emergências e que consistia em uma carroça conduzida por meia dúzia de cães selvagens que conseguiram adestrar ao longo do tempo.
– Vou pedir a Vors para trazer a carroça. Vamos precisar de mantimentos e também de mantas.
Enquanto Ani falava com o rapaz, Liara foi para a cozinha e Mundo para os quartos, recolher mantas e todo tipo de pano que servisse para aquecer. Liara pegou também a caixa de primeiros socorros que utilizava para as aulas de Medicina Básica. Enquanto esperavam, iam acrescentando mais mantimentos. Uma pilha anormalmente grande surgiu na entrada da sala.
Vors ficou emudecido quando viu o trio saindo da casa.
– Não fique aí estatelado, homem. Ajude-nos a levar tudo para a carroça, rápido! – Ordenou Ani não lhe dando oportunidade de fazer perguntas.
Quando estavam já sentados, com Vors conduzindo, foi que ela explicou de forma sucinta:
– Vors, este é o Sr. Mundo, nosso hóspede da tribo dos Gigantes.
– Então ele estava lá o tempo todo? – Ele concluiu.
– Sim. – A senhora respondeu, com uma risadinha marota. – Vai perdoar esta velha senhora por uma pequena e necessária omissão?
Liara podia apostar como ela estava realmente se divertindo. Quem era Vors para contestar a Mãe de todas as Mães? Engoliu em seco e ficou quieto. E ela adorou que tivesse que ignorá-la por força do decreto da assembleia, pois pode continuar conversando com Mundo à vontade, como se nada estivesse acontecendo de anormal. – “O pobre Vors deve estar ficando doido.” – Pensou, divertindo-se também.
– Mundo, quando chegarmos, será melhor que você tire a thuga ou seus amigos não vão o reconhecer.
– Sim. Logo que entrarmos na primeira gruta, onde devem estar. – Ele falou preocupado.
– Iá e eu procuraremos Lure e tentaremos ajuda imediata.
– Acho melhor dormirmos um pouco agora. Assim teremos mais energia depois. – Ani sugeriu.
Com a carroça indo o mais rápido possível, chegaram lá em pouco menos da metade do tempo, em cerca de 8 horas, ainda que já fosse início da noite.
A movimentação em frente à gruta era intensa. Todos os mineiros que tinham sido deslocados para a nova mina permaneciam ali, juntamente com familiares e pessoas de Sur, os assistentes do Cure e alguns curiosos. A área estava bastante iluminada com muitas e grandes lanternas espalhadas pelo chão ou presas entre as pedras. Não foi difícil verem quem eram os ocupantes da carroça que foi direto para a entrada, seguindo as orientações de Ani.
Quando desceram, Mundo saiu apressado e entrou sem se ater a cumprimentos ou satisfações. Ani e Laira ficaram na entrada procurando Lure com os olhos e sendo observadas com espanto, por todos.
– Sabe onde está o Lure? – Perguntou Ani até obter uma resposta.
– Liara, ele está lá dentro, tentando conversar com os nativos que ficaram para fora. Vamos entrar.
Elas nunca estiveram em uma mina. Apesar das lanternas, o túnel por onde escavaram ao longo dos anos era pouco iluminado e abafado. Liara gostaria de tirar a thuga, mesmo sabendo que não podia. Desceram pelo que lhe pareceu serem horas até avistarem uma luminosidade mais forte à frente e chegarem à imensa galeria de UrKá que principiara tudo.
O primeiro impacto foi de deslumbramento. Era uma caverna realmente grande, com talvez uns trezentos metros de uma ponta a outra e com uma abóbada extraordinariamente alta. Por toda a extensão de paredes e teto cristais de UrKá brilhavam, refletindo e multiplicando as luzes das luminárias. A terra parecia ainda mais vermelha e as luzes e cores refletiam-se nas pessoas, fazendo com que mudassem a cada minuto de cor.
– Ohhh! – Ela tapou a boca com a mãe, aturdida com a exuberância de coloridos do lugar. Ani tirou-a do encantamento, puxando-a até um grupo de pessoas mais próximo ao local do desabamento.
Se não tivesse visto quantas pessoas estavam lá fora, acharia que todos estavam dentro. Observando melhor enquanto se aproximava, identificou ao menos dois Gigantes gigantes mesmo e uma meia dúzia de Gigantes pequenos, as crianças e mulheres que mencionaram nas notícias. Mundo estava no meio deles envolvido em uma balbúrdia de palavras, abraços e choros.
Um pouco apartado encontrava-se o grupo dos Surs que Ani procurava: Lure, Cure e seus assistentes. Eles pareceram intrigados com a presença de ambas naquele local.
– Olá, Jaer, Serg. – Cumprimentou-os com seus nomes de batismo, como sempre fazia.
– Ani, o que faz aqui? – Foi Lure quem perguntou.
– Precisamos conversar. Venham. – Levou ambos e Liara para outro canto, afastados do grupo de assistentes.
Rapidamente contou-lhes os fatos principais, sobre como Liara encontrara o menino Gigante morrendo de frio, de como o ajudara e posteriormente descobrira que entendia sua língua. Falou também sobre o tempo em que este passou em sua casa e do que lhes contara sobre seu povo, o motivo de montarem guarda na entrada e da ideia que tiveram antes do desmoronamento, da ajuda mútua.
Os dois homens olharam-se em um entendimento mútuo e voltaram para ela, mas foi Serg, o Cure, quem falou.
– Você sabe que foi contra a decisão da Assembleia, não sabe, Ani?
– Muito bem, não temos tempo a perder com estas besteiras. Desta forma serei clara. Sur está se tornando uma sociedade de covardes que se borram de medo de uma menina. Quando entenderão que se Ur a trouxe até nós com estes poderes é porque desejava que eles fossem usados para nos ajudar? É o que está havendo neste momento. É pela vontade de Ur que Liara é a única capaz de entender e falar com estes homens.
– Você tem razão em praticamente tudo, Ani, porém, qualquer decisão teria que ser tomada por outra assembleia e você sabe disto.
– Muito bem. Vocês decidem. Podem escolher marcar uma assembleia que demorará dias para acontecer enquanto tudo desaba, sem contar as vidas que podem estar em perigo lá dentro e as que podem ficar em perigo depois e pelas quais vocês, – e frisou a palavra vocês, – responderão a Ur. Além disto, acho que podem dar adeus ao UrKá que tanto desejam. – E fez uma pausa para dar-lhes tempo de compreender.
– Ou podem corresponder aos cargos que possuem e agir agora, ajudando estas pessoas e providenciando reforço para impedir novos desabamentos. Sobre tudo o mais, podemos ver depois, quando eles e o Urká estiverem a salvo. – Liara pensou que a mãe era diabólica. Era uma faceta desconhecida que estava adorando ver.
Os homens se olharam. Lure afastava o colarinho da jaqueta, em busca de ar, nervoso como sempre ficava em situações difíceis. Cure foi quem falou primeiro.
– Acho isto razoável. Depois explicaremos em assembleia que não havia tempo e tomamos as providências que achamos necessárias para salvar estas vidas, de acordo com a bondade de Ur.
– Isto mesmo, Serg. – Cumprimentou Ani.
– Bem… Acho que podemos sim. – Falou o ainda indeciso Lure.
– Tenha fé, homem! – Ani deu-lhe um tapinha amigável nas costas.
– Liara, vá buscar Mundo.
Não precisou dizer duas vezes. A menina esteve o tempo todo de olho nas atividades à frente do desmoronamento e estava ansiosa por falar com Mundo.
– Mundo, mamãe está chamando você. – Ela disse, causando espanto em todos, Gigantes e Surs.
– Amigos, esta é Liara, a mocinha corajosa que me salvou e de quem lhes falava. – Ele apresentou-a.
– Liara, esta é minha irmã Branca Flor, meu irmão Pata de Urso e foi nomeando cada um deles. Liara impressionou-se com aqueles nomes cheios de significado. Eles apertavam sua mão e agradeciam efusivamente. Também recebeu alguns abraços apertados que a constrangeram e apressou Mundo.
– Desculpem. Temos que ir. – Ela falou, puxando-o. – Bastante expressivos eles, não? – Ela comentou.
– Você não viu nada. – Ele comentou, rindo. – Eu sou o mais quieto da aldeia. Somos um povo alegre e expansivo.
Chegaram onde os dois homens e sua mãe aguardavam. Ani apresentou-os com a tradução de
Liara.
Lure e Cure ofereceram ajuda para abrir caminho à gruta onde os demais gigantes estavam e com a aceitação de Mundo, decidiram começar chamando o chefe dos mineiros para examinar o local e ver o que deveria ser feito. Enquanto ele não chegava, Mundo, Liara e Ani foram até os parentes de Mundo. Ani pediu que trouxessem as mantas e mantimentos da carroça e ocupou-se em mantê-los alimentados e confortáveis para a noite que se aproximava. Embora nenhum deles estivesse disposto a dormir, eles estavam à quase dois dias e duas noites sem comer e dormir e acabaram aceitando. Liara deixou Ani com eles recomendando que aproveitasse para descansar também e foi ter com os homens, vendo que Enói, o chefe dos mineiros, chegara.
– Mundo, pode fazer-me uma descrição da caverna abaixo? Preciso identificar um ponto seguro para abrirmos uma nova entrada. Creio que será arriscado mexer na área de desmoronamento, sem saber a situação lá embaixo. – Enói disse, após as apresentações.
– Claro. Esta passagem estava apoiada na lateral de uma das paredes da caverna e todo o teto poderia ruir se não tomarmos cuidado. – E passou a descrever a caverna e sugerindo alguns locais que acreditava serem os mais bem sustentados.
Após algumas deliberações decidiram escavar outra passagem por dentro da terra, contornando a área afetada e saindo, esperavam, logo após o início desta. Seria um caminho mais longo, pois teriam que fazer um túnel longo, mas acharam que seria a opção mais segura.
Mundo observou espantado o poder de organização dos Surs. Enói rapidamente trouxe cerca de 30 mineiros para dentro, mostrando a todos os pontos sensíveis do chão, que deveriam ser evitados até mesmo para passagem e a área onde escavariam. Eles dividiram-se em dois grupos, um que escava e outro que levava a terra para fora da gruta e começaram a trabalhar imediatamente.
Os outros mineiros e seus familiares foram encarregados de arrumar um acampamento mais amplo já que deveriam permanecer ali por mais tempo. Alguns foram enviados à cidade em busca de mais mantimentos e equipamentos. Eles também deveriam trazer os melhores construtores e médicos da cidade. Uma algazarra organizada instalou-se, cada pessoa ocupada com seu afazer e ao mesmo tempo comentando sobre os rumos imprevistos que a situação tomara.
Em pouco tempo conseguiram uma barraca para Lure, Cure, Ani e Liara descansarem aquela noite e comida estava sendo feita para todos em meio às fogueiras que ardiam no pretume da noite sem estrelas.
Após comerem, alguns formaram uma roda junto à maior das fogueiras e durante algumas horas comentaram as novidades. Não durou muito. Aos poucos foram se encaminhando para suas barracas, pois renderiam o grupo da noite às primeiras horas da manhã.
Mundo quis ficar no interior da gruta, junto aos seus familiares. Liara e Ani dormiram antes de todos, cansadas demais de toda agitação daquele dia.
Mesmo trabalhando ininterruptamente demoraram três dias para alcançar o outro lado da caverna.
Durante o dia os gigantes ajudavam a tirar terra e o que mais pudesse ser feito no interior. Não havia muita interação entre os dois grupos, menos por conta da linguagem do que por um retraimento da parte dos Surs. Ninguém estava muito certo de como lidar com aqueles gigantes seminus e com corpos pintados, o que consideravam chocante e até mesmo agressivo. Assim, decidiram manter distância dentro do possível.
Mundo era o que mais trabalhava indo de um lugar ao outro, organizando pessoas e conversando com todos. Liara traduzia, mas era um processo ingrato, pois quase nunca obtinham respostas, sendo ambos ignorados.
Os construtores chegaram e houve uma longa reunião dentro de uma das tendas para decidir a próxima etapa dos trabalhos que aconteceria do outro lado. Eles pretendiam erigir um sistema de estacas, do chão ao teto, culminando em uma tela grossa de Ká, que seria como um segundo piso, suportando o peso do teto e impedindo-o de desabar.
Consultaram Mundo sobre a extensão da área e sobre a altura do teto. Segundo este, a caverna teria aproximadamente seis quilômetros de extensão, da ponta que atravessava o mar até o fundo, onde acabava, sendo que dois terços desta área ocupados por água. Os quilômetros de terra eram compostos por uma faixa de praia e o que era considerado como a área de escoramento. De largura teria entre um e meio e dois quilômetros e a altura era muito variável, com áreas baixas de quatro a cinco metros e outras chegando a talvez doze metros.
Naturalmente ficaram espantados com estas dimensões grandiosas. Era praticamente outro mundo embaixo de Sur. Pelo que conseguiram entender tendo em vista que o ponto de desabamento culminava com o final da caverna, a caverna estendia-se para fora do Reino de Sur e não por sobre ele. No nível de Sur, a ponta que dava para o mar exterior devia localizarse fora da cortina de fumaça.
Isto era inédito. Até o momento, toda Sur estava dentro dos limites da cortina e agora tinham uma área que estava entre os dois mundos, parte em um e parte em outro. Não que fosse de alguma utilidade. Ninguém pretendia ir para o outro lado e muito menos atreveriam a entrar em alguma embarcação, até porque poucos sabiam nadar.
Havia certa preocupação de que por ali entrassem pessoas dos Outros, mas foi colocada de lado no momento. Agora o importante era assegurar a segurança dos gigantes e do Urká.
Relativamente seguros a respeito da área que teriam que proteger calcularam os materiais e ferramentas necessárias e partiram para a cidade, de onde retornariam com tudo que fosse necessário para o trabalho, planejando terem as estruturas básicas prontas antes de entrarem.
Fariam a tela em grandes pedaços retangulares que uniriam depois, de acordo com o desenho da gruta e a necessidade. As estacas seriam formadas por cilindros e um sistema de encaixe. Com este engenhoso sistema a maior parte do trabalho seria feita nas oficinas e forjas da cidade e transportadas para a gruta.
Lá dentro o trabalho seria apenas a fixação das estacas entre o chão e o teto, culminando na tela de Ká no teto.
Lure seguiu com eles para a cidade. Não apenas reuniria todos os construtores de Sur nas oficinas, para dedicarem-se exclusivamente a este trabalho, como também conversaria com os Surs e explicaria a situação, organizando uma assembleia para assim que a situação da gruta estivesse sobre controle. Cure ficou para manter a ordem e manter os trabalhos no ritmo acelerado que necessitavam.
Ani decidira voltar com Lure acreditando que sua influência poderia ser mais necessária lá do que na gruta. Certificou-se de que Liara ficaria bem cuidada, encarregando Serg e Mundo desta tarefa e partiu.
Mundo estava muito impressionado com a calma, a ordem e a lógica com que todos trabalhavam. Se haviam dúvidas e perguntas a seu respeito ou de Liara elas permaneciam guardadas. Não se ouviam reclamações. Todos recebiam as ordens e executavam, em perfeita harmonia. E os trabalhos fluíam perfeitamente, ordenadamente.
As noites eram alegres, mas tranquilas e calmas, sem agitação. Em torno das fogueiras, eles comiam, oravam e conversavam por algumas horas e à hora determinada recolhiam-se às suas barracas. Mesmo durante o dia todos que estavam acordados nos acampamentos falavam baixo para não prejudicar o sono dos mineiros do turno da noite.
Percebia ali um poder de organização superior ao de sua vila. Seu povo era trabalhador também, mas de uma forma diferente. Não havia aquele senso de equipe, de trabalho conjunto. Eles agiam de forma mais individual, no máximo reuniam-se em pequenos grupos quando havia algum desafio ou trabalho que exigia mais pessoas. E estes grupos se dissolviam tão cedo se alcançava o objetivo.
Pensou em como aproveitar aquele sistema de equipe em sua vila e entendeu que era um aprendizado importante caso algum dia fosse realmente designado como chefe da aldeia. Estava relativamente tranquilo quanto aos que estavam do outro lado. Não tinha como ter certeza absoluta da extensão do desmoronamento, mas até onde entenderam, parecia restrito a uma pequena área onde não havia cabanas e nem nada importante. Desde que não houvesse pessoas ali no momento do desastre, imaginava que todos estariam bem.
Liara tornara-se sua sombra uma vez que era sua voz com os Surs. Quando ele não estava conversando com o Cure ou com o chefe dos mineiros, ela aproveitava para conhecer melhor os outros gigantes. Branca Flor, a irmã caçula de Mundo e ela tinham aproximadamente a mesma idade e divertiam-se juntas em brincadeiras que criavam para afastar o tédio. Como Liara comentou sua estranheza com seus nomes com significados tão explícitos, passaram a inventar nomes para os Surs, de acordo com a aparência, voz, um gesto ou qualquer atitude.
Liara ganhou o apelido de Dupla Face quando Branca Flor a viu sem a thuga em uma visita à barraca. Cure virou Chefe Pá Virada porque às vezes ficava irritado com os mineiros e às vezes estava calmo e tranquilo. O chefe dos mineiros era Pimenta, pela braveza. E os mineiros eram Nervosinho, Árvore Inclinada, Cachorro Vadio, Preguiça, Cachoeira, Urso, Nariz Torto e assim por diante. Era um desafio reconhecer um e outro e lembrar-se dos apelidos corretamente e divertiam-se com os erros que cometiam.
Branca Flor tinha a pele menos vermelha que os demais, cabelos longos, lisos e pretos, assim como os olhos. Com doze anos, contou que estava prometida a um dos gigantes e que casariam em poucos anos. Liara quis saber se gostava dele e ela explicou que os casamentos eram arrumados pelo chefe da aldeia quando ainda eram pequenos, mas que estava contente com seu noivo. Ele era grande, forte e gentil. Pelo seu sorriso, Liara percebeu que gostava mesmo dele.
Também contou que Mundo fora prometido ao nascer para a filha do curandeiro, que era a segunda pessoa mais importante da aldeia e que com o passar dos anos, conforme ele deixou de crescer, o casamento tornou-se um assunto constrangedor para todos. Sua noiva era muito alta. Os dois pais acharam por bem romper o compromisso e a noiva, Pássaro Suave, fora dada como noiva para o irmão mais novo de Mundo, Pata de Urso. Segundo ela, Mundo ficou muito chateado. Ela disse que ninguém percebeu, mas que ela o conhecia melhor do que todos e ficou triste também.
Liara quis saber se Mundo gostava de Pássaro Suave. Branca Flor achava que não, que ficara chateado pelo significado deste rompimento, por evidenciar o seu pouco valor dentro da hierarquia da aldeia. Branca Flor também acreditava, como todos, que Pata de Urso seria escolhido como novo chefe e não Mundo. Liara achou que era injusto tirar seu direito à chefia apenas porque não havia crescido e Branca Flor disse que ele teria que provar seu merecimento se quisesse ser o chefe.
Naquela tarde estavam sentadas conversando quando escutaram a notícia de que os mineiros haviam chegado ao outro lado.
Tiveram que esperar pela saída dos mineiros para entrarem no túnel pequeno e apertado. Mundo foi na frente liderando a fila dos gigantes. Liara vinha em seguida e logo após Cure e o chefe dos mineiros.
Quando Liara entrou na caverna sentiu-se ofuscada pela luminosidade e demorou alguns minutos para conseguir ver novamente. Poderia ajustar a tela dos olhos para um grau maior de densidade, ajudando a bloquear a luminosidade, mas não o fez por desejar ver este mundo desconhecido em sua totalidade.
Na realidade, ela queria mesmo era tirar a thuga e isto desde que entrara na gruta superior, dias atrás, onde era abafado demais e estava constantemente suando, mesmo com a thuga na sua forma mais fina. Ani recomendara expressamente que não o fizesse e obedeceu a contragosto, sem deixar de invejar os nativos, com as peles expostas, salvo pelas poucas peças que cobriam as partes essenciais do corpo.
Quando conseguiu manter o foco, quedou-se, maravilhada e hipnotizada pelo espetáculo reluzente do cenário.
Nas laterais as paredes eram de terra de um tom profundamente avermelhado. As pepitas de Urká irrompiam por todos os cantos, como frutas brotando de uma árvore e refletiam a luz uma das outras, emitindo raios luminosos pelo ambiente.
O chão era arenoso. Faixas brancas ou cremes intercalavam com áreas verdes, onde havia relva, plantas baixas e palmeiras. Ela nunca vira estas plantas, nem as folhagens verdes. Na verdade, nem mesmo sabia os nomes das cores que via agora, pela primeira vez de sua vida.
Pensou que nunca nada poderia superar a magia daquele momento e que nunca poderia ver nada mais belo do que aquele cenário.
Espalhadas pelo solo estavam as casas dos gigantes, que pareciam construções imensas para ela, embora fossem simples cabanas de madeira e barro, cobertas com sape.
E à frente de tudo, a areia branca da praia e o mar. Olhou a imensidão de águas – parecia não ter fim! – o movimento das ondas rebentando suavemente na praia, com as pontas embranquecidas da espuma e o cheiro do sal, tão diferente do cheiro do rio. Sentiu-se aturdida, perdida e confusa. Nunca pensara em como era pequena até aquele dia.
Aquela beleza era tão sem precedentes e tão absoluta que doeu em seu peito. As lágrimas explodiram sem que conseguisse controlar e deixou-as cair enquanto aproximava-se do mar, hipnotizada e esquecida de tudo.
Queria, ou melhor, precisava entrar naquela água, virar peixe e nadar até a linha que via ao longe. Aquela necessidade envolveu-a e teria feito o que desejava se Cure não tivesse percebido seu estado de transe e segurado seu braço, firmemente.
Ela olhou-o sem ver, os olhos molhados e vidrados, ainda querendo voltar para o mar. Ele continuou segurando-a pelo braço e balançou a cabeça repetidas vezes no gesto de não. Muito lentamente ela foi acordando de seu alheamento e o reconhecendo e depois ao gesto e este aos poucos ganhou um sentido e entendeu onde estava e o que fazia ali.
Sacudiu a cabeça para despertar completamente e voltou para a aldeia, enquanto Cure soltava um suspiro de alívio.
Ela nadaria neste mar, sem a thuga, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida, prometeu a si mesma. Mas agora tinha que ver Mundo e saber como estava e o que tinha acontecido na aldeia com o desmoronamento.
Tal como Mundo imaginara, a aldeia não fora atingida. Infelizmente um casal namorava naquele lugar na hora em que ruiu. Demoraram a recuperar os corpos debaixo de toda terra e haviam enterrado os dois juntos ali mesmo. Estavam em prantos pela perda do jovem casal e pela preocupação com os que estavam fora quando eles chegaram.
A mãe de Mundo fora a primeira a vê-los e soltou gritos efusivos que alertaram os demais.
Mundo e os demais gigantes foram envolvidos por um festival de abraços e beijos barulhentos.
Seguiram para o centro da aldeia e uma festa começou, no mesmo instante, sem programação, como um ato puramente instintivo daquele povo, de seu desejo de comemoração pelo retorno dos gigantes e, principalmente, de Mundo.
Tambores, flautas, chocalhos e guizos se fizeram ouvir em uma algazarra caótica de sons. Alguns jovens foram para o centro e começaram a dançar de forma exótica, intercalando gritos aos gestos.
Era demais para Liara. Sua cabeça zunia com o excesso de informações, cores e sons. Sentiu-se balançar perigosamente e tapou os ouvidos com as mãos, fechando também os olhos, na tentativa de readquirir algum equilíbrio.
Ficou grata quando Cure a pegou no colo e levou-a de volta ao acampamento, apreciando o silêncio e a ausência de brilho e cores. Ele a deitou em sua cama e ela dormiu quase que no mesmo momento.
Teve um sono agitado, com pesadelos assustadores em que gigantes a disputavam com o povo de Sur e um imenso Ur interviu pegando-a com uma mão imensa e perguntando o que estava fazendo. Ela chamou pela mãe, apavorada e ouviu uma voz calma, dizendo-lhe que estava tudo bem, que podia dormir tranquila e dormiu. Lembrava-se de ter sentido sede e a mesma voz lhe ofereceu água e ajudou-a a sentar-se para tomar. Não conseguia lembrar quem era e pediu novamente por sua mãe. A voz disse que ela já estava chegando, que dormisse enquanto isto e dormiu novamente.
Acordou e era noite na barraca. Pensou ter dormido algumas horas apenas, mas sua mãe – a primeira pessoa que viu – disse que dormiu um dia inteiro, consumida por febre. Estavam preocupados e enviaram um assistente do Cure para trazê-la de volta.
– O que aconteceu, mamãe?
– Qual a última coisa que se recorda?
– Estávamos na aldeia de Mundo e eles começaram a tocar e a dançar e minha cabeça começou a doer muito e fiquei enjoada também.
– Serg percebeu que você não estava bem e trouxe-a para cá. Tomou conta de você até que eu chegasse.
– Ah… Pensei que não gostava de mim. – Surpreendeu-se ao saber quem era o dono da voz calma que ouvira.
– Está enganada. Ele ficou muito preocupado e não saiu de seu lado enquanto não cheguei. Você teve febre. Acho que não estava preparada para tantas cores e sons diferentes.
– No começo achei bonito demais. Tanto que até chorei quando vi aquele monte de água. Depois é que comecei a me sentir esquisita.
– Mundo está aqui também. E muito preocupado. Vem toda hora perguntar sobre você. Quer vê-lo?
– Quero, lógico. Posso ir lá fora?
– Fique um pouquinho mais na cama, até termos certeza de que está bem. Vou trazer uma sopa para você enquanto conversa com Mundo.
– Está bem, Iá.
Odiaria confessar, mas estava mesmo um pouco tonta. Seria bom comer algo antes de levantar.
– Ei, mocinha! – Mundo entrou, com cara preocupada. – Que susto nos deu. Está melhor?
– Lógico que estou. Foi só um charminho extra.
– Ah, para voltar a ter as atenções todas para você, não é? – Ele piscou, entrando na brincadeira e já mais descontraído.
– E consegui, parece. Até Iá voltou! – Liara deu uma risadinha, satisfeita por ter Iá com ela novamente.
– Sim. – Fez uma pausa e voltou a ficar sério. – Liara, o que houve? Alguém te machucou?
– Não, imagine! Acho que minha cabeça é muito pequena. Entrou coisas novas demais e ela pifou. – Falou fazendo graça novamente. Odiava quando ele ficava assim, sério.
– Lógico! Que idiota fomos. As cores, não? E a música?
– E o mar e o tamanho de todos e a areia…
– Tudo, basicamente. – E riu.
– Basicamente. – Ela também riu.
– Não se preocupe, quando voltar lá será tudo calmo e tranquilo. Assim você absolve um pouco de cada vez. O que acha?
– Tudo bem. Mundo… O mar é tão bonito… Queria entrar nele e nadar até aquela linha distante.
É bonito mesmo, apesar de que nós gostamos mais de rios. Tanta água me deixa um pouco nervoso. – Ele confessou.
– Eu não! Acho que se tiver que encontrar a Fada do Rio algum dia, será no mar.
– Então será a Fada do Mar. – Ele zombou.
– Que seja! – Ela cruzou os braços no peito, brava. Ele fez-lhe um carinho nos cabelos e acabaram rindo juntos.
– Liara, querida, não fique tão agitada. Aqui está sua sopa e também alguns bolinhos doces. A cozinheira fez especialmente para você.
– Sério, Iá? – Ela estava surpresa com esta segunda manifestação de carinho.
– Parece que andou conquistando alguns corações nestes dias. – Ela sorriu, feliz pela aprovação.
– Mas nada mudou, não é? – Falava da assembleia.
– Ainda não, mas vai mudar. Confie em mim.
– Do que estão falando? – Quis saber Mundo.
– Da proibição de falarem comigo. – Explicou.
– Ah! Liara, pergunte à sua mãe o que decidiram na cidade, por favor.
Ani disse que decidiram fazer a reunião ali e não na cidade. Aconteceria dentro de dois dias no máximo. Era o tempo necessário para que todos chegassem.
– Os anciões também virão? – Quis saber.
– Sim e praticamente a cidade inteira. Estão curiosos com eles e também com a caverna, os cristais e tudo o mais. – Quando contou a Mundo ele ficou preocupado.
– Não acho que seja adequado. O solo ainda está frágil e se todos eles quiserem entrar, receio que não suportará.
– Acho que não entrarão na segunda caverna, onde vocês estão. Na verdade, sentem-se divididos. Se por um lado estão curiosos, por outro, têm medo de contrariar Ur. – Ani explicou.
– De qualquer forma, ninguém entrará lá antes da assembleia autorizar. E você poderá falar o que desejar se Liara estiver bem para traduzir.
– Lógico que estarei bem!
– Ok! Ok! Não precisa ficar brava! – Ele pôs as mãos para frente, como se fosse contê-la e piscou para Ani. Liara com certeza já estava bem.
No dia seguinte, Ani, o Cure e Liara voltaram à caverna. Mundo cumpriu a promessa e a visita transcorreu em clima silencioso e pacato. Eles foram formalmente apresentados a toda sua família, começando pelos mais afastados, primos, primas, tios, sobrinhos e agregados, o que era cerca de 80% de toda a aldeia e fez com que Liara se divertisse.
Seus pescoços estavam doloridos de tanto olhar para cima, principalmente o de Liara, que tinha pouco mais de um metro e meio contra os dois e meio a três metros deles. Mundo tinha cerca de um metro e setenta e ainda estava crescendo, mas era bem menor.
Branca Flor sugeriu colocá-la em seus ombros. Ani ficou horrorizada e preocupada, mas Liara adorou a sugestão e imediatamente estendeu os braços para ser içada. Sentou-se no ombro direito da gigante.
– Nossa! É muito alto! – Agarrou os cabelos da amiga, deixando-a meio doida.
– Pára, Periquito. – Ela falou rindo e guiou suas mãos para o rabo de cavalo, onde não machucaria. – Segura aí. Vou arrumar um pano para amarrar você ao meu pescoço, o que acha?
– Boa! – Mais acostumada à altura, Liara começava a se gostar da brincadeira. Ani e Mundo balançavam a cabeça, rindo.
– Só você mesmo! Gostei do Periquito, Branca. Combina direitinho com ela. – Ele falou para implicar com Liara.
– Não! Não se atreva! Lembre-se de que está em minhas mãos. – Ameaçou ela.
– Tudo bem, Periquitinho. – Ele respondeu, mostrando todo seu medo.
– Praga! Espere eu descer para ver. – Ela retrucou, irritada de verdade.
Quando Branca e ela estavam em busca de um pano para prendê-la encontraram Sona, a mãe de Mundo. Sona significava Melodia, mas Liara gostou do som do nome no original e apresentou-a assim para sua mãe e o Cure.
– Foi você quem salvou meu filho da morte? – Ela perguntou após as apresentações formais.
– Ah, ele exagera. Só acrescentei um calorzinho. – Estava subitamente tímida, frente àquela mulher imensa. Sona além de muito alta, era larga com quase que o dobro do volume de Branca.
– Exagero nada! Deixa te dar um abraço? – E já foi pegando-a do ombro de Branca, como se fosse um passarinho e espremendo-a entre seus seios fartos.
– Mãe, pára agora! – Mundo falou bravo. – Esqueceu-se do que falei? – Ela afastou Liara que já estava tonta pelo vai e vem nas alturas e segurou-a na sua frente, um pouco distante do corpo.
– Desculpe, querida. Não te machuquei, não é?
– Não. – Liara conseguiu balbuciar.
Ah! Está vendo, Mundo? – E apertou-a novamente, agora junto ao rosto, beijando-a. A intenção provavelmente era beijar sua face, mas a boca imensa cobriu quase todo rosto de Liara que a custo segurou uma expressão de nojo.
– Mãe!!! – Mundo estava à beira de um ataque de nervos e falou alto o suficiente para que fosse ouvido por ela.
– Está bem, está bem. – Voltou Liara ao ombro de Branca que a amparou com uma das mãos. Liara agradeceu em silêncio, completamente tonta agora e enjoada também.
– Querida, muito obrigada. Temos uma imensa dívida com você e se pudermos fazer algo, qualquer coisa, a qualquer momento, é só dizer. – Disse Sona sem a menor consciência do mal estar que causara em todos.
– Tudo bem. – Liara conseguiu dizer. Ani reparou em sua palidez e sugeriu que ela descesse um pouco.
Mundo trouxe água de coco gelada e tomaram sentados à beira de uma das cabanas, balançando as pernas no espaço vazio entre o chão e a cabana.
Elas eram construídas por cima de plataformas, suspensas acima do chão alguns centímetros por estacas firmemente presas ao solo. Branca explicou que às vezes a maré era muito forte e assim evitavam alagamentos.
– Liara, desculpe. Nossa mãe é assim, não faz por mal. – Mundo falou, constrangido.
– Tudo bem. – Ela já estava quase normal agora.
– Tudo bem mesmo? Se quiser voltar para descansar não tem problema algum. – Ele sugeriu. Cure estava dizendo algo baixinho à mãe.
– O que foi? – Quis saber.
– Ele está preocupado com você. Diz que você estava meio verde. Não quer que tenha uma recaída. – Liara olhou-o intrigada.
O Cure sempre foi simpático com ela, mesmo quando a levou para a Cura. Mas ela achava que ele partilhava do temor que os Surs tinham dela. Em sua cabeça, todos os Surs a viam mais como um monstro perigoso do que como uma menina e estava surpresa por não ver sentir qualquer prevenção vinda dele. Tratava-a com carinho.
Ele era um homem de seus cinquenta anos. Nunca se casou e ela sentiu pena e também gratidão pela forma com que a tratava. – “Pena que não podemos falar um com o outro.” – Pensou.
– Estou bem agora, Iá. Agradeço pela preocupação. – Falou para ela, sabendo que ele ouviria.
– Preparada para conhecer meu pai? – Mundo perguntou.
– Ele é como? – Ela quis saber, ressabiada depois da mãe. Ele riu.
Não, fique tranquila. É até sério demais.
– Tudo bem, vamos então.
Entraram na cabana da plataforma que era um pouco maior do que as demais.
Liara tinha notado a extrema limpeza e organização das cabanas anteriores e da aldeia de forma geral. A cabana do chefe não era exceção. O chão de madeira estava impecavelmente varrido e coberto por vários tapetes muito coloridos. Penas de pássaros, objetos entalhados, cascos de cocos reaproveitados e folhas de palmeiras faziam uma decoração leve e agradável.
Lá dentro estava mais fresco do que o exterior e Liara agradeceu a Ur. Estava exasperada com o ar abafado, louca de vontade de tirar a thuga e entrar no mar só com as roupas de baixo.
O chefe estava formalmente sentado em uma grande cadeira feita de bambus e trançada com cipós. O assento e o encosto eram almofadas decoradas com penas de pássaros de todas as cores e tamanhos.
Ele era ainda maior e mais forte do que Sona. O rosto gordo sorriu discretamente. Em sua pele havia mais desenhos do que nos demais. Ela pensou em lembrar-se de perguntar a Mundo sobre seu significado.
– Pai, esta é Liara, a jovem que me encontrou e salvou no mundo exterior. – Ele inclinou a cabeça em uma saudação suave e Liara não soube o que fazer. Fez a mesma saudação. Mundo apresentou Ani e Cure, que também fizeram o mesmo, constrangidos.
– Liara, Ani e Cure, este é Anajé, meu pai e chefe de nossa aldeia. – Mais tarde explicou que Anajé era um tipo de gavião, perigoso, veloz e certeiro.
O chefe levantou-se e ajoelhou em frente à Liara.
– Mil palavras e todas nossas riquezas não seriam suficientes para demonstrar o quanto agradeço pela vida de meu filho mais precioso. Obrigado. – Pegou sua mão delicadamente e acariciou-a com a outra mão.
Falara de forma pausada olhando-a diretamente e naquele olhar Liara viu o quanto estava emocionado e ficou tocada. Seus gestos contidos foram muito mais expressivos do que toda a efusão da mãe. Não soube o que dizer e apenas balançou a cabeça aceitando o agradecimento.
O chefe ainda ajoelhado virou-se para Ani e Cure.
– Sou muito grato a ambos. A senhora que apoiou a atitude de sua filha e depois abrigou meu menino em sua casa, mesmo sem o conhecer, provando a generosidade de seu coração e ao senhor que tanto ajudou nos trabalhos de escavação que permitiu o retorno de Mundo e dos nossos que ficaram do outro lado. – Apertou a mão de Ani e de Cure e depois fez um gesto com os braços, indicando o que lhes cercava.
Tudo que temos é também de vocês. São considerados nossos hóspedes de honra e nossos amigos do coração, não apenas hoje, mas a qualquer momento no futuro, onde quer que estejamos.
Ani e Cure agradeceram, ambos dizendo não terem feito nada. O chefe Anajé convidou-os a sentar em um círculo formado por tapetes no chão e mais refrescos foram servidos, junto com frutas frescas.
– Pai, conforme expliquei fui até o mundo exterior em busca de uma solução para nossos problemas e felizmente, graças à ajuda de Liara e Ani, nós a encontramos. – Liara foi traduzindo para Ani e Cure.
– Sim, você disse que eles possuem uma pedra chamada Ká que pode ser usada para fazer um barco para nós. É isto, não?
– Basicamente. Eles também dominam uma arte que chamam de magia e que consiste no domínio deste minério através da mente, tornando muito mais fácil sua utilização.
– Gostaria de ver um exemplo disto.
– Sim, Pai. Liara veio preparada e fará uma demonstração em frente ao mar. Antes gostaria de expor o restante do assunto que nos trouxe aqui.
– Continue.
– Eles também possuem construtores que neste momento finalizam uma estrutura de suporte ao teto da caverna, o que nos permitirá permanecer neste lugar até que o navio fique pronto.
– Muito bem.
– Em troca eles desejam as pedras brilhantes desta e da outra caverna de cima.
– Só isto? Aquelas pedras são bonitas, mas servem para nada. – Ele ergueu uma sobrancelha, mostrando dúvida.
– Para eles é a maior de todas as riquezas. Através desta arte da magia, pretendem transformar as pedras em vários objetos diferentes.
– Mesmo assim, é muito pouco. Diga-lhes que podemos pagar com pérolas, ossos de marfim e brilhantes, diamantes, rubis, enfim, todas aquelas pedras brilhantes que recolhemos dos Ruts. E diga que também temos armas da melhor espécie: facas, arcos, flechas. E poções de feitiços. Podemos armar um exército inteiro.
Eles tiveram que se conter para não rir e demonstrar o quanto achavam graça naquela oferta. Conversaram os três para decidir como recusar a oferta sem ofender o chefe. Cure falou.
– Senhor Anajé, ficamos extremamente gratos pela oferta tão generosa, entretanto somos uma raça pacífica. Não temos armas e nem sabemos lutar. Também não usamos estas pedras, porque somos um povo simples que não gosta de muitos adornos. As pedras brilhantes tem muito valor para nós e nos consideraríamos muito bem pagos se pudermos extraí-las. – O chefe aceitou a explicação, mesmo achando sem sentido algum. Em seguida foi Ani a falar.
– Gostaria de acrescentar que este acordo ainda terá que ser formalizado em uma assembleia com a presença de nossos anciões e líderes juntamente com sua presença e de quem mais indicar. Estamos pensando em realizar esta reunião amanhã, se estiver de acordo. – Ele ia balançando a cabeça em sinal de acordo, conforme ouvia a tradução de Liara.
– Sim, estou de acordo. Onde acontecerá esta assembleia? Aqui? Ou lá fora? – Perguntou.
Ninguém tinha pensado neste detalhe e não souberam o que responder. O certo seria efetuar ali a reunião, mas não sabiam o que os anciões pensariam sobre o fato de entrarem neste mundo tão contrário ao mundo de Sur. Fazer a reunião no exterior seria dificultado pelo tempo frio e a pouca resistência dos gigantes a ele.
– Ainda não decidimos Senhor Anajé. Esperamos que cheguem ao nosso acampamento e então o informaremos. – Cure disse.
– Muito bem. Posso ver agora a demonstração de magia da menina?
– Claro! – Liara percebeu que ele estava ansioso pela novidade.
Foram até a praia. Conforme andavam os gigantes espalhados se aproximaram para ver também. Liara andava devagar, com medo de ser hipnotizada pelo mar novamente. Este segundo encontro foi mais suave, conseguindo controlar a vontade de tirar a thuga e nadar com a promessa de que faria isto o mais rápido possível.
– Pai, este é o minério que eles chamam de Ká. – Mundo mostrou-lhe um pedaço de Ká, com cerca de 40 centímetros de comprimento, 15 de largura e 10 de altura. O chefe olhou e cheirou. Em seguida o pedaço passou de mão em mão até chegar às mãos de Liara.
Ela apoiou-o em cima de ambas as mãos e fechou os olhos. Os gigantes viram o metal ir lentamente ganhando o formato de uma jangada. Quando abriu os olhos estavam todos agachados fazendo-lhe reverências do mesmo jeito que Mundo fizera quando ficou invisível.
– Mundo, fala para eles pararem com isto, por favor! – Pediu agoniada.
– Levantem. Ela não é filha de Itshara. Também pensei isto quando vi, mas é apenas uma técnica que este povo sabe. Vários deles fazem isto. – Explicou.
Os nativos foram levantando, mas ainda olhavam diferente para ela. Ani e Cure divertiam-se, um pouco afastados. – “Traidores!” – Pensou.
Novamente o ká, agora em forma de jangada foi passado de mãos em mãos. Mundo tinha visto algumas destas em seu mundo e desenhara para que ela soubesse como era. Quando voltou às suas mãos, entregou a ele.
Mundo avançou um pouco no mar e colocou o Ká na água, para que todos vissem como flutuava sob as ondas.
Eles podem construir uma grande jangada, onde todos nós entraremos e assim iremos para nossa casa.
Os gigantes começaram a bater palmas e a gritar e Mundo usou um apito que trouxera prevendo este resultado.
– Silêncio! Lembrem-se do que conversamos antes deles virem. Não estão acostumados a esta algazarra e não queremos que nossos amigos passem mal, não é?
Eles se calaram imediatamente, como crianças repreendidas pelo professor e murmurando pedidos de desculpas foram se afastando.
– “Certamente para comemorarem a distancia.” – Liara concluiu, achando graça. Mas ficou grata a Mundo por manter a ordem. Não suportaria outra explosão de gritos e música. Até mesmo o chefe despediu-se e voltou para sua cabana. Na praia continuaram Ani, Cure, Mundo, Branca Flor e Liara.
– Acho que foi tudo bem, não? – Comemorou Ani, sorridente.
Liara ia responder quando ouviu latidos fracos e viu um cãozinho branco vindo, mancando, na direção deles.
– Quem é? – Ela perguntou enquanto já disparava em sua direção. Ani e Cure trocaram um olhar significativo.
– Oh, que lindo! – E o pegou no colo. O filhote não se fez de rogado, lambendo todo seu rosto. Ela riu, deliciada.
– É Neve. Ele quebrou uma perna durante o desmoronamento. – Mundo explicou, parecendo triste.
– Neve? O que é isto?
– Em nosso mundo existem lugares que são tão frios e gelados que o ar congela em flocos muito brancos, parecidos com pipoca estourada, mas são feitos de água, derretem logo e não são duros como os da pipoca. Chamamos isto de neve. Ele é branquinho como a neve.
– A mãe de Neve e seus irmãos morreram no desmoronamento. Ele foi o único a sobreviver. – Agora era Branca Flor quem falava, olhando com o rabo dos olhos para o irmão. – Era a melhor amiga dele. – Indicou-o.
– Mundo, lamento muito. – Ele aceitou os pêsames sem comentários. Parecia bem triste.
– E agora este rapazinho ficou órfão. Estamos nos revezando em seus cuidados. – Branca completou fazendo com que as atenções voltassem a ele.
– Deixe-me ver esta perna. Ah, está ótima. Logo você estará correndo por aí. – Liara falou.
Liara não conseguiu separar-se do novo amigo e como ninguém se opôs, levou-o consigo para o acampamento. Dormiu com ele, sob a desculpa de que ficaria com frio fora da cama.
Ninguém se opôs sabendo que ela merecia um pouco de alegria depois da aspereza dos últimos acontecimentos.
Alguns dias depois, Mundo contou que não era um cachorro e sim uma espécie de lobo e que era gigante como eles e que por isto ela não poderia ficar com ele. Mas aí já era tarde demais.
Os anciões começaram a chegar logo cedo e durante o dia continuaram a chegar trazendo com eles parte do povo de Sur. Lure, Suri e Sure estavam entre os primeiros e junto com Ani fizeram uma pequena reunião para decidir as providências a tomar.
Havia vários problemas. Para começar a primeira caverna não suportaria o peso de tantas pessoas, então, obviamente a assembleia não poderia acontecer ali. E a primeira caverna seria o ideal, porque era um território neutro.
O chefe e o povo de Mundo certamente não se oporiam a encontrarem-se do lado de fora, mas era praticamente impossível porque o túnel que dava acesso ao exterior não tinha abertura suficiente para que os gigantes passassem. Aliás, nem o túnel que ligava as duas cavernas teria. Mesmo que, supondo, tivesse e fosse possível o a reunião no acampamento, ainda haveria a questão do frio e das peles expostas, contrárias a Ur.
Eles talvez aceitassem usar a thuga, mas também seria contrário às regras, considerando que era um instrumento de Ur, sagrado aos Surs.
Assim, a solução óbvia era que a reunião ocorresse na aldeia. Lá tinham espaço mais do que suficiente e temperatura adequada. Porém – e esta palavra sondava-os como uma ameaça – os anciões poderiam não querer entrar em solo tão profano e muito menos considerariam a hipótese de uma assembleia em meio a tanta pele nua.
Uma solução eventual seria a instalação de uma enorme tenda a partir da entrada que dava para a caverna. Estariam na aldeia e ao mesmo tempo, isolados, sem acesso às cores, ao mar e a tudo que se opunham.
Evidente que não resolvia o impasse sobre a vestimenta dos gigantes. Todos eles usavam o mínimo de roupas. Aliás, nem se poderia chamar o que usavam de roupas. Eram mais como adornos que colocavam acima dos genitais.
Se o povo de Sur fosse liberal poderiam mesmo apreciar a beleza artística daqueles adornos, pois como única peça usada no corpo eram a forma como exibiam riqueza, arte, criatividade e não raro, contavam partes de suas histórias de vida. Usavam penas raras, couro, pelo e dentes dos animais que mataram com bravura, pérolas, pedras preciosas e mais uma infinidade de penduricalhos. Eram como tangas ou quando mais elaborados, pequenas saias, não mais do que isto. E as crianças nem isto. Como complemento colares e brincos também luxuosamente trabalhados. E, para finalizar, as pinturas corporais.
Mundo havia contado à Liara e sua mãe que todas as pinturas tinham um significado. Quem soubesse ler os desenhos, saberia praticamente tudo sobre eles. Começavam a se tatuar assim que nasciam com seus nomes, símbolos de proteção e os desejos dos pais para o futuro dos filhos. E prosseguiam tatuando a cada fato ocorrido ao longo de suas existências.
Em seus corpos estavam descritos os casamentos, os filhos, as lutas, os acidentes, as mortes, os nascimentos, os momentos mais felizes e os mais tristes. Cada um era um livro de si mesmo.
Liara ficou sabendo que cada cor era destinada a algo específico, combinando a escala de cores com a intensidade do fato ou maturidade da pessoa, de forma que as cores consideradas primárias, o branco, preto e vermelho eram reservadas aos eventos decisivos e importantes e as cores obtidas através de misturas, os tons intermediários – castanho, amarelo, rosa, verde, azul, etc… – para eventos mais pessoais, importantes para a pessoa e não tanto à aldeia. E quanto mais claros, menos importante.
Ele mostrou vários símbolos e seus significados, mas eram muitos para que aprendesse todos de uma vez. Havia círculos, raios, linhas curtas e compridas, quadrados, estrelas, ilhas e cada um deles combinado com outro gerava um sentido mais completo ou totalmente diferente. E também o local onde estavam tatuados tinha um significado próprio, sendo a cabeça o lugar mais nobre, seguido do peito, dos braços. Pernas e tudo que ficava na parte posterior dos corpos eram menos importantes.
Mundo tatuou sua aventura com vários símbolos espalhados pelo corpo. Sua quase morte era um círculo branco com um pequeno traço preto no umbigo. Explicou que o umbigo de um homem é a origem de sua vida e que o traço significava sua morte e o círculo o renascimento. Liara estava em seu peito, um pequeno sinal de “V” dentro de um quadrado que ele justificou como sendo um pássaro que pousou em seu coração para protegê-lo.
Também fez pequenos traços em sua face que eram sinal de grande bravura. E na testa indicando sucesso. E ainda nas costas e nas pernas. Justificou alegando que embora tenha sido um ato de bravura, também foi tolice em outros sentidos.
Liara não entendeu porque era um pássaro, mas gostou assim mesmo. Quis fazer uma tatuagem, para ter Mundo em seu corpo também, mas Ani proibiu de uma forma tão ameaçadora, que ela não se atrevia mais sequer a conversar sobre o assunto.
Perguntou a Ani sobre a Meia-lua que tinha em um dos seios. O que significava? Ela não sabia. Mundo disse que em seu mundo tatuavam a lua, cheia ou minguante, para recordar eventos relacionados a divindades ou ao que pertencia ao mundo dos espíritos, em resumo, a todos os eventos inexplicáveis.
– Ajudou muito. – Disse irônica e meio irritada. Por outro lado, agora percebia ter uma marca com significado. Algum dia poderia descobrir seu sentido e quem sabe, talvez a levasse até sua origem e explicasse tudo que permanecia um mistério. – “Até que a marca está certa.” – Pensou com desalento. – “Minha vida toda é um evento inexplicável.” – E só não chorou porque ele a distraiu com outro assunto qualquer. – “Mundo está ficando bom neste negócio de me entender.” – Considerou ao recordar aquele momento.
Chamada à pequena reunião explicou tudo que sabia sobre as roupas e os desenhos e eles entenderam que cobrir os gigantes seria como pedir-lhes para irem completamente nus. Seria como tirar suas identidades. Totalmente inviável, principalmente para o chefe.
– E então? Como saímos deste impasse? – Quis saber o Cure. Os outros também estavam desanimados.
– O problema não é a assembleia. Prestem atenção. – Isto quem falou foi Suri, que permanecera quieta até aquele momento.
– Como assim? Lógico que é. – Protestou Sure.
– A Assembleia não é para aprovar o acordo de colaboração? Caso o acordo seja aprovado, o povo de Sur ajudará o povo dos Gigantes a construir um navio para que eles voltem ao seu mundo. Quanto tempo isto vai levar? Meses!!! Meses em que os mineiros e construtores e todo o pessoal de apoio terão que viver praticamente dentro da aldeia. De que adianta fazer a assembleia aqui fora ou lá, dentro de uma cabana, se depois estarão expostos?
– Mas não serão os Anciões. – Ponderou Ani.
– E eles aceitarão que nosso povo seja assim exposto? – Ela perguntou.
– Fazem mais de quinhentos anos que vivemos em Sur isolados. Nossos jovens nunca souberam nada do outro lado e agora… – Sure completou o raciocínio.
– Não tem solução. – Era Cure quem dizia o que todos já sabiam. – Ou eles aceitam a convivência ou não haverá acordo.
– O que acham que decidirão? – Perguntou uma Ani já temerosa.
– Pode pressioná-los? – Cure perguntou ao Lure.
– Não! – Lure temia isto, desde o início. E agora via seus receios confirmados. O momento em que teria que tomar um partido e ainda lutar para que seu lado vencesse. – Vocês não entendem? Não posso… – Todos entendiam. Bastava olhar para ele e ver suas mãos que tremiam.
– Eu posso. – Declarou o Cure, surpreendendo todos. – Quer dizer, não diretamente, mas posso chamar um dos construtores que conheço. Ontem ele mostrou-me um artefato novo que construiu com o Urká. É um sistema de iluminação que pode ser utilizado inclusive nas ruas. Não usa óleo de cabra, nada. Funciona apenas com o cristal e magia. Imaginem o que isto significará para nós. – Todos os produtos que derivavam das cabras eram raros, porque o rebanho era pequeno. Fora de Sur muitos ainda viviam sem iluminação.
– Eu vi alguns instrumentos de corte feitos com ele. Corta o ká mais resistente como se fosse água. – Suri comentou.
– E as panelas? – Ani suspirou. – Dá para ver a comida dentro e ela não gruda no fundo. Adoraria ter um conjunto daqueles.
– É isto! – Cure falou, aliviado. – Vamos começar a assembleia com uma demonstração do que podemos fazer com o Urká! Vamos deixa-los ávidos por ele e em seguida expomos a situação. Se eles se recusarem, terão todo o reino contra eles.
– Pode funcionar. – Ani considerou.
– Primeiro fazemos uma reunião aqui só com nosso povo, para decidir o local da assembleia com os Gigantes. – Propôs Cure. – Hoje à noite faremos a nossa e amanhã a deles.
Subitamente animados deram inicio aos preparativos. Uma tenda grande foi armada próxima ao acampamento. Levaram cadeiras para os anciões e os dirigentes e organizaram-nas no esquema de meio-círculo de praxe. À frente uma grande mesa onde os construtores exporiam seus artefatos. Atrás ficariam os mineiros, construtores e todo o povo de Sur.
Enquanto isto Cure, Ani e Suri corriam atrás de artefatos com o novo minério. Encontraram vários modelos que iam do curioso ao prático, mas um deles ultrapassou todas as expectativas.
Joner, um construtor obscuro, que quase ninguém conhecia, construiu um dispositivo inovador que capturava e armazenava a energia da luz dentro dos cristais e esta energia podia ser liberada conforme a necessidade. Não havia ainda uma aplicação prática para o dispositivo, mas as possibilidades eram incríveis, tanto para iluminação quanto para acionamento de outros mecanismos. Conforme demonstrou, dependendo do ajuste da intensidade dos feixes de luz, objetos poderiam ser movimentados. Fez uma demonstração em que uma roda girava ao contato com a luz e mostrou desenhos de vários mecanismos que executavam mecanicamente alguns trabalhos até então somente podiam ser feitos de forma manual. Foi o desenho da carroça que rodava sem a necessidade dos cachorros que calou todos.
– Não precisamos de mais nada. – Cure declarou. – É isto. – Sentiu um arrepio percorrer seu corpo. – “É como se eu estivesse ganhando uma nova vida.” – pensou.
Ao longo de sua vida como Cure, como mantenedor da ordem de Sur, Serg prendera e banira pessoas cujos delitos iam desde pequenas variações da thuga à mudança não autorizada de função ou relacionamento não aprovado. Raríssimas vezes seu trabalho envolveu algum ato realmente criminoso e quanto mais o conselho era rígido, mais Cure achava injusto.
Ele não tinha como se opor, sua função era cumprir as determinações do conselho, mas a cada vez que bania da sociedade uma pessoa por um destes motivos, em sua opinião, fúteis, sentiase envergonhado.
Era capaz de entender a necessidade de manter a ordem, mas para ele e qualquer pessoa de sua geração e das últimas, Er não passava de um fantasma, do qual tinham uma noção muito vaga e nebulosa. Às vezes duvidava mesmo que existisse e também seus seguidores ou mesmo que oferecessem qualquer perigo.
Achava que o controle era excessivo. Já estavam isolados pela cortina de névoa. Ninguém podia entrar ou sair. Qual seria o problema se relaxassem e apenas vivessem como desejassem? Escondia muito bem suas ideias, mas não conseguia deixar de pensar ou de desejar mudanças.
Quando Liara chegou, acreditou que tinha sido como resposta de Ur às suas preces. Teve esperanças de que ela promoveria a mudança que almejava.
Ao longo de todos os anos em que acompanhara seu desenvolvimento, acabou por aperfeiçoar-se a ela. Ele nunca se casara porque não quisera partilhar sua vida com uma mulher que não tivesse as mesmas ideias e jamais encontrara alguma que demonstrasse ao menos remotamente alguma revolta com o sistema. Também não tinha filhos. Nem mesmo pais, que haviam falecido há alguns anos.
Sua vida consistia no trabalho e sem que percebesse Liara passou a fazer parte de seu cotidiano, cada vez mais. Encantava-se com sua vivacidade e alegria, deslumbrava-se com as notas na escola e enternecia-se com o amor que demonstrava com os animais. Cure vivia para Liara, sem que ela pudesse imaginar.
Quando houve o incidente do peixe, sentiu-se atingido pessoalmente pelo decreto e por muito pouco não perdeu o controle, dizendo o quanto achava que eram hipócritas e covardes.
Observou a menina ao longe, discretamente, durante o período de isolamento, mantendo-a sob uma vigilância constante. Ninguém além dele e dos seus assistentes sabia disto. Alegou que precisavam ter certeza de que ela não voltaria a utilizar seus poderes mágicos, mas na verdade ele queria ter certeza do contrário, de que ela continuaria a fazê-lo e cada vez mais. Sentia-se na obrigação de protegê-la e ao seu direito de exercer os dons que Ur lhe dera.
Era ele quem estava de plantão no dia em que ela encontrou o menino, felizmente. Quando ela saiu, foi ele quem manteve a fogueira acesa. Liara era bem intencionada, mas entendia muito pouco de fogueiras e ela teria se apagado em pouco tempo. Ele conseguiu mais madeira e avivou o fogo até que ela voltasse.
Dispensou seus assistentes nos próximos dias, enviando-os para a entrada da gruta. Entendeu imediatamente quem era o menino e viu a mão de Ur neste encontro. Ficou de prontidão, para intervir caso fosse necessário, mas quis dar à menina oportunidade para agir como desejasse.
Viu – eufórico – quando ela conversou com o menino e quando ficou invisível, comprovando o que já sabia: ela não deixaria de usar seus dons. Imaginou o que mais ela poderia fazer. Naturalmente sabia desde o início que o menino estava na casa e colocou seu assistente lá para protegê-los dos habitantes de Sur no caso de alguém descobrir e não, conforme disse, preocupado com o desconhecido.
E quando ela chegou à gruta, junto com a mãe e o menino ele soube, sem a mínima dúvida, de que este era o momento pelo qual esperara durante tanto tempo. O Reino de Sur não voltaria a ser o mesmo depois deste encontro entre mundos tão diferentes. Foi por isto que, quando entraram na caverna dos Gigantes e todas as atenções estavam voltadas para os nativos e o cenário, ele não desgrudou os olhos de Liara, percebendo seu fascínio pelo mar e depois, seu mal estar com a música e a dança.
Quando a pegou no colo e levou de volta para o acampamento, foi difícil conter a emoção. – “Tão pequena, tão frágil.” – Observava. – “Como pode ser possível que carregue um fardo tão grande?” – Ele sentiu naquele momento que faria tudo para que ela sorrisse. E soube que mataria ou morreria por ela, sem hesitação.
Enquanto ela dormia, febril, permaneceu ao seu lado, assustado com a intensidade de sua devoção, deslumbrado com o gosto de vida que o invadia. – “Sim. Por ela minha vida ganha sentido. É por isto que existo. É por isto que Ur me fez nascer e ter estes pensamentos: para que pudesse protegê-la e ajudar a concretizar o plano de Ur.“ – Ninguém poderia ser tão feliz quanto ele ao entender o papel que desempenharia nas mudanças que estavam por vir.
– “Tenho que ser discreto.” – Pensou. Se as pessoas soubessem de sua devoção à menina, perderia o poder, seria desacreditado.
Agora, olhando para aquele artefato que armazenava energia, sentiu-se inundar de alívio.
– “Isto é excepcional. Nenhum ancião deixará de reconhecer. É o que precisamos.” – Concordou com o que Ani dizia, como todos.
Arrumaram a mesa com tudo que conseguiram. Os construtores foram organizados na ordem em que entrariam para demonstrar suas criações, Joner por último.
Foi bem a tempo. A tarde já se encerrava. Tiveram apenas uma hora para o jantar e quando todos estavam em seus lugares a assembleia começou. Mundo não estava presente. Liara seria chamada quando fosse necessário. Serg imaginava se ela estaria ali, invisível e quase podia apostar que sim.
Mas não estava. Liara estava em sua cabana, tentando secar os cabelos. Sabendo que todos estariam ocupados durante o dia, foi para a caverna disposta a nadar naquele mar e refrescarse um pouco enquanto experimentava aquelas águas.
Mundo não queria concordar. Estava com receio, porque ela era muito pequena e às vezes o mar era muito forte. Explicou-lhe, mas ela teimou, dizendo que iria com ou sem ele. Branca Flor e Cavalo Selvagem, o irmão menor de Mundo decidiram nadar com ela e ele concordou à contragosto. Queria amarrar uma longa corda entre seu pulso e o deles e ela ficou indignada.
Ele estava se tornando muito protetor. Às vezes aborrecia Liara, embora ela entendesse. Ela era seu ponto de ligação com os Surs e qualquer coisa que lhe acontecesse na caverna ele seria o culpado. Mas ela achava que ele estava exagerando e não era apenas pelo senso de responsabilidade. Ele estava tratando-a era como uma irmã menor, uma irmã bem menor, como um bebê. Disse-lhe isto, tentando manter sua expressão mais séria e ameaçadora e ele apenas riu e bagunçou seus cabelos. – “Como um irmão faria!” – Bufou.
Não havia nenhum outro Sur na Caverna e ela estava tão irritada com Mundo que decidiu ser realmente inconsequente, como ele parecia achar que era. Tirou a thuga da cabeça, arrancando exclamações de surpresas dos três irmãos.
– Liara, não! Sabe que não pode, que é proibido! Vista-o! – Mundo ordenou.
– Não! – Ela respondeu, cruzando os braços, como sempre fazia quando não concordava com algo.
– Nossa, Periquito, como você é bonita! – Branca Flor comentou.
– E você, pare de me chamar assim! Meu nome é Liara! Liara! – Falou avançando na menina, como se fossem do mesmo tamanho. Ela apenas riu aos pequenos socos que recebia nas coxas.
Vocês duas, parem com isto. – Ele teve que segurar Liara. – Branca Flor, pare de chamar Liara assim. Ela não gosta!
Liara estava com tanta raiva que achou melhor entrar no mar. A água estava um pouco fria e ela suspirou de prazer em se ver livre do calor abafado da caverna. Sentia a areia macia sob seus pés e o gosto salgado da água. Queria poder tirar toda a thuga e sentir a água de verdade em seu corpo. Prometeu-se fazer isto e logo.
Continuou entrando até ficar inteiramente coberta e começou a nadar. Era mais difícil do que no rio. Aqui as ondas a empurravam de volta. Liara não se incomodou. Estava gostando da sensação. O brilho que se refletia nos cristais do teto acima do mar e que batiam na água deixavam tudo brilhante e difuso.
Afundou para ver o mar por dentro. A água era muito transparente e clara, de um tom que oscilava entre o verde e o azul e podia ver todo o chão de areia. Queria ir mais à frente, assim, por dentro, mas sabia que não poderia virar peixe ali.
Voltou a tona e entraram um pouco mais para dentro do mar, que acabou por cobrir Branca Flor e Cavalo Selvagem e ficaram brincando até que ficasse cansada. Liara ainda não queria sair, mas eles a convenceram e voltou sentada no ombro dela, os cabelos escorrendo pelas costas e sentindo-se completamente exausta e relaxada.
Decidiu que voltaria sempre. Nadar com certeza não era proibido e esperava que a assembleia não falasse nada contra isto. Mesmo que falasse, ela daria um jeito. Depois de ter entrado naquelas águas, o rio parecia uma brincadeira sem graça. Imaginou como seria quando pudesse se transformar e mal continha a ansiedade. – “Terei que despistar todos eles.” – Pensou.
Neve estava ganindo para o mar, desesperado, querendo entrar e com medo. Entrava alguns passos e recuava, latindo. Latiu mais quando os viu voltar e pulou nas pernas de Branca Flor, querendo chegar até Liara.
Eles riram e ela foi para o chão. Ele pulou para seu colo imediatamente, ainda ganindo e latindo.
– Ei, ei. Calma, rapaz. Estou de volta. Não aconteceu nada. – Liara entendia o que estava dizendo. Chorava de medo. Pensou que ela não voltaria mais, como sua família.
– Estou aqui, não estou? Não vou embora. Fui apenas nadar um pouco. – Tentou acalma-lo, sentindo seu pequeno coração bater acelerado. – “Coitado, deve ter sido difícil perder toda sua família.” – Vamos correr até a outra gruta? – Propôs para distraí-lo.
E saiu em disparada, esperando que a seguisse como realmente fez. Chegaram na outra ponta e Liara pensou que desmaiaria de tão cansada. Subiu a thuga na cabeça e foi andando devagar para o acampamento. Seria bom se pudesse dormir um pouco antes da assembleia, mas quando chegou viu que estava quase começando e correu para sua cabana. Tinha que deixar os cabelos completamente secos até que a chamassem. Não queria chamar atenção por nada do mundo.
Ani sempre secava e penteava seus cabelos e Liara viu horrorizada que tinha embaraçado os fios conforme esfregara a toalha. Tentou desembaraçar e só fez piorar a situação. Chorava de dor, passando o pente pelos nós que se recusavam a sair.
Lene, a cozinheira, entrou na cabana. Ani deixara-a encarregada dos cuidados de Liara.
– Menina, o que você está fazendo?
– Lene, está cheio de nós! O que vou fazer? – Liara já estava ficando desesperada.
– Dê o pente. – E começou a pentear, com cuidado. – Fique quieta. – Pediu quando ela se remexia na cadeira.
– Ai!
– Estou tentando não machucar, mas como conseguiu fazer este ninho de ratos?
– Eu só queria secá-los.
– E porque estão molhados assim, posso saber? – Cheirou os fios.
– Eu… Cai no mar. – Liara falou baixinho.
– Caiu, não foi? Sei. – E riu, demonstrando saber exatamente como fora esta caída.
– Lene, você não devia estar falando comigo! – Liara lembrou.
– Besteira. Estes velhos estão todos gagás, isto sim.
Lene era uma senhora já com cerca de 45 anos. Em breve estaria aposentada e seria mais uma anciã da cidade. Liara achou engraçado ouvi-la referir-se a eles assim.
– Você será anciã logo, logo.
– É verdade. E pode apostar que votarei contra a maioria destes disparates.
Ela sempre foi desbocada assim e por isto não vivia na cidade e sim nos acampamentos. Tratava todos do mesmo jeito, independente de seus cargos ou posição.
– Ouço tudo que dizem, mas aprendi a só fazer o que acho certo. – Comentou.
– E eles não ficam bravos com você?
– Ah, ficam às vezes, mas, o que vão fazer? Já não moro na cidade. E sou muito boa cozinheira para me dispensarem. – Riu com o próprio comentário. – Quando estão muito bravos, faço algumas tortas e levo até eles.
– Oh, você é esperta.
– Você devia provar minhas tortas especiais. Eles simplesmente não conseguem resistir.
O cabelo de Liara estava com um lado já todo desembaraçado, em uma mudança visível.
Achei um sacrilégio isto que fizeram com você. Na época estava aqui e não pude te dizer. Mas agora posso e quero ver se alguém vai reclamar.
Liara ficou em silêncio. Achou Lene um pouco maluca e ao mesmo tempo, ela parecia mais normal do que todos.
– Obrigada, Lene.
– Oras, imagine. E me diz: como é virar peixe? Fiquei morrendo de curiosidade quando soube. É bom mesmo?
– Nossa, Lene, é muito bom. E também é diferente, sabe? Porque fico pequena e todas as coisas ficam maiores. Os olhos de peixe também veem as coisas diferentes. É mais bonito. Só a comida deles que é ruim.
– E não tem medo dos peixes maiores? Sabe que eles comem principalmente os peixes menores?
– Verdade? Será que me comeriam?
– Não sei. Eles sabem que você é uma menina e não um peixe?
– Sabem sim.
– Bom, então talvez não comam. Vai saber.
Liara nunca tinha visto nenhum peixe comer o outro, mas no rio só havia peixinhos pequenos, como ela. No mar deveria ter peixes de todos os tamanhos.
– Nunca tinha pensado nisto. Bom, mas também nunca mais virei peixe. Você sabe, estou proibida.
– Sei. Como também não devia nadar sem autorização e foi, não é?
– Bom, isto é diferente. Mundo estava lá e seus irmãos também.
– Hum rum… – Ela falou de um jeito que deixou claro que não acreditava.
– Vou tomar cuidado, prometo. Agora fiquei com um pouco de medo. Não gostaria de ser comida por outro peixe.
– Bom mesmo que tome cuidado. Pronto, terminei. O que acha de trançarmos na nuca? Não ficarão secos tão cedo.
– Ótima ideia, Lene.
– Seu cabelo é tão bonito. E também seus olhos. Eu gosto. Falaram que era muito feia, mas não acho.
Liara riu. Esta Lene realmente fora um achado, pensou. Quando a trança ficou pronta, deu-lhe um abraço longo e apertado em agradecimento.
Enquanto isto, a assembleia já tinha começado. Os construtores mostravam suas engenhocas e Lure, Cure, Suri e Ani viam os anciões morderem a isca, os olhos brilhando a cada novo aparelho.
– “Esperem até ver o último.” – Pensou o Cure, rindo por dentro, satisfeito. – “Eles vão enlouquecer.” – Imaginou.
Quando Joner explicou sua invenção, não se mostraram muito convencidos, mas quando demonstrou, com um protótipo feito às pressas ficaram mudos de espanto. O protótipo consistia em duas pequenas rodas encaixadas abaixo de uma pequena plataforma de Ká. Em cima desta colocara um pequeno pedaço de Urká com luz armazenada. Ao seu comando o carrinho se movimentou em linha reta por alguns metros.
Na realidade tinha mais magia do que uso da energia naquele protótipo, mas ninguém além de Joner e o Cure sabiam disto.
O construtor falou então das carroças que construiria quando tivesse bastante Urká e de todas as outras possibilidades, quase infinitas, de artefatos que poderiam ser construídos para executar tarefas simples. E eles compreenderam. Começaram a falar uns com os outros e também o povo discutia animado.
– Muito bem, senhores. Tiveram já uma ampla demonstração deste novo minério, que não é apenas bonito, como muito poderoso. Ele está ao nosso alcance agora. Graças ao dom que a menina Liara tem de falar outras línguas, nós sabemos o que os Gigantes querem e podemos ajuda-los a conseguir. Em troca, teremos acesso irrestrito a todo Urká que houver naquelas cavernas. – O Lure começou a falar.
Contou de forma resumida a estória de Mundo e de como foi encontrado e ajudado por Liara e sua mãe e também dos problemas que enfrentavam.
– Primeiro precisamos fazer um suporte no teto, para evitar que desmorone novamente. Isto nós faremos para mantermos o minério que está na primeira gruta em segurança. Já está praticamente feito. Os construtores passaram os últimos dias fazendo estacas e telas que serão afixadas no chão da caverna e que irão suportar o peso da gruta acima dele. – Os anciões aprovaram sem hesitar.
– O segundo passo é ajudar este povo a voltar para seu mundo através da construção de um barco em que todos eles caibam e que irá levá-los embora. Isto nos tornará novamente senhores de toda esta área. – Cure olhou para o Lure com um novo respeito. Sempre o achara um fraco, mas não tinha como negar que ele escolhia direito as palavras.
– E o que é necessário para a construção deste barco? – Perguntou Oci, um dos anciões.
– Ká, magia e construtores, basicamente. – Ele respondeu. – E enquanto constroem os mineiros já estarão extraindo o Urká da gruta superior e os Gigantes ajudarão nestes trabalhos, tornando-os muito mais rápidos e eficientes.
– Nós temos Ká suficiente? – Quis saber Oci.
E sabemos fazer este barco? – Perguntou Sani, uma anciã.
– Sim, nós temos Ká. Sempre tivemos mais Ká do que usamos e o depósito da cidade está abarrotado. E quanto a saber como fazê-lo teremos que confiar em nossos construtores. Aprenderão. – Ao menos era o que Lure esperava.
– Parece bom para mim. – Sani declarou e os demais a seguiram.
– Então temos apenas que fazer a assembleia com os Gigantes e fechar formalmente o acordo. – Declarou Lure, sentindo um frio no estômago. – “É agora.” – Pensou.
– Chame-os. – Pediu o Onai Thur.
– Não podem vir aqui. A passagem da mina é muito pequena para o chefe e os demais Gigantes adultos. Além disto, não usam thuga e o frio aqui é muito forte para eles.
– Podemos ir para a primeira gruta, então? – Era Oci.
– Também não. O suporte para o piso não foi instalado. Não suportaria o peso deles.
– E então? – Oci estava ficando intrigada.
– A assembleia terá que ocorrer na caverna. Na aldeia dos Gigantes. – Lure soltou.
Eles conversaram entre si durante alguns minutos. Pnur, o mais velho, foi quem perguntou, por todos.
– É verdade que não usam roupa alguma?
– Não. Eles tapam o que devem e a maior parte de seus corpos são cobertos por desenhos. – “Ai ai.” – Isto não foi bom.
Voltaram a conversar entre eles. Sani foi a porta-voz desta vez.
– E é verdade que a caverna tem cores e um rio que não acaba?
– Sim. – Resolveu não ficar enfeitando a verdade.
O debate agora era mais intenso. Os amigos se olharam. Parecia pior do que tinham imaginado.
– Senhores, eu sei o que estão pensando. Que é impuro e degradante. Entretanto, foi pela vontade de Ur que este pedaço do outro mundo veio parar aqui, juntamente com o novo minério, que é um presente de Ur para nós. – Ani resolveu intervir, antes que ficasse pior. Conseguiu a atenção de todos.
– Tudo o que temos que fazer é suportar a visão desagradável destes seres por algum tempo. Quanto ao mundo da caverna, que mal pode nos fazer? É um lugar abafado e tão quente que os de nós que entram nele não vem a hora de sair. Vocês estarão lá e poderão constatar a verdade de minhas palavras. Nenhum dos nossos gostará daquele lugar. Nós apenas suportaremos com bravura os momentos que tivermos que estar lá.
– “Muito bem, Ani. Brilhante.” – Ela inverteu a situação, transformando a caverna em um local horrível ao invés de tentador como estavam pensando. E os anciões não poderiam contestar sem admitir que pudesse ser melhor do que o mundo de Sur. – “Realmente brilhante.”
– E em troca deste sacrifício seremos recompensados não apenas com a partida destes seres impuros como com tudo isto. – Fez um gesto mostrando a mesa com os artefatos e fez um gesto imperceptível para Joner que imediatamente acionou seu protótipo, fazendo-o correr de um ponto a outro e hipnotizando os anciões mais uma vez.
Eles conversaram brevemente e Oci declarou por todos.
– Muito bem. Chegamos à conclusão de que Ur realmente nos pede uma demonstração de nosso amor, através deste convívio tão desagradável a todos. Mas nós o faremos, por Ur.
A plateia vibrou em aplausos.
– Estes seres, por mais impuros que sejam, merecem nossa compaixão e ajuda. Nós os ajudaremos a voltar para seu reino.
Mais aplausos.
– Pode marcar a assembleia para amanhã. Aumentaremos a proteção dos olhos, assim não seremos muito atingidos pela feiura do lugar e daquele povo. – Finalizou sob uma chuva de aplausos.
– “Hipócritas.” – Concluiu Cure.
Para ele tudo bem. O importante é que tinham conseguido.
Oci pediu silêncio e continuou.
– Todos que não sejam estritamente necessários para a montagem do barco, devem permanecer fora da caverna e evitar contato com os Gigantes. E, Ani? – Chamou-a.
– Sim.
– Daqui há meses examinaremos a situação de sua filha em assembleia. Não nos esquecemos de que está sobre decreto e que não deveria estar utilizando qualquer magia. – Isto foi dito em tom severo e ameaçador.
– Com todo respeito, Oci, talvez devamos resolver isto neste momento. Tudo o que Liara fez foi utilizar sua capacidade natural de entender a linguagem dos Gigantes. Não utilizou nenhuma forma de magia. Entretanto, se julgam que agiu contra o decreto, é meu dever leva-la embora agora mesmo, de forma a impedir novas infrações. – O cure teve que tapar a boca para esconder o riso.
– Tem certeza de que a menina não usou magia? – Ele perguntou.
– Tenho, Oci. Mas caso deva continuar aqui, terá que ir contra o decreto, pois necessitará traduzir o que eles dirão, não apenas a vocês como também, depois, para os construtores e até para os mineiros.
Hum… – Ele murmurou pensativo. Reuniram-se novamente para deliberar sobre o novo problema.
– Chame sua filha, Ani. Queremos falar com ela. – Liara estava próxima e chegou rapidamente.
– Menina Liara, pode nos esclarecer como é feita esta comunicação com os Gigantes? – Oci quis saber.
– Não sei, senhor. Eles falam e entendo o que dizem e minha boca sabe dizer suas palavras, mesmo que eu não entenda como.
– Você usa algum tipo de magia ou artefato para compreendê-los?
– Não, senhor. Não uso nada.
– Sabe que está sobre decreto e que não pode falar com ninguém e nem usar magia, não sabe? – Sim.
– Devido a este incidente inesperado e dado seu dom de falar a língua destes seres, nós a autorizamos a traduzir, sempre que necessário e falar com quem for necessário para que este assunto seja resolvido até o final.
– Sim, Senhor. Obrigada.
– Mas você continua proibida de exercer qualquer magia que não seja própria de Sur. Entende isto?
– Sim, entendo. Não se preocupe, senhor. Não vou fazer nada que não possa. – Esperava que não tivessem notado seus dedos cruzados e que Ur a perdoasse por esta mentira.
– Está dispensada. E também esta assembleia.
Liara disparou para sua cabana. Cure a observou sair. Ele vira os dedos cruzados.
A aldeia foi arrumada com rigor para receber os anciões. Ani e Lure explicaram a questão a Mundo e ele convenceu seu pai a não fazer festa com música e danças que programara. Todos que não fossem participar da assembleia deveriam permanecer em suas casas e em silêncio. Tiraram a maior parte dos enfeites, principalmente os mais coloridos até que ficasse o mais incolor possível.
Também os enfeites corporais foram reduzidos, permanecendo basicamente o couro, que aumentaram ao máximo, sob os protestos veementes do chefe e de seus irmãos. As bebidas foram substituídas por suco de frutas e o cachimbo escondido. O resultado foi um ambiente praticamente asséptico e extremo mau humor dos nativos, que se consideravam ofendidos por terem que esconder tudo que era belo.
Apenas a promessa de que iriam para casa com a ajuda dos Surs foi capaz de manter os ânimos relativamente apaziguados e Mundo sentia-se ansioso pelo final daquilo. Não confiava em seu povo. Eles não estavam convencidos de que o povo de Sur não apreciaria suas artes e ele receava que algum deles pudesse aprontar algo.
Os anciões fizeram uma prece conjunta invocando a ajuda de Ur e ajustaram a tela dos olhos até verem tudo difuso e escuro.
Cure e Lure encabeçam a fila. Ani e Liara iam em seguida e depois os anciões que se davam as mãos sem conseguir ver quase nada do caminho estreito da mina, já naturalmente um pouco escura. Passaram pela primeira caverna e entraram no segundo túnel.
Mundo os esperava do outro lado, tendo os irmãos ao seu lado. Ajoelharam-se em forma de cumprimento e Liara traduziu as apresentações que Mundo e Lure faziam.
Tinham montado um tipo de liteira que consistia em assentos de madeira das palmeiras atados dos lados a rígidas varas. Cada uma delas tinha meia dúzia de assentos e havia duas. Os onze anciões ocuparam seus lugares e Ani sentou-se na última. Lure e Cure iriam a pé. Nas pontas de cada liteira estavam dois nativos vestidos com as maiores tangas que conseguiram fazer e entre eles e as cadeiras colocaram um pedaço de pano que tapava a maior parte dos gigantes, de forma que foi um bom começo.
As liteiras foram depositadas na frente da cabana do chefe e entraram seguindo Mundo, Liara e Ani. O chefe Anajé estava sentado em sua cadeira alta, ladeado por sua esposa e o filho mais velho depois de Mundo, seu provável sucessor. Os anciões tinham sido instruídos a fazer uma meia reverência, que foi considerada apropriada por eles e pelo chefe.
Novamente Mundo e Lure fizeram as apresentações e Liara traduziu. O chefe ainda estava um pouco mal humorado e lacônico. Cumprimentou-os com um breve aceno da cabeça e sentaram-se no círculo dos tapetes. Felizmente os anciões interpretaram sua atitude como seriedade própria dos chefes e aprovaram.
A assembleia acabou sendo muito rápida. Todos os detalhes já haviam sido acertados antes e agora era apenas uma formalidade. Após a descrição do que os Surs fariam e da aceitação pelo chefe Anajé e respectivos agradecimentos, mulheres trouxeram frutas e sucos que degustaram
em meio a comentários soltos sobre as providências a serem tomadas e tão logo consideraram de bom tom, deram por encerrada a cerimônia.
Enquanto os anciões partiam nas liteiras o pequeno grupo de amigos olhava-os e respiravam aliviados.
O chefe ergueu Liara e disse-lhe que se considerava com sorte por não ter nascido entre eles. E convidou-a para voltar com eles e viver como se devia viver. Ani ouviu horrorizada e Mundo reclamou com o pai, mas todos acabaram rindo com o convite.
No retorno ao acampamento discutiram sobre a questão de Liara. Ela teria que permanecer ali para as traduções, mas também tinha que estudar. As provas anuais se aproximavam e desde que Mundo aparecera não voltara a tocar nas lições. Após as provas seria a vez da assembleia sobre ela, que felizmente já não temiam tanto.
– Creio que não poderei ficar aqui. – Ani disse.
– Mãe! – Liara protestou.
– Querida, um acampamento não é muito confortável. Estou muita velha para estas aventuras. Preciso descansar um pouco até poder te acompanhar em outra destas.
– Está doente, Iá? – O antigo medo da fúria de Ur retornou.
– Não, não. Apenas cansada. Com vontade de voltar à minha cozinha, minha cama, minha tapeçaria. Embora saiba que sentirei muitas saudades de você.
– Mas, mamãe…
– Senhora Ani. – Era Cure quem falava. – Se me permitir, posso cuidar da menina. Pedirei aos anciões para permanecer aqui até que os Gigantes partam. Creio que serei mais necessário aqui do que na cidade.
– Estou de acordo. – Lure disse.
– Agradeço, Serg. Sei que estaria em boas mãos, mas uma menina precisa de uma mulher por perto.
– Lene. – Liara lembrou.
– O que disse? – Sua mãe perguntou.
– A cozinheira, Lene. Ela é boazinha, Iá. E gosta de mim. Ajudou a desembaraçar meus cabelos dias atrás. Ela poderia ficar comigo.
– Sei quem é. Uma boa mulher, apenas tem a língua um pouco solta. – Cure aprovou. Já tivera que suportar um ou dois desaforos de Lene e achou que protegeria Liara como ele. – Espero apenas que não influencie negativamente sua filha.
– Hum. Quero conhece-la antes. – A própria Liara foi até a cozinha e trouxe-a rapidamente.
– Mamãe, esta é Lene. Lene, minha mãe.
– Ah, já nos conhecemos. Lembra-se de quando teve febre, querida? Ela fez uma sopa deliciosa para você.
– Obrigada pelo elogio, senhora. Também já a conheço e admiro muito, como todos.
– Lene, minha filha permanecerá aqui no acampamento até a partida dos Gigantes. Eu voltarei para minha casa. Cure poderá tomar conta dela enquanto estiver na Caverna e também nos estudos, mas preciso de alguém que cuide de sua alimentação e que veja se está se vestindo direito, lavando os ouvidos, estas coisas que as mães fazem. – Falou em tom de confidência, pegando-a pelo braço e afastando-se com ela.
– Senhora, é uma enorme honra para mim, mas sou apenas uma cozinheira. Não seria mais adequado se enviasse uma das professoras ou até mesmo uma das mães em formação?
– Minha filha gosta de você e isto é tudo que preciso saber. Além disto, as referências a seu respeito são ótimas. Parece apenas que tem um probleminha para controlar o que diz. – Lene ficou muito vermelha com o comentário.
– Sim, senhora.
– Veja, Liara é uma menina especial. Acho que sabe disto, não é?
– O peixe e tudo o mais.
– Sim, sim. E, Lene, – Abaixou ainda mais o tom de voz. – Tem outras coisas que ninguém sabe e que você poderá descobrir aos poucos. O que pensa sobre isto?
– Ah, são os dons de Ur. Que culpa tem a pobrezinha? Quando fizeram aquilo eu disse que aqueles velhos é que deveriam ficar um ano sem falar com ninguém. – Ani riu com gosto e Lene tapou a mão com a boca ao perceber o que havia dito.
– Concordo, Lene. Entretanto, Liara é apenas uma criança. Deve aprender a respeitar as regras, dentro do possível. E sem se revoltar. Por pior que seja a situação, deve explicar-lhe de um modo que aceite. Acha que conseguiria? – Lene coçou a cabeça, indecisa. Era algo que jamais teria pensado em fazer até o momento. Mas Ani estava certa. Não podia encher a cabeça da menina com suas ideias.
– Acho que posso sim. Vou me esforçar ao máximo. – Falou séria.
– Muito bem, Lene. Acredito em você. Sei que não vai me desapontar. E ela também precisa estudar e ter horário certo para acordar, comer, tomar banho, dormir, enfim…
– Ah, quanto a isto não se preocupe. Ajudei a criar um bando de crianças dos mineiros. Sei bem como lidar com eles.
– Obrigada. Não sabe como é importante saber que estará sendo bem cuidada. – Ani abraçou e beijou a mulher, deixando-a embaraçada.
Dentro da hierarquia social de Sur, Ani era uma pessoa importante. Lene era nada, ninguém, até este momento.
– Não se preocupe, Mãe das Mães. Cuidarei da menina como se fosse minha própria filha.
Conversaram mais um pouco sobre detalhes do dia a dia de Liara enquanto voltavam até onde os demais aguardavam.
– Tudo certo. Liara, Lene concordou em cuidar de você quando não estiver na Caverna ou ocupada com os afazeres de tradução. E Serg será seu responsável nestes momentos. Você deverá obedecer a eles como se fossem eu.
– Prometo, mamãe. Tem mesmo que ir? – Estava meio chorosa ao falar isto.
Ani dispensou os outros com um olhar e sentou-se com ela no colo. Passaram parte daquela noite conversando.
Liara estava preocupada com a mãe. Apesar de falar que estava bem, ainda estava sismada. A mãe não a deixaria se pudesse.
– Não, Liara. Estou bem, sério. É só que sei o que posso fazer e o que não posso e ficar aqui, nestas condições, sem conforto, frio fora, abafado dentro, é demais para mim. Se ficasse, então sim, tenho certeza de que logo adoeceria. E ainda quero estar viva quando isto terminar e você voltar à vida normal.
– Iá, sentirei tanto sua falta.
– Eu também, querida. Mas sempre que a saudade estiver muito forte, você irá me visitar ou eu venho aqui. Não é assim como se nunca mais fossemos nos ver. – Ficou com ela no colo, acariciando seus cabelos, até que dormisse.
Na manhã seguinte Ani partiu com Lure e Liara sentiu-se triste, vendo-a sumir no horizonte.
– Iá, Iá. – Dizia baixinho, procurando conter a vontade de chorar e de correr atrás dela.
Tinha mudado de ideia. Não queria mais ficar ali. Queria voltar para sua casa, para sua rotina, seu quarto com a Fada do Rio e o carinho da mãe.
Sabia que não tinha opção. Seu lugar era ali, ajudando Mundo e ninguém mais poderia fazer isto por ela. Teria que ser corajosa ainda que sua vontade fosse ir para a cama e chorar até a vontade de voltar para casa desaparecer.
Espantou-se ao perceber o quanto havia crescido nos últimos dias. Fazia pouco mais de uma semana que saíra de sua casa e pareciam ter se passado vários meses, com tudo que viveram ali.
– “Não sou mais criança.” – Disse a si mesmo. Olhou para Cure e disse:
– Quando começamos?
As primeiras semanas foram dedicadas à instalação do suporte para o teto. Os construtores haviam construídos as estacas em partes menores que agora eram montadas, levadas para a caverna e fixadas através de magia de forma que o minério nas junções derretia e a estaca virava um pilar rígido e fixo.
Quase duas dezenas de construtores estavam ali. Os melhores do reino. Eram ajudados por seus aprendizes e pelos mineiros, quase uma centena com nada a fazer até que o Urká da gruta superior pudesse ser extraído. Contando com os familiares, havia no acampamento talvez duas centenas de pessoas.
Problemas de subsistência surgiram, como escassez de água e mantimentos, falta de alojamentos, de cama e de utensílios, além da necessidade de médicos, professoras e vendedores. Cure precisou chamar alguns assistentes para manter a ordem e Lure vinha semanalmente para pequenas reuniões administrativas. O suporte começou a chegar das cidades próximas, aumentando a população fixa e a flutuante. Construções surgiram e uma nova cidade começou a nascer fervilhante de atividade, dia e noite.
Liara tinha uma rotina puxada. Acordava de manhã, bem cedo, para estudar e nesta atividade consumia a manhã. Após o almoço ia para a caverna encontrar-se com Mundo e ajuda-lo nas traduções com a pequena equipe que já estudava a construção do navio. Quando não havia nada para discutirem, ela lhe ensinava a língua dos Surs. E à noite, após o banho e o jantar, praticava invisibilidade e os exercícios de Loua, o professor de magia. Às vezes saia para caminhar um pouco, sempre seguida por Neve, mas naquele ponto do reino, os ventos eram mais gelados e severos do que na cidade e ela não suportava por muito tempo. Dormia junto com Lene, Neve aos seus pés e no outro dia recomeçava.
Aos domingos, as atividades cessavam e era seu dia de descanso, embora não houvesse muito a fazer. Brincava com os filhos dos mineiros e construtores. Eles a aceitavam melhor do que as crianças da Cala ou da escola, mas Liara sentia-se adulta demais para as brincadeiras pueris deles e entediava-se rapidamente. Depois de duas tentativas, decidiu passar seus domingos entre os Gigantes.
Antes disto foi visitar Iá e surpreendeu-se ao notar o quanto sentiu ser uma estranha em sua própria casa, como se pertencesse à vida de outra pessoa e não à dela. Nesta noite dormiu com Iá, menos por necessidade do que por desejo de prolongar o contato e de extrair dela o máximo de cheiros e sensações, como se pudesse guarda-los em um saquinho e ir usando depois, comedidamente, até a próxima visita.
No acampamento, agora rebatizado de Vila dos Gigantes, havia uma igreja e um sacerdote recém-nomeado ocupou o posto. Era um rapazinho ainda, com talvez 17 anos e a cara tão cheia de espinhas que podiam ser vistas mesmo com a thuga. Liara era obrigada a comparecer e gostou do entusiasmo e eloquência cheios de idealismo de Loel. Seus discursos eram inflamados pela devoção que o consumia.
Loel via-os como os novos mensageiros de Ur, destinados a fazer renascer a fé mais pura e o amor mais intenso que mudaria os destinos de todo o Reino e não apenas de Sur. Os mais velhos zombavam daquela visão pueril e ingênua, mas os mais novos ouviam hipnotizados e se saiam inebriados de amor, certos da grandeza e da importância do trabalho que realizavam.
Com tudo isto, entretanto, Loel era mais condescendente em relação às regras de conduta, crendo que o mais importante fosse a pureza das intenções e não o cumprimento por obrigação das normas estipuladas. Em outras palavras, ele achava que os súditos de Ur deveriam seguir a pureza levados pela consciência interior e não pelas convenções.
Esta opinião foi decisiva para solucionar um dos problemas que mais angustiava não apenas Liara como todos os outros: o uso da roupa íntima por baixo da thuga.
Ocorre que a caverna era um inferno de quente, com o calor represado tornando o ambiente tão abafado que vários Surs desmaiavam ao longo do dia. Entenderam porque os Gigantes viviam praticamente nus e os invejavam. Eles usavam a thuga, cobrindo toda e qualquer extensão de pele e, abaixo dela, a roupa de thuga, como diziam e que consistia em calças compridas e camisa de mangas longas. Estas roupas eram feitas de um tecido leve, porém quente, posto que desenvolvidos para o clima frio do exterior e não o calor da caverna.
Ao longo do dia a roupa ia acumulando calor e aos se transformava em um martírio que os fazia gotejar de suor. Quando começaram a desmaiar, instalou-se um sistema de revezamento em que cada Sur permanecia dentro da caverna por duas horas e depois saia para se refrescar. Ajudava, mas não só não resolvia como atrapalhava o ritmo dos trabalhos.
Decidiram consultar Loel sobre a possibilidade de alteração na roupa de baixo e com seu aval os homens passaram a usar apenas calções abaixo da thuga e as mulheres, além dos calções, fitas de proteção na região do peito. A diferença era gritante. Ninguém tornou a desmaiar. Ainda assim, continuava quente e abafado.
Os Surs odiavam o ambiente da caverna e amavam o exterior. Não demostraram o menor interesse pelos costumes dos gigantes – que achavam selvagens e desagradáveis – ou pelo mar – que cheirava mal e era responsável pelo calor. Para eles era realmente um sacrifício que faziam em nome de Ur. Os anciões deveriam estar amplamente satisfeitos.
Liara sonhava com a retirada da thuga. Era o que desejava mais do que tudo na vida e no que pensava a cada instante em que ficava na caverna. Sabia que não podia, mas tornou-se uma obsessão. A cada vez que via seus amigos com as minúsculas sungas, sentia inveja e desejo.
Ela nadava sempre e a cada instante. Era um vício, praticamente. Suportava o calor até onde conseguia e quando não aguentava mais, pedia licença da conversa e corria até a praia. Às vezes tinha tempo apenas para se refrescar com um rápido mergulho, em outras conseguia alguns minutos para preciosas braçadas. Nos intervalos e até mesmo durante as aulas à Mundo, ficava na água.
Eles riam, dizendo que devia ter o sangue mais quente do que os demais e também ela começou a acreditar nesta teoria.
Foi no retorno da primeira visita à sua casa que teve a ideia de aproveitar os domingos para satisfazer aquele desejo. Nenhum Sur ia à Caverna aos domingos. Ninguém contaria a eles nem que quisessem, por não falarem a mesma língua e até pela falta de interesse de uns pelos outros.
– Mundo, eu quero ficar sem roupas como vocês, no domingo. Você me ajuda?
– Não, Liara. Sabe que não pode. Sua mãe me mata se souber.
– Mas ela não vai saber. Ninguém vai saber.
Ele coçou a cabeça, indeciso. Não queria infringir nenhuma regra dos Surs e ameaçar o acordo. Por outro lado, não conseguia dizer não à Liara e ela sabia disto.
– É perigoso, Liara. E se alguém vir?
– Você pode colocar sentinelas na entrada, não pode?
– Poder, posso, mas… Não posso trair o acordo, Liara.
– Não pode me impedir. Eu tiro a thuga e quero ver como vai impedir. – Ele coçou a cabeça novamente.
– Só se Serg concordar.
– Não é justo!
– É sim. Ele é o responsável por você enquanto estiver na caverna.
– Traidor. – Ela saiu chorando e pulou no mar. Mundo ficou triste. Entendia a vontade da menina, mas em sua posição seria muito arriscado. Já entendia bastante sobre o funcionamento daquela sociedade que considerava maluca, mas eram as regras deles, o mundo deles, não tinha direito de intervir.
Liara passou o restante do dia ruminando sobre a possibilidade do Cão concordar. Apelidara-o assim, junto com Branca Flor, porque era como Neve. Não a deixava um segundo, um instante. Onde quer que ela fosse, se ele não estivesse ao seu lado, estaria observando. As duas instituíram uma espécie de desafio. Branca Flor apostava que Liara não conseguiria se esconder dele por mais de dez minutos e Liara apostava que conseguiria.
Ela tentou e tentou e tentou. Deixou-o exausto e enlouquecido, mas nunca a perdeu de vista por mais de dez minutos. – “É frustrante.” – Ela pensou. Ele conseguira assistentes que cuidavam da Vila durante a tarde e quando ela começou suas tentativas para despistá-lo designou um deles para permanecer na Caverna e ajudar a mantê-la em observação. Liara acabou desistindo.
Ela vivia irritada com esta vigilância extremada. – “Do que ele tem medo, afinal?” – Questionava. – “Será que pensa que vou soltar alguma magia e desintegrar todo mundo a qualquer momento?” – Só podia ser por receio de seus dons. Isto a enfurecia.
– Serg, porque me segue tanto? – Perguntou quando voltavam à Vila no final daquela tarde.
– Sou responsável por você. Não posso deixar que nada ruim aconteça a você.
Tipo o quê?
– Cair e se machucar, desmaiar, ter uma câimbra quando estiver nadando, estas coisas.
– Ou tem medo de que faça alguma magia ruim?
– Ah não. Isto não.
– Mesmo? E porque não? Acha que não posso? – Ele olhou-a, sem entender o motivo das perguntas.
– Acho que não tem porque fazer isto. O que há?
– É que me incomoda esta sensação de ser observada a todo instante.
– Mas é para sua proteção, Liara.
– Eu queria… – Parou, sem coragem de continuar e receber um não. Depois que falasse, ele saberia de seu desejo e podia dizer adeus a qualquer tentativa de ficar sem roupas nos domingos.
– Queria o quê? – Então era isto. Ela queria fazer algo contra as regras, tinha certeza. Estava estranhando este bom comportamento. Nunca mais virou peixe ou ficou invisível.
– Nada. – E correu na frente, entrando em sua cabana.
Serg ficou parado, pensando. Teria que descobrir o que ela estava querendo aprontar. Poderia ser algo perigoso. Arrepiou-se ao imaginá-la virando peixe e nadando para dentro daquele mar desconhecido e não voltando nunca mais.
Aproveitou quando Lene foi preparar o jantar da menina e interrogou-a discretamente.
– Como vão as coisas, Lene?
– Ah, oi Serg. Tudo bem. E lá?
– Tudo bem. Agora que resolvemos o problema das roupas está mais tranquilo para todos.
– Hum. – Ela nem ouvia direito, ocupada com seus afazeres.
– Lene, sabe algo que Liara esteja querendo fazer?
– Não. Algo como?
– Não sei. Ela não comentou nada, algum desejo?
– Não. Ela é muito mais tranquila e obediente do que eu poderia imaginar. Faz tudo no horário, estuda, dorme na hora certa. É uma boa menina.
– Sim. É mesmo. E tem praticada alguma magia? – Lene olhou-o pelo rabo dos olhos. Sabia dos exercícios de magia da aula e os de invencibilidade. Os exercícios de magia eram permitidos, mas não os outros.
Só os dos estudos. – Falou apressada e mudou de assunto, chamando a atenção de Serg.
– Lene, não tente me enganar. O que está escondendo?
– E porque acha que estou escondendo algo, homem? – Não olhou em seus olhos e sim para os pés.
– É evidente. Sei reconhecer quando alguém está mentindo.
– Oras, vá cuidar de sua vida. Liara é minha responsabilidade quando está fora da Caverna e não sua! – Explodiu e saiu pisando forte.
Ele riu deliciado. Então Liara tinha conquistado mais uma adepta? Era evidente que estava praticando algo proibido e que Lene estava acobertando. Teria a ver com o que a menina queria ou eram duas coisas diferentes?
Gostaria de falar com Mundo. Se havia alguém com quem ela não tinha segredos era com o rapaz Gigante. Mas era impossível sem a tradução de Liara.
– “Droga!” – Socou a própria mão, sem saber como descobrir.
No dia seguinte surpreendeu a menina olhando-o sempre que pensava que ele não estava vendo e redobrou a atenção, deixando-a mal humorada e irritada.
– Precisa mesmo fazer isto? – Ela perguntou na volta.
– É minha obrigação.
– Eu sei, mas sabe que não há perigo.
– E também sei que a senhorita está planejando algo que não quer me contar. E enquanto eu não souber o que é será assim.
– Não estou planejando nada! – Ela negou, cruzando os braços no peito. Ele percebeu que não iria a lugar algum pressionando e tentou outro caminho, convidando-a para sentar-se em uma pedra.
– Liara, o que pensa a meu respeito?
– Você é o Cure e fica me vigiando o tempo todo para ver se não estou fazendo nada errado.
– Está enganada. – Ela ergueu as sobrancelhas, duvidando.
– Não vigio você para isto e sim para te proteger.
– Mas se me visse fazendo algo errado, contaria para os anciões, não é?
– Depende.
– Depende do quê? – Agora ela estava interessada. Ele não iria abrir todo o jogo, mas precisava conquistar sua confiança.
Não sou tão rigoroso quanto os anciões. Algumas vezes acho que eles exageram. Não estou aqui como espião deles e sim para te proteger.
– Então não contaria a eles se me visse fazendo algo diferente?
– Depende. Se fosse algo inofensivo para você e os outros, não vejo necessidade.
– Por exemplo, se eu… – E novamente a coragem faltou.
– Diga. Não tenha medo. Confie em mim.
– Se eu tirasse a thuga? – Ela soltou em um só fôlego.
– Se fizer isto, mesmo que eu não conte, outros contarão.
– Mas ninguém precisa ver. É só uma vez. No domingo. Ninguém vem à Caverna aos domingos. Eu queria ficar sem thuga só uma vez. Nadar sem ela e brincar como os Gigantes. Por favor, Serg. Eu quero tanto!!!
Ele tinha imaginado tantas coisas mais perigosas. Respirou um pouco melhor com o alívio, mas não podia se entregar totalmente.
– Bem, a regra é que seja inofensivo para você e para os outros. Isto não me parece perigoso, desde que…
– Sério? Oh, Obrigada, obrigada!!! – E ela pulou em seus braços, sufocando-o com um abraço, antes que pudesse terminar.
– Calma aí, mocinha. Não terminei de dizer as condições. – Ela recuou, preocupada.
– Desde que tenhamos certeza de que nenhum dos Surs entrará e eu estarei junto o tempo todo. Concorda?
– Mundo disse que pode colocar vigias na entrada da Caverna. Mas ele só concordaria se você também concordasse.
– Ah! Estou gostando mais deste rapaz!
– Serg, obrigada. Ninguém vai ver, prometo. E será só uma vez, juro. – Em pensamentos ela pediu desculpas por tê-lo apelidado de Cão.
Serg duvidava deste “só uma vez”. Apostava como seria apenas a primeira de muitas, mas fingiu concordar.
Mundo ficou surpreso quando Liara traduziu sua permissão e apertaram as mãos com um entendimento implícito.
Para que a experiência fosse completa, Liara queria roupas dos nativos e pinturas no corpo. Sairiam após um banho com um bom sabonete e Serg acabou concordando, mesmo começando a achar excessivo.
O Chefe Anajé não entendia de magia ou esta aparelhagem toda que traziam para a caverna, embora seu filho tivesse explicado. Ele entendia da vida em aldeia, de caça, plantação, pesca, da proteção dos dragões e da fênix, de separar brigas de casais e de vizinhos, de promover casamentos, enfim, de tudo que era tradição à séculos e séculos. E se considerava um bom chefe.
Mas ali estava completamente deslocado, aborrecido, entediado e sumamente ofendido. Tudo que poderia oferecer aos Surs fora desprezado por eles, considerado feio, indigno, impuro, selvagem ou grotesco. Aceitou que fosse assim, porque seu filho pediu e sabia que precisavam daquele povo. Isto não o obrigava a gostar deles e definitivamente não gostava.
Aquele povinho vivia metido na roupa preta mesmo com todo o calor, não se via a cara deles, não tinham tatuagens que contasse suas estórias – se é que tinham estórias para contar -, não gostavam de música, de dança, de enfeites, nem de suas pedras mais preciosas ou, que fosse do mar. Quem não gostava de mar? Em sua opinião aquele povo era no mínimo muito esquisito. E mal educado.
Quando soube que Liara queria passar um dia como eles, considerou-se extremamente honrado. Por saber como era a sua sociedade, entendeu o quanto era especial sua decisão. E decidiu que teria um dia inesquecível.
Para começar, ordenou os preparativos para que todo aquele dia fosse de festa. Queria as melhores danças, as melhores músicas, muita fruta, muita decoração, bebidas e brincadeiras.
Colocou todos para trabalhar no evento e nada parecia bom o suficiente para o domingo de
Liara.
Para sua roupa, ofereceu a pele de um tigre dourado extremamente raro que caçara em sua juventude e que era um de seus tesouros, talvez o mais valioso. Ele quis que tivesse o conjunto completo de vestimentas indígenas: tanga, colar, pulseira, braceletes, tornozeleiras e tiara. Branca Flor e Mundo tiveram que intervir antes que Liara se visse caminhando com quilos de enfeites.
Liara aceitou a pele do tigre, pois ofenderia o chefe se recusasse e era uma pele muito macia e sedosa. Quanto às pedras, não queria nenhuma, apenas enfeites de madeira e penas. Após muita discussão, concordou em usar algumas e escolheu as que chamavam de Pedra do Fogo e Pedra da Terra, vermelhas e laranjas, porque achou que ficariam bonitos sob a pele dourada e também combinariam com seus cabelos. Teve que aceitar Pedras do Mar – verdes como seus olhos -, para os brincos, a tiara e o colar. Elas seriam costuradas na pele e entremeadas com desenhos tribais e algumas penas. E Serg insistiu em um pequeno biquíni para o peito, mesmo que ainda não tivesse seios.
Discutiram os desenhos e apesar de sua pouca idade, tinha direito a quase tantas quantas um índio adulto, incluindo dois traços de bravura na face, o que a deixou bastante orgulhosa de si.
Com tudo resolvido, os últimos dias passaram rapidamente em meio aos preparativos e o acompanhamento do trabalho das artesãs que faziam sua roupa.
Naquele domingo também teriam outro motivo de comemoração, pois os trabalhos de apoio para o teto estavam encerrados. A partir da próxima semana os Gigantes e os mineiros de Surs começariam a trabalhar conjuntamente na extração de Urká da caverna superior e na caverna da aldeia permaneceriam apenas os construtores do navio.
Liara e Serg acordaram muito cedo no domingo, para não perder nem uma hora do dia e seguiram direto para a caverna onde os aguardava um farto café da manhã. Antes Liara foi à tenda de Branca Flor, que a ajudou a se vestir depois que algumas das mulheres se ocuparam das pinturas.
– Você está tão linda, mas tão linda! Se pudesse se ver!
– Não quero mais, Branca. Estou com vergonha.
– Ninguém dos seus vai ver.
– Serg está aí. E vocês nunca me viram assim. Vão ficar olhando.
– E o que tem? Deixa de ser boba.
– Vou vestir a thuga. Desculpe. Não posso.
– Não vai não. Papai vai morrer de desgosto. E eles vão olhar sim, mas é rápido, assim que sentarmos, vamos começar a comer e a novidade terá passado e ninguém mais vai reparar.
– Será?
– Vamos. Eu entro na sua frente. – E foi saindo e puxando-a pela mão.
Eles realmente olharam e muito mais do que ela imaginara. Cercaram-na como se fosse um animal raro, tocando as roupas, comentando os desenhos e batendo palmas. Liara quis desaparecer, mas não tinha sua thuga. Aos pouquinhos foi relaxando e acabou acreditando que estava realmente tão bonita quanto diziam.
O Chefe bateu palmas, pedindo que fosse até ele e observou-a com seriedade antes de aplaudir, muito sorridente e satisfeito. Entregou-lhe um saquinho feito com o mesmo couro e explicou que os índios usavam sempre estes saquinhos para carregar coisas importantes quando se afastavam da aldeia. Liara agradeceu-lhe com um beijo no rosto e ao amarrar o saquinho na cintura, percebeu que continha algo. Despejou em sua mão e dele caiu uma pedra muito branca, presa com simplicidade a um cordão muito delicado.
– A Pedra da Lua! – Exclamou Branca.
– Menina Liara, está usando as pedras do fogo, da terra e do mar. Para que o conjunto ficasse completo, precisava desta. É um amuleto também. Vai protegê-la contra feitiços.
– Obrigada, Chefe. É muito bonito. – Colocou o colar. Não tinha mais o que dizer. Gostaria de presenteá-lo também, mas não tinha com o quê.
O café da manhã foi ruidoso e alegre. Apenas Serg mantinha-se um pouco mais reservado, mas Liara percebeu que estava bem e relaxou.
Depois foram para a praia, com os Gigantes jogando-se no mar. Ela quis caminhar um pouco pela praia com Neve experimentando a sensação da falta da thuga.
– “Isto é maravilhoso!” – Sentia o vento tocar sua pele de uma forma totalmente nova. Correu um pouco para intensificar a sensação. Até o toque dos seus fios de cabelo era diferente e mais suave.
– “Oh, como é bom!” – A areia entrava entre os dedos dos pés e era macia e quente embaixo deles. – “Que gostoso!” – Girou o corpo, rodopiando, com os braços abertos, até ficar um pouco tonta e sentou-se rindo sozinha. Serg, acompanhando à distância e ria também, de puro contentamento com sua alegria.
Voltou para junto dos Gigantes para entrar na água. Olhou para sua roupa impecável e ficou em dúvida.
– Entra logo! Está uma delícia!
– Branca, não vai estragar? – Apontou para a roupa.
– Nada! Pode entrar sem medo. Quer que te traga até aqui?
– Quero. – Eles estavam bem mais adentro do mar. Foi montada em seu ombro e ficaram na água mais de uma hora, os Gigantes revezando-se em nadar com ela nas costas na nova brincadeira que inventaram e que ela adorou.
O dia foi longo. Almoço, teatro, brincadeiras, música, jantar. Ela acabou cochilando antes do jantar, exausta. Quando acordou já era noite. Uma fogueira estava armada na praia, onde assavam a comida, sentados no entorno. E depois do jantar foi a vez do espetáculo de dança que o chefe mandara executar em sua honra e que narrava toda a estória da aldeia, desde que chegaram ali. A fuga de Mundo, o frio, seu encontro com Liara e depois com Ani, o desabamento da caverna e seu retorno com a ajuda foram tão bem coreografados que Liara ficou emocionada. Os dançarinos receberam muitos aplausos.
Um dos nativos começou a cantar, os músicos acompanhando e os dançarinos agora executavam passos livres. Convidaram-na para dançar e Liara aceitou meio hesitante. Ela nunca tinha dançado e atrapalhou-se completamente, mas eles não ligaram e queriam mesmo era brincar. Dançou içada ao peito de quase todos eles e muito pouco no chão. Foi disputada, raptada e recuperada várias vezes enquanto riam até as lágrimas com a pantomina.
Quando se cansaram, a música ficou suave e começou a hora das estórias. O chefe quis ter a honra de contar sua primeira estória.
No princípio dos tempos, assim que o mundo foi criado por Issurú, Itshara e Kalenói, a Mãe da Terra e o Pai das Águas cuidaram e supervisionaram pessoalmente sua povoação. Primeiramente criaram uma raça de homens para ajudá-los. Os Primeiros Filhos eram gigantes com tanto poder quanto seus deuses pais.
Seguindo as ordens de Itshara e Kalenói, criaram todos os tipos de seres vivos, no céu, na terra e no mar e quando terminaram, receberam a incumbência de zelar por aqueles que criaram.
Escreveram o nome de cada animal, pássaro, peixe, sem esquecer os humanos em folhas de árvore. Colocaram as folhas dentro de uma grande gamela e misturaram as folhas. Cada Primeiro Filho pegava uma folha, lia o nome que estava escrito nela e declarava-se seu protetor.
Quando todas as raças, inclusive a dos humanos já haviam sido lidas, os dois deuses abençoaram seus filhos e despediram-se. Kalenói foi para o fundo das águas e Itshara fundiu seu corpo a terra, para a eterna vigília.
Os Primeiros Filhos fizeram sua última festa antes de partir. À noite, quando estavam dormindo, o Deus da Escuridão que não queria que os seres do mundo tivessem proteção, passou por eles com seu manto escuro, matando-os e deixando a terra preta.
Ailã, uma dos Primeiros Filhos, tinha uma voz tão doce e melodiosa que coubera a ela ensinar os pássaros a cantarem. Ela cantou durante a última festa e por isto não bebeu. Cantou até que o último dos Primeiros Filhos dormiu e depois foi ao rio banharse e de tão cansada, adormeceu deitada em uma Vitória Régia.
Quando acordou, viu o Deus da Escuridão partindo e a terra toda preta onde sua capa tocava. Foi correndo até a aldeia e viu os corpos sem vida de seus irmãos. Ela subiu até o ponto mais alto e cantou com todo seu coração, contando a Issurú o que o Deus da Escuridão fizera e pedindo-lhe para que os fizesse voltar à vida.
Naquela hora da madrugada, a lua estava se pondo e o sol nascendo e por isto Issurú ouviu com o coração e a mente. A voz de Ailã era tão doce e tão triste que o Sol que era seu coração chorou lágrimas de fogo e elas caíram sobre aquele pedaço de terra, queimando-a. Derreteram os corpos dos Primeiros Filhos, fundindo-os com o fogo e a terra. E de suas cinzas nasceram os Dragões e os Gigantes de Fogo com um só olho. E das cinzas dos animais que também morreram surgiram pequenos pássaros e animais de fogo.
Ailã não queria viver com seu corpo perfeito, quando todos que amava agora eram feitos de terra e de fogo. Implorou a Issurú que a transformasse também e quando não foi atendida, entrou em uma poça de fogo, deixando-se queimar. O coração de Issurú comoveu-se com seu sacrifício e decidiu atender seu desejo, transformando-a em dragão, mas antes que fizesse isto a Lua, sua mente, achou que tanta bravura e coragem merecia uma recompensa e transformou-a em um gigante e maravilhoso pássaro de fogo e disse:
– Você agora é o pássaro Fênix e terá cem anos para encontrar o Deus da Escuridão. Quando o encontrar, use a Pedra do Sol para prendê-lo e a Pedra da Lua para nos chamar e faremos com que ele caminhe para trás com seu manto, desfazendo as mortes de seus irmãos e todos vocês retornarão às formas anteriores. Se após cem anos não conseguir encontrá-lo, volte aqui para morrer e renascerá de suas próprias cinzas. E assim será até o fim dos tempos ou até que o encontre.
O sol chorou uma lágrima que se transformou na Pedra do Sol e a Lua exalou um suspiro orvalhado que se transformou na Pedra da Lua.
Mas o Deus da Escuridão escutava escondido em uma moita e prevenido, conseguiu roubar e destruir a Pedra do Sol e a Phoenix nunca conseguiu capturá-lo. E a cada cem anos ela volta à Terra do Fogo e constrói um ninho com galhos secos perfumados.
Quando está pronto, canta sua história, sobre a tristeza por não ter capturado o Deus da Escuridão e as saudades dos irmãos. Seu canto é tão belo e tão triste que seus irmãos recordam-se de quem eram e choram com ela e todos os animais e pássaros se aproximam do ninho, comovidos.
Assim que termina de cantar ela ateia fogo em si e morre exalando o perfume dos galhos queimados. De suas cinzas nasce uma nova Phoenix que, tão logo fique grande e forte o suficiente, agarra o ninho com as patas e leva-o até a Cidade do Sol, onde enterra em um local secreto.
– Que triste. – Falou Liara, disfarçando uma lágrima.
– Sim. E sabe por que ela enterra suas cinzas? – Perguntou o Chefe. – Porque elas podem reviver os mortos e dar vida eterna aos vivos. Na última vez que se queimou houve uma guerra pelas suas cinzas. Vieram seres de todos os tipos e de todos os lugares e eles lutaram uns contra os outros e mataram-se pela disputa das cinzas. Nossos antepassados e todos os dragões e Gigantes de Fogo estavam lá, ajudando a protegê-la até que ficasse forte o suficiente para voar com o ninho.
– Imagine o perigo destas cinzas em mãos erradas. – Comentou Mundo.
– Não existem mãos certas. Todas as mãos são erradas. – Corrigiu seu pai. – Daqui a alguns anos a Phoenix atual morrerá e nós estaremos lá, protegendo-a.
– Nosso pai te deu a Pedra da Lua, Liara. Nós a guardamos há muito tempo. – Falou Branca Flor. – Liara tocou a pedra do colar.
– Por quê? – Perguntou ao Chefe.
– Vê os furos nela? – Ela não tinha percebido ainda. – A Phoenix reconhece o som que sai quando ele é assoprado. E se o tocador estiver nas Terras do Fogo, ela o encontrará. E poderá ser sua amiga.
– Nossa! É muito importante. Não posso ficar. – Ela começou a tirá-lo do pescoço.
– Não. Somos os guardiões da Pedra da Lua e algumas poucas vezes demos a pedra para alguma pessoa. Todos os Escolhidos foram aceitos pela Phoenix. Ela é uma ave solitária. De tempos em tempos escolhe alguém para acompanhar. E já está sem nenhuma companhia há alguns anos. Talvez esteja na hora. E acho que ela gostaria de ser sua amiga. – E Branca piscou. – Mas estou aqui e não lá. Se ficar comigo, ela continuará sem amigo.
– Quem sabe o que nos reserva o futuro? Dar-lhe esta pedra é a forma como nosso pai encontrou para dizer que gostaria que nos visitasse algum dia. E a Phoenix não precisa da pedra, caso deseje encontrar um amigo. – Mundo explicou.
– Não posso. – Teve a impressão de que queimava em suas mãos.
– Fique com ele até nossa partida e se decidir não ficar, devolva-o e aceitarei. – Completou o chefe.
Decidida a devolver, Liara achou que podia ficar com ela enquanto estivessem na Caverna e aceitou para não magoar o chefe.
Eles ainda conversaram um pouco sobre a Fênix e também sobre os dragões e os Gigantes de Fogo. Liara soube que o povo da aldeia era filho dos Primeiros Filhos e por isto eram tão grandes.
– Mas eles eram ainda maiores. Muito maiores. – Pata de Urso explicou, estendendo a mão para cima em demonstração.
– E os dragões são grandes assim? – Ela perguntou.
– Imensos. E a Phoenix também. Nós montamos os dragões sem problemas e o povo do reino também, mas eles ficam bem pequenos nas costas deles. – Ele falou.
– Mundo falou que os dragões gostam de escolher aqueles que seguem e que algumas pessoas os escravizam. Que triste.
– Sim, muito triste. Nós fazemos o que podemos para evitar e mesmo assim às vezes conseguem capturar um ou outro. – O Chefe concordou.
– Tampinha como você é, ia desaparecer nas costas deles. A Phoenix seria melhor para você. Sem contar que é linda! Suas penas são douradas ou em tons que variam do vermelho mais intenso ao laranja. Parece que está em chamas e ela pode mesmo queimar se tentarem montá-la sem que ela permita. – Mundo parecia divertido ao dizer isto.
– Mesmo?
– Vimos algumas pessoas saírem bem machucadas. – Ele riu e os outros também. – Pena que os dragões não possam fazer o mesmo, ainda que possam soltar fogo pela boca.
– Como são eles? Gostaria de ver um, mesmo que fosse desenhado.
– Eu faço para você. – Mundo prometeu.
– Amanhã. – Liara disfarçou um bocejo.
– Acho melhor irmos embora, mocinha. Já é tarde. – Cure que mantinha-se a pouca distância falou.
Liara trocou de roupa com relutância, colocando novamente a thuga e agradeceu a todos pelo dia.
– Foi o dia mais feliz de toda minha vida. – Falou, deixando-os orgulhos e contentes.
Eles a convidaram para voltar no próximo domingo e Liara não teve dúvidas em aceitar. Comentou com Cure na volta que apenas riu.
O tempo pareceu voar para Liara e quando percebeu já era época de suas provas. Voltou à cidade para passar toda a semana. Tinha estudado tudo que pôde, mas sabia que fora pouco e achava que seria reprovada em alguma das matérias.
Ani disse para não se preocupar. Acreditava que os professores seriam compreensivos, entendendo que ela tinha outras obrigações além do estudo. Liara achou que estava apenas querendo acalmá-la e fez todas as provas sentindo que tinha um saco de pedras dentro do estômago.
A prova de Loua era principalmente prática. Ele pediu que demonstrasse o que tinha conseguido em manipulação da matéria. Liara fez tudo o que ele pediu sem dificuldade, mas ele não pareceu satisfeito.
– Agora mostre o que aprendeu a fazer sem que eu tenha ensinado.
– Só aprendeu a fazer o que enviei em exercícios? Não tentou fazer nada diferente?
– Estive ocupada, ajudando a traduzir… – Ele a cortou ríspido.
– Não há justificativa para a mediocridade.
– Mas, eu estou proibida de fazer coisas diferentes! – Ele apenas ergueu as sobrancelhas.
Liara estava quase chorando. Entendeu que aquela era a pegadinha deste ano e iria repetir se não mostrasse algo que o convencesse. Pensou na invisibilidade. Não poderia mostrar que ficava invisível, mas durante todo o ano treinara para conseguir andar invisível. Não conseguira, mas em compensação aprendera a fazer coisas ficarem invisíveis quando as tocava. Deveria mostrar? E se fosse um truque da assembleia e ela se complicasse? Então pensou que era uma magia ligada à manipulação da matéria. Decidiu arriscar.
– Aprendi a fazer isto. – Ela colocou um dedo em um livro e ele desapareceu. Loua não pareceu surpreso ou impressionado.
– Está melhor, mas não é suficiente.
– E isto? – Tocou a mesa que desapareceu com tudo que tinha por cima. Quanto maior o objeto mais difícil era. Ele devia saber a diferença.
– Desapareça com isto. – Ele pegou uma fruta entre as mãos, distante dela. Levantou-se para tocá-la.
– Não. Sem tocar. – Ele falou.
Ela se concentrou. Nunca tentara aquilo. Tentou de todas as formas que pensou e não funcionou. Fechou os olhos e concentrou-se mais. Abriu os olhos para certificar-se e a maçã continuava visível.
– Não consigo. – Admitiu. Ele fez uma expressão de contrariedade e depositou a fruta na mesa.
– E quanto à lista de pensamentos? Você fez?
Alguns. – Admitiu em um fio de voz. Na verdade quase nada. Esquecera-se deste exercício durante um bom tempo e quando lembrou também não ficou animada. Era cansativo ficar anotando pensamentos e catalogar em fato ou pensamento de acordo com sua origem e o sentimento que provocaram.
– Você teve pensamentos que provocaram sentimentos?
– Tive.
– Quais sentimentos?
– Todos. Medo, alegria, tristeza.
– Dê um exemplo.
– Quando fico muito tempo na Vila dos Gigantes sem ver minha mãe, sinto preocupada com ela.
– Outro.
– Sinto alegria quando o dia de voltar para casa se aproxima.
– E quando a encontra, continua preocupada?
– Não. Vejo que está bem.
– E acha que o sentimento de preocupação que teve antes foi válido?
– Como assim?
– Você se preocupou com algo que poderia vir a acontecer ou não e depois comprovou que não aconteceu. Você se entristeceu por nada.
– Não tinha pensado desta forma.
– E se você tivesse voltado para casa e sua mãe tivesse ido visitar alguém e tivesse que passar outra semana sem encontrá-la. A alegria que sentiu um dia antes teria sido real?
– Não.
– Estava sentindo alegria por algo que não tinha acontecido ainda e que podia ou não acontecer, certo? Caso não acontecesse, você teria ficado falsamente feliz.
– É confuso. Não entendo.
– Dê um exemplo de um fato que aconteceu que te deixou feliz.
– Encontrar minha mãe.
– Exato. Esta é a alegria real, pois vem de um fato e não de uma expectativa.
– E a outra era falsa?
– Não exatamente. O objetivo deste exercício era que compreendessem que muitas vezes sentimos diversas emoções com fatos que não ocorreram. Ocupamos a mente, gastamos energia e desperdiçamos sentimentos com coisas que podem nem mesmo acontecer.
– Ah…
– Você estava preocupada com as provas?
– Sim.
– Talvez tenha se preocupado e sofrido antecipadamente pelo que não havia motivo.
– Ou não.
– Se for reprovada ficará triste?
– Sim.
– Se for aprovada ficará feliz?
– Sim.
– E a preocupação que teve antes muda algo?
– Não.
– Ajudou em algo?
– Não.
– Então. É isto. É certo que ficará feliz em ser aprovada ou triste se for reprovada. São os sentimentos que estes fatos provocam. Mas ficar triste ou feliz antes dos fatos acontecerem, sem saber se vão realmente acontecer ou qual acontecerá, o que parece?
– Inútil? – Ele não respondeu e a dispensou. Liara preferiu não pensar naquilo naquele momento. Iria conversar com a mãe para tentar entender. Aquele Loua era meio maluco e sua cabeça estava rodando.
Sua mãe disse que nunca tinha pensado nisto, desta forma e ficou confusa também. Depois disse que talvez ele tivesse razão por um lado e que seria mesmo melhor não se preocupar, entristecer ou alegrar com nada que ainda não tivesse acontecido. Mas disse que era próprio das pessoas isto e que devia ser impossível não ser assim.
Liara decidiu que tentaria só sentir emoção com fatos e não com pensamentos. Pensou no resultado que sairia no outro dia com certo distanciamento. E achou aquilo bom.
Esta resolução durou pouco tempo. Indo com a mãe para a entrega das notas, seu estômago voltou a encher-se de pedras e de nada adiantou ficar se dizendo que era um sentimento falso.
Passou raspando em quase todas as matérias. Teve melhor resultado em Linguagem e Escrita, que realmente tinha aprimorado bem. A nota de Loua foi a última, como sempre e as pedras pesavam ainda mais, deixando sua boca seca.
Seu desempenho nos exercícios de magia foi bom, ainda que pudesse ser melhor se tivesse acompanhado sua evolução. Levando em consideração o fato de ter estudado sozinha, manterei a nota 5. Entretanto, no próximo ano deverá se dedicar mais aos exercícios mentais.
Os professores e o reitor aplaudiram brevemente. Estavam curiosos quanto aos exercícios de magia e tinham questionado Loua após a prova. Queriam saber se confessara magia não autorizada, mas Loua garantiu que não, embora não tenha entrado em detalhes.
Ela voltou para a caverna, feliz e agora com um fato, aliás, dois fatos: não apenas passara de ano como estava de férias. Dentro de algumas semanas voltaria para sua assembleia. Tentou não pensar nisto para não estragar as férias. Teria mais tempo. Pensou no que faria.
Em menos de duas semanas estaria de volta à cidade para o duplo evento de seu aniversário seguido da assembleia. Achou bom aproveitar o tempo e durante as manhãs vagabundeou pela caverna, exercendo o duro ofício de nada fazer. Apenas caminhar com Neve, que estava ficando bom em pegar os gravetos que atirava longe, brincar com as crianças Gigantes e principalmente nadar e nadar e nadar. Sem miséria, era seu lema.
À noite vagabundeava mais um pouco, desta vez pelos arredores da Caverna, procurando um novo refúgio, um local que fosse apenas seu. Ainda não encontrara, mas conhecera boa parte dos arredores e gostava da sensação do vento áspero da região.
Quando chegou o dia de voltar, estava satisfeita consigo mesmo e sua capacidade de indolência.
Seu aniversário este ano não foi tão festivo. A mãe e ela passaram o dia juntas e ela fez outro bolo de Aliras, menor, porém mais bem decorado, em uma perfeição de pequeninas flores comestíveis ao redor e o número dez irrompendo vitorioso em meio a estrelas feitas com a geleia.
Ganhou um conjunto de calça e camisa para usar em casa, feito em um tecido muito leve e delicado e outra miniatura.
– Não esquenta tanto quanto os outros e pode usar para dormir ou para ficar em seu quarto, na Vila dos Gigantes. – Ani falou.
Nenhuma delas tinha mencionado a assembleia do dia seguinte, como se evitando falar a ameaça desaparecesse. Ambas esperavam não haver problemas e que Liara fosse totalmente liberada, mas uma assembleia era sempre uma assembleia e tudo poderia acontecer.
Apenas no dia seguinte, quando estavam se dirigindo à praça onde aconteceria foi que Ani falou para não se preocupar. E ela disse não estar preocupada. Uma deslavada mentira que disse apenas para tranquilizar a mãe. Estava apavorada.
Surpreendentemente, Faya não apareceu. Não havia acusação desta vez e possivelmente não quis testemunhar o fracasso de sua tentativa de banir Liara. A população também não estava exaltada e agressiva como na vez anterior. Ao contrário, muitos sorriam discretamente para Liara.
Lure iniciou a reunião, fazendo um breve relato da assembleia anterior, do decreto e dos eventos ocorridos com os Gigantes, que o obrigara a autorizar Liara a fazer uso de suas habilidades naturais e esclarecendo que não poderia ser responsabilizada por nada que tivesse relação com estes fatos.
Os anciões concordavam com movimentos de cabeça e como não houve contestação, Lure passou à próxima etapa.
– Liara, durante este último ano, você voltou a fazer uso de magia não autorizada?
Liara já esperava por isto. Tinha debatido consigo mesmo sobre a resposta. Não tinha virado peixe depois daquilo e nem qualquer outra transformação. A tradução para Mundo e os Gigantes fora considerada autorizada e não estava em julgamento. Restava a questão da invisibilidade. A rigor, ela sabia que o povo de Sur não tinha este poder e que deveria fazer parte daqueles dons de uso não autorizado. Porém… – E ela se pegou neste porém com toda força. – Não se tratava de magia não autorizada. Era apenas uma capacidade maior para a magia autorizada e comum a todos os Surs: manipulação de Ká. Ela mostrara para Loua e ele não falara nada. Portanto, não deve ter achado errado.
Era um pensamento meio torto e questionável, ela sabia disto. Mas… Não ia confessar. Nem tanto por receio da represália e bem mais porque não queria que ninguém soubesse que conseguia ficar invisível.
– Não, Senhor. – Respondeu, séria.
Se alguém aqui sabe de algo que contradiga esta afirmação, este é o momento de falar.
Alguns minutos se passaram, tensos para Liara. Sempre poderia ser que alguém tivesse visto. Mas não apareceu ninguém.
– Assim sendo, aceitamos sua resposta e consideramos que atendeu à nossa solicitação, sendo por isto totalmente reintegrada à sociedade, sabendo que não poderá fazer uso futuro de qualquer habilidade mágica não comum aos Surs. – Antes que aplaudissem e a assembleia fosse encerrada, Ani pediu para falar.
– Caros Onais e demais membros da assembleia, Lure, Sure, Suri e Cure. Como responsável legal por esta criança, solicito que seja retirada sua autorização para os trabalhos de tradução na Caverna.
– Por qual motivo? – Perguntou um Lure aparentemente surpreso.
– Não me parece correto com ela que possa fazer uso de um dom e não de outro, apenas porque seja conveniente para nossa sociedade. Ou nós a aceitamos como um todo, com todo seu potencial e podendo usar todos os dons que Ur lhe deu ou não poderá usar nenhum deles. Não concordam que deva ser assim?
– Mas não sabemos o que poderá vir para frente e quais as consequências. – Falou um dos Onais.
– Qual a consequência que poderia vir de um pequeno peixe? Quanto mal ele poderia causar? Esta menina nunca fez nada que fosse prejudicial a qualquer um de nós. Ao contrário, faz sacrifícios em nome de nosso bem estar e da evolução que teremos com o uso do Urká. Está morando há meses em um acampamento, longe de seu lar e de mim, que sou sua mãe. Divide seu tempo entre os estudos e o trabalho, enquanto outras crianças de sua idade apenas estudam e brincam. E qual a recompensa que recebe? Não merece um voto de confiança de nossa sociedade? Não podemos aceitar que ela veio para o bem e não para o mal? Não podemos abaixar a guarda e acreditar na bondade de seu coração? – Ela estava inflamada e disse as últimas palavras de forma dura e acusativa.
Os Onais e os demais membros da sociedade confabularam entre si, parecendo claro que havia uma divisão entre os que aceitavam os argumentos de Ani e os que eram contra. Loua surgiu e pediu licença para falar. Liara empalideceu prontamente.
– “Está acabado. Vai contar a eles sobre a invisibilidade.“ – Arrependeu-se. Como fora tola em mostrar seu segredo.
– Creio, Senhores, que tenho a solução para este dilema.
– Fale, Loua. – Autorizou Lure, curioso como todos.
– Tenho acompanhado o desenvolvimento mágico desta menina nos últimos três anos. Há poucos dias esteve comigo, efetuando as provas do final de ano letivo e passou com nota máxima. E levem em consideração que estudou sozinha, sem meu apoio ou de qualquer outro professor, apenas com as matérias que lhe enviamos. – Tomou fôlego antes de prosseguir, dando tempo a eles de entender o que dissera.
– Sou testemunha, portanto, da grande capacidade intelectual e de seu potencial mágico notadamente superior. Até onde irá? O que aprenderá? Quais novos poderes ela desenvolverá? São estas as questões que perturbam aos senhores, não é? – Esperou pela resposta que veio silenciosa, através de gestos.
– E se ela tiver ao seu lado um instrutor adequado, alguém que estimule corretamente este potencial, que esteja atento e evite problemas potenciais e que possa mantê-los cientes de seu progresso? Isto não lhes deixaria mais confortáveis e totalmente seguros? – Perguntou.
Nova confabulação entre os anciões. E Lure foi o porta-voz.
– Acreditamos que sim, mas quem seria este instrutor?
– Eu. – Sua declaração promoveu uma discreta falação. Loua era conhecido por não se envolver pessoalmente ou emocionalmente com qualquer aluno e mesmo com outros professores. Na verdade, tinha fama de um homem irascível e recluso, que não apreciava contato com outras pessoas.
– E porque faria isto? – Quis saber Lure.
– Porque sou um professor. E após mais de uma década deparo-me com uma aluna com verdadeiro potencial e sei que sob uma orientação correta seus dons aflorarão e quem sabe o que o que nos aguarda no futuro? Se Ur a colocou no seio de nossa sociedade, com estes dons, quem somos nós para dizer que não deve usá-los?
– Mas e suas classes no Educandário? Liara passará ainda vários meses na Vila dos Gigantes. Não temos previsão de quanto tempo permanecerá por lá.
– Posso nomear um substituto entre meus vários assistentes. Vários deles estão em condições e há tempo esperam por uma oportunidade como esta.
– Abriria mão temporariamente de seu cargo e iria morar na Vila dos Gigantes, apenas para educar a menina? – O Onai Thur duvidou.
– Sim. Sem dúvida. Com prazer cuidarei de sua educação, tanto a mágica quanto a formal, enquanto morar no acampamento e mesmo depois, caso seja necessário.
Não houve mais confabulações.
– Todos aceitam a proposta do Professor Loua? – Perguntou o Lure olhando-os. Todos responderam positivamente.
– Muito bem, professor. Sua proposta foi aceita e está nomeado como Orientador exclusivo da menina Liara enquanto estiver no acampamento. Começará imediatamente.
– Agradeço, Lure. – Loua não demostrava nenhum sentimento ao receber a aprovação.
– Um momento, Lure. – Ani apartou.
Sim?
Estamos em período de férias escolares. Todos já fomos crianças e sabemos o quanto elas são importantes para todas as crianças. Liara terá apenas meias-férias, pois continuará trabalhando nas traduções. Não quero que estude neste período, nem mesmo para desenvolver seus dons. – Liara a amou naquela hora. Lure considerou por um instante.
– Está certo. Sr. Loua, o senhor começará assim que o ano letivo começar.
– “Oba!” – Liara estava feliz agora.
E assim encerrou-se a assembleia, seu banimento temporário e a proibição do uso de magia. Liara estava totalmente livre e mal conseguia acreditar.
– Mamãe, você foi perfeita! Obrigada!
– Tivemos bastante tempo para pensar e organizar meu discurso. – Ela comentou rindo.
– Quem?
– Aqueles que gostam de você, oras: Lure e Suri, principalmente.
– E eu gosto deles também, agora mais ainda. – A mágoa daquele ano tinha sumido e ela não via a hora de conversar com os amigos novamente.
– Amanhã eles irão a nossa casa e faremos uma comemoração adequada.
– Iá, Loua também? Já sabia?
– Não, querida. Foi surpreendente. O que mostrou na prova que o deixou tão entusiasmado?
Liara contou à mãe e depois mostrou seus avanços, feliz.
Com aquele capítulo encerrado, Liara voltou para a vila após dois dias, encontrando Mundo desesperado com alguns problemas que haviam surgido durante sua ausência.
– Ei, o que houve? Lene disse que está doido atrás de mim.
– Eles é que me deixam doidos.
– Quem? Teus irmãos?
– Não. Lógico que não. Os teus irmãos! Pararam de trabalhar. Não consigo entender por que.
– Ok. Deixe-me apenas trocar a roupa de baixo e vamos.
– Sabe o que houve, Lene? – Perguntou enquanto se trocava.
– Kirú disse algo sobre não ter certeza do tamanho certo, mas não entendi direito. Melhor perguntar para ele.
Como assim, tamanho certo? Tinham discutido isto antes, por semanas. Contou a Mundo enquanto desciam à caverna e também ele não sabia.
– Kirú deve estar maluco com o calor, só pode. – Ele falou sobre o construtor chefe.
– Olhe. Lá está. Parado olhando os papéis em cima da mesa, desde que saiu.
– Chefe Kiru. – Ela falou ao se aproximar. – O que houve?
– Liara. Bom que voltou. Estive revendo os cálculos. Está tudo errado. Estamos construindo um barco pequeno para navegar alguns dias. E se a distância for maior? E se levarem semanas ou meses navegando? Não há espaço para mantimentos, água, dormitórios, nada.
– E porque levariam mais do que alguns dias? – Mundo perguntou após a tradução.
– E porque levaria só alguns dias? Vocês nos disseram isto e acreditamos, mas encontramos um antigo mapa da época em que vivíamos com os outros. Veja isto. – E mostrou-lhes um ponto.
– Aqui é onde provavelmente estamos. – E arrastou o dedo para outro ponto. – E aqui para onde querem ir.
– E? – Mundo não entendia ainda. Nem ela.
– Vão demorar no mínimo seis semanas para percorrer esta distância.
– Não pode ser! Estávamos lá e no instante seguinte estávamos aqui. Não podemos estar tão distantes.
– Não temos certeza se este mapa está correto, mas é a fonte mais confiável que temos e, se for verdade e forem no barco que estamos projetando, vocês morrerão de fome ou sede.
– Droga!!! – Mundo deu um soco na mesa.
– Temos que ter certeza antes de continuarmos a construção.
Mas como?
Tenho pensado nisto nos últimos dias. Não é a solução ideal, mas penso em construir uma pequena jangada e dois de vocês irão ao mar por um dia e uma noite. Se ao final deste período avistar sua terra ao longe ou qualquer outra terra que seja, mantemos o planejado. Mas…
– Se não avistarmos nada, só água, teremos que recomeçar. – Ele concluiu.
– Sim.
– E quanto tempo para esta jangada?
– Rápido. Podemos aproveitar as folhas de Ur forjadas para o casco. Dois, no máximo, três dias.
– Certo. E tenho que pensar em quem irá nele. É um problema. Nenhum de nós tem experiência no mar.
– De nosso lado menos ainda.
– Como saberão voltar?
– Ah, sim. Pensei nisto. Temos um instrumento que vai ajudar na orientação. Só precisam mesmo saber remar.
– Muito bem. Faça isto então. Vou providenciar os homens. – E foi com Liara em direção à aldeia.
– O que acha, Mundo?
– Talvez ele tenha razão. Poderia insistir no plano original, mas se ele estiver certo, estaria conduzindo meu povo para a morte. Não podemos arriscar, mesmo que isto signifique alguns meses a mais.
– Sim. Está certo. – Liara ficou chateada por ele, mas era o certo.
– Ei, não me contou da Assembleia. O que deu?
– Ah! Está olhando para uma cidadã absolutamente livre e absolvida.
– É mesmo?
– Sim. Posso usar todos os dons mágicos que possuir, sem restrição. E terei um professor aqui, ajudando.
– Nossa. Que evolução. Conhece este professor?
– Sim. É meu professor de magia desde o começo. É estranho, esquisito. Nem entendo porque quis fazer isto.
– Estranho e esquisito como?
– Ah, sei lá. Você precisa ver para entender.
Hum… Ficará bem com ele?
Acho que sim. Vai me ajudar com estas coisas, tipo virar peixe, ficar invisível.
– Que bom.
– É.
Mundo resolveu ir junto com Pata de Urso, mas felizmente foi impedido pelo Chefe Anajé.
– Não vou deixar meus dois filhos mais velhos irem para um mar desconhecido dentro de uma casquinha que flutua. Um dos dois fica. – Foi o que disse e não houve como mudar sua opinião. Pata de Urso que até pouco tempo era o favorito para a sucessão, devido ao tamanho de Mundo, estava sentindo-se ameaçado com a contribuição do irmão para a aldeia através do acordo com os Surs e negou-se a abrir mão da vaga em favor de outro. Assim, Mundo ficou.
– Está chateado? – Estavam na praia observando o barco se afastando. Neve pulava aos seus pés, como sempre fazia quando Liara se aproximava da água.
– Um pouco.
– Como vão as coisas entre vocês?
– Melhorou. Quer dizer, eu trouxe a solução. Todos me respeitam agora. Não é como antes. E se tudo der certo e conseguirmos voltar, é bem possível que eu seja o novo chefe.
– E Pata de Urso?
– Pois é. Um problema. Meu pai deu a entender durante anos que ele seria o novo chefe e agora, ele está nervoso com isto. Todos nós estamos, aliás.
– E você quer? Ser o chefe, quero dizer.
– Quero. Não pela honra ou algo assim. Antes eu queria porque seria a prova de que eu sou tão bom quanto eles. Agora eu sei que sou. Já mostrei. Não preciso mais provar.
– E então? – Eles estavam sentados na areia. O barco era pequeno no horizonte.
– Tenho pensado nas coisas que vi de vocês e em nós. Acho que poderíamos ser diferentes, melhores, sei lá. Tenho vontade de mudar nosso jeito. Não totalmente, apenas um pouco. E para fazer isto, preciso ser chefe.
– E teu irmão? Acha que seria um bom chefe?
– Sim, sim. Sem dúvida. Apenas continuaria tudo igual.
– Você é diferente, Mundo. Não é só o tamanho. Percebeu isto? Você saiu para um mundo que não conhecia e fez tudo que fez, sem medos. E agora, quer mudar sua aldeia e a forma como vivem.
– É, eu sei. Sou diferente, como você.
Eu também pensava assim. Que era diferente como eu. Mas não é.
E porque não?
– Porque eu sou diferente contra minha vontade. Eu não vou atrás disto. Gostaria de não ser, apenas sou. Você não. Você gosta disto.
– Sim. Tem razão. Gosto.
– Às vezes olhos as crianças na escola e penso em tudo que daria para ser como eles, igual, comum. Parecem tão felizes e inocentes.
– Você é feliz e inocente.
– Eu não sei quem são meus pais, não sei quem sou e porque estou aqui. A qualquer momento, algum dom pode aparecer e eles considerarem que é errado e eu ser banida. Acha que sou feliz?
– É complicado. Pode voltar conosco, sabia?
– Penso nisto às vezes.
– E?
– Não sei. Tem minha mãe e agora também vou ter um professor para me ajudar com estas coisas. Mas o principal motivo é Iá.
– Sei como é isto. Ela te ama, não é?
– E eu amo demais aquela velhinha. E aquela que seria tua noiva?
– Pássaro Suave. Agora é noiva de Pata de Urso, meu irmão.
– Você gosta dela?
– Não! – Falou como se fosse um absurdo. – E também, o que adiantaria se gostasse?
– É. – Liara levantou-se sacudindo a areia da thuga. Ele gostava, ela percebeu. Quis mudar de assunto para que não ficasse triste.
– Gosto de você. – Ele falou, tímido. Levantando-se também.
– Ah é? E vai esperar que eu cresça para nos casarmos? – Ela provocou. Atirou um pouco de areia nele.
– Sua piralha! Sabe que não é assim! – E revidou com mais areia. Ela saiu correndo para escapar, rindo.
Quando chegaram à aldeia, disse baixinho:
– Também gosto de você, Mundinho. – Mostrou-lhe a língua e entrou na cabana do Chefe, rindo.
No outro dia, voltou à praia com Neve, como fazia todas as manhãs. Sentou-se na areia e ficou olhando o mar.
Serg a observava um pouco atrás e resolveu ir até ela.
– O que acontece? Porque não vira peixe agora que pode? Porque fica apenas olhando para o mar, todos os dias? – Era preocupante. Ela parecia triste.
– Ah, não estou com vontade.
– Mas por quê? Sempre pensei que poder virar peixe deve ser espetacular e com todo este mar à sua frente…
– É bom sim. É mágico, diferente. Tudo é tão bonito lá embaixo.
– Então por que não vai? Não entendo.
– É só… Ahm… É verdade que peixes maiores comem peixes menores?
– Não sou grande entendido, mas parece que é sim.
– Ah…
– Acha que podem te comer?
– Bom. Não sei. Pode ser, não?
– No rio como era?
– Ah, lá não tinha problema. Todos os peixes eram pequenos como eu.
– Você é um peixe pequeno?
– Não sei direito. Não consigo me ver. Só imagino que seja, porque os peixes que eram grandes ficam pequenos quando viro peixe.
– Hum. Não pensei que seria assim. Achei que você virava peixe, mas continuava do mesmo tamanho. E você cresceu bastante no último ano.
– Ah, não é não. Imagina. Eu seria um peixão se ficasse do mesmo tamanho.
– Posso ver e te falar, se quiser.
– Mas você não gosta do mar. Quase não entra.
– Posso fazer este sacrifício por uma linda mocinha como você. – Ele ganhou um lindo sorriso com esta frase e seu coração se aqueceu.
– Então vamos. Não vou muito longe, só até onde der pé para você.
– Tudo bem. Eu sei nadar. Não se preocupe. Vá até onde precisar.
Liara entrou andando até que a água já lhe cobria e fez um sinal antes de se transformar. A verdade é que estava morrendo de vontade de nadar como peixe e só não entrara antes, mesmo com a proibição, por causa do medo de ser comida. Com Serg ali, sentiu-se segura, mas voltou à forma em seguida, curiosa para saber como era.
– E então?
– Liara, sinto muito dizer isto.
– O quê?
– Você é um peixe muito, muito feio. – E era mesmo. Serg nunca tinha um peixe tão esquisito.
– Está mentindo!
– Não. Sinto muito. Vai ter que trabalhar sua aparência com o Loua. – Ela não gostou de saber.
– Droga. Pensei que era um peixe bonito. E quanto ao meu tamanho?
– Quanto a isto, acho que não precisa se preocupar. É mais ou menos deste tamanho. – Mostrou as mãos, indicando um peixe de uns quarenta a cinquenta centímetros. – Só precisa ter medo se encontrar um peixe realmente grande.
– E será que tem peixes maiores por aqui?
– Não sei. Pode perguntar para eles. – Indicou a aldeia.
– Verdade. – Saiu nadando de volta, mais rápido do que ele. Na praia voltou-se. – Obrigada, Serg! – E foi correndo em direção aos amigos.
– Branca! Mundo!
Contou-lhes o problema, querendo saber dos peixes que existiam no mar. Infelizmente disseram já haverem notado indícios de peixes grandes na região. Não sabiam se eram pacíficos ou predadores e recomendaram cautela. Os dois ofereceram-se para nadar com ela, o que não resolveria totalmente o problema. Eles não podiam respirar embaixo d’água por muito tempo. E também não queria ficar dependendo de companhia. Queria nadar livremente. Mas daria para nadar um pouco, considerou mesmo que aborrecida.
A cada dia um deles ia nadar com ela, durante a manhã. Liara foi perdendo o medo aos poucos. Não viu nenhum peixe realmente grande e o fundo do mar, pelo menos até onde conseguia chegar, pois nunca se afastava muito, era muito diferente do fundo do rio.
As cores eram inacreditáveis e os peixes, de todos os tipos, com formas que ela jamais sonhara. Assim ela se deixava flutuar dentro da água, completamente absolvida pela beleza que entrava por seus olhos e pelo silêncio reconfortante.
Os peixes do mar não eram mais inteligentes do que os do rio e Liara apenas os reconhecia, como eles a ela. Gostava mais de procurar conchas bonitas, em formatos diferentes, com os quais presenteava os amigos e também Lene. Uma vez encontrou uma estrela do mar, que não conhecia até aquele dia, o que a deixou encantada, assim como os cavalos marinhos. E peixes que brilhavam ou eram multicoloridos. Sem falar na exuberância da vegetação. Era tudo tão belo e pacífico. Ficava sem fôlego, perdida na contemplação.
Um dia em que tanto Mundo quanto Branca Flor estavam ocupados ela foi sozinha, já esquecida do medo e acabou distanciando-me um pouco mais do que o normal. E indo mais para o fundo do que ia. Sempre que estava retornando algo à frente capturava sua atenção e deixava-se ir, com a promessa de que seria a última coisa e depois retornaria.
Finalmente subiu à tona e assustou-se ao perceber que estava já praticamente na saída da Caverna, a praia distante demais. Ia nadar de volta quando olhou melhor para a parede que ia até o teto e viu que formavam algumas pedras grandes onde poderia sentar-se um pouco para descansar e decidiu fazer isto, até porque queria apreciar um pouco mais o cenário que era muito bonito, com as paredes bem mais vermelhas do que na praia.
O sol ali penetrava muito mais do que no fundo da caverna e quase não enxergava direito. Se pudesse ficar um pouco sentada nas pedras, talvez seus olhos se acostumassem àquela luminosidade intensa e pudesse apreciar todas as nuances de cores.
Quando se aproximava de um ponto onde as pedras diminuíam de altura, fazendo uma espécie de caminho rebaixado que a levaria ao topo, escutou uma música encantadora vinda do alto. A voz era de mulher e incrivelmente doce e melodiosa. Pareceu entrar diretamente na alma de Liara, fazendo com que lágrimas corressem incontrolavelmente por sua face. Não porque fosse triste, mas por ser tão absurdamente bela.
Seguiu o som, não mais curiosa, apenas com a certeza de que tinha que encontrar a dona da voz e agradecer por este canto. E quase no topo avistou-a. Uma jovem de uma beleza ainda mais comovente do que a música. Estava nua da cintura dos quadris para cima. A pele de um rosa delicado e suave. A cintura muito fina, dois pequenos seios semicobertos por conchas, ombros, braços e mãos pequenos e harmônicos. Os cabelos, pretos e longos combinavam com os olhos muito claros e estavam enfeitados com pérolas, que também estavam em seus braços e pescoço. A boca era rosada e bonita.
– “Tudo nela é lindo!” – Pensou e subitamente acanhou-se, envergonhada com sua feiura em contraste com a perfeição da moça. Moveu-se para a parte de trás de uma das pedras maiores querendo esconder-se e alguns pedregulhos rolaram, chamando a atenção dela.
– Quem está aí? – E sua voz, mesmo que tão suave e doce, soou com uma ordem irresistível a que Liara não conseguiu resistir, saindo de seu esconderijo e ficando em frente a ela.
– Ah, a menina peixe.
– Você me conhece?
– Tenho acompanhado seus passeios à distância, todas as manhãs. – Sua expressão era amigável e encorajou Liara.
– Ouvi você cantar. Sua voz é tão bonita. Fui atraída por ela. Desculpe, não queria atrapalhar.
Estava cantando sobre vocês, sobre o que tenho visto desde que comecei a observá-los. Eu sou Nahla. Uma Nereida.
– Eu sou Liara. Prazer. O que é uma Nereida? – Ela moveu a parte dos pés que até então estava virada para um lado oculto a Liara. Era um rabo de peixe e não pernas e pés.
– É de peixe! Como?
– Somos um dos povos do mar. Não sabia a nosso respeito?
– Não. Nunca ouvi falar.
– Quando Ur criou os seres, não os fez somente para a terra. Existem os seres do mar, do vento, das árvores, de tudo.
– Puxa! – Aquilo era mesmo uma surpresa. – Você é tão bonita. Respira embaixo d´água?
– Sim. Nós vivemos dentro do mar na maior parte do tempo. Alguns nunca nem mesmo vieram à superfície.
– Você é a Fada do Rio? Ou então você a conhece? – Nahla riu.
– Não. Os povos dos rios, das águas doces e nós não nos relacionamos muito. Quem é esta fada?
– Ela era humana como eu, mas queria tanto viver dentro da água que conseguiu desenvolver guelras. Foi como me contaram. Depois falaram que era mentira, que ela não existia de verdade, mas eu sempre acreditei que existe.
– Ah… Os rios também possuem seres como nós, mas eles nunca foram humanos. Bom, na verdade, existiram alguns. Nós podemos dar guelras a vocês. Mas quase nunca fazemos isto.
– Pode dar guelras para pessoas como nós? – Liara estava absolutamente deslumbrada.
– Sim. Não costumamos fazer muito isto atualmente. No passado era mais comum. Nós às vezes atraíamos pessoas com nosso canto e os levávamos para viver conosco em nossa cidade. Mas não funcionava. Eles nunca se adaptavam. Queriam voltar e acabavam morrendo.
– Tem uma cidade no fundo do mar?
– Lógico! Onde pensa que moramos?
– Ah. Deve ser muito bonita.
– É sim. Tritis é muito bonita. E grande. O castelo de meu pai é a construção mais bela de todas. Tem uma torre central mais alta do que tudo na cidade e é ladeada de várias outras torres menores. Todas finas e pontiagudas. – Liara ouvia quieta, tentando imaginar e pensando se um dia veria pessoalmente esta cidade.
– E porque não está lá? Porque nos observa?
– Tenho vontade de saber como é a vida fora do mar, como é viver como vocês. E isto aqui não existia antes. Só tinha uma parede ali. – Indicou a boca da caverna. – Fiquei curiosa.
– Ah… – Liara olhou para seu rabo de peixe e ficou com pena porque ela não poderia andar na terra.
– Não. – Ela falou, entendendo o olhar. – Eu posso andar. – Em um segundo o rabo de peixe transformou-se em pernas, tão belas quanto o restante de seu corpo.
– Então é fácil. E você também fala minha língua. – Percebeu surpresa. Até o momento não tinha reparado neste detalhe.
– Aprendemos com aqueles de vocês que levamos para lá. Sabemos quase todas as línguas de vocês. Estou falando certo?
– Sim. Tem um sotaque diferente, mas é muito bonito, como tudo em você. Então, se pode andar e fala nossa língua, qual o problema?
– É minha voz e o que sou. Quando eu falo ou pior, quando canto, tem algo em minha voz que encanta vocês.
– Como me encantou agora a pouco.
– Sim, mas você está resistindo bem. Talvez por virar peixe. A maioria fica meio boba, não consegue pensar direito. Tudo em nós atrai vocês.
– É que você é tão bonita. Nossa! É bonita demais.
– O que acha que aconteceria se eu aparecesse lá? – Liara imaginou todos ajoelhados a seus pés, seguindo-a para onde fosse.
– Entendi. Caramba! Nunca pensei que ser bonita ou ter uma voz tão bela pudesse ser um problema.
– Não? Justo você que é tão bonita?
– Eu? Não. Sou feia. Ainda mais perto de você. E eles também não me acham bonita. Quer dizer, os Gigantes acham. Os Surs não. Nós nos vestimos com a thuga. – Liara tinha abaixado a thuga até o pescoço dentro do mar e subiu-a até cobrir toda a cabeça. – Assim.
– Que feio. Porque fazem isto?
– Bom, primeiro por causa do frio. E depois porque Ur gosta que fiquemos iguais, para não querermos ser mais bonitos do que os outros.
– Faz frio lá? Pensei que era quente como aqui.
– Não. Quer dizer, na caverna faz calor, é quente. Os Gigantes não usam thuga. É que acima da caverna, onde nós que somos de Sur vivemos, lá faz muito frio, o tempo todo.
– São dois mundos então? Totalmente diferentes?
Isto. Exatamente. – Contou-lhe um pouco sobre Sur e os Gigantes.
– Entendi. Acho que gosto mais dos Gigantes. Este lugar de onde você vem, Sur, além de frio, parece esquisito. – Ela franzia a testa, na junção com o nariz, de um modo muito charmoso. – Esta roupa que usam, deve ser ruim viver com isto o tempo todo.
– A gente acostuma. – Falando neles, Liara pensou que deveriam estar preocupados. Fazia horas que saíra. – Nahla, eu tenho que voltar agora. – Ela ficou tão triste que Liara quase mudou de ideia.
– Eu posso voltar. – Falou rapidamente e viu seu rosto iluminar-se.
– Você faria isto?
– Sim. Adorei conversar com você. Posso voltar amanhã, o que acha?
– Combinado. Eu te espero aqui. – Liara olhou para a praia tão longe, um pouco assustada com a distância.
– O que foi? – Ela perguntou.
– É que nunca nadei tão longe. Estava distraída e não percebi.
– Posso ir com você até lá perto. Quer?
– Sim. – Exclamou, aliviada.
Liara foi nadando, meio envergonhada de virar peixe perto dela. Serg falou que era um peixe muito feio e não queria que sua nova amiga visse-a mais feia do que já se sentia. Chegou exausta à praia e voltou-se para o mar, avistando sua cabeça um pouco mais à frente. Acenoulhe e viu que retribuía.
Neve estava ganindo a seus pés, choroso.
– Ei, o que foi? Ficou preocupado? Bobinho. Sempre volto, não sabe? – Ele iria superar aquele pânico de perda algum dia?
Seus amigos Gigantes já vinham ao seu encontro, correndo. Assim como Serg.
– Liara, pelos céus, onde estava? Quase morremos de medo que tivesse acontecido algo.
– Desculpem. Eu nadei mais longe do que estava acostumada. Distrai e quando vi estava longe. Parei nas pedras perto do final da caverna para descansar antes de voltar.
– Por favor, não faça mais isto. – Mundo a estreitava entre seus braços e ela percebeu que ele tremia.
– Não faço. Desculpe. Está tudo bem agora.
Branca Flor e os demais também a abraçaram. Serg não disse nada, mas ela percebeu que também estava com preocupado. Ficou com remorsos.
Até Lene ficou sabendo e teve que ouvir um sermão quando voltou ao acampamento.
– Muito bonito, heim, Senhora Liara.
– Ah, Lene, não fiz por mal. Distrai e não vi o tempo passar. Foi só isto.
– Tem ideia do que sua mãe faria conosco se algo acontecesse a você?
– Então é isto? Medo de Ani? E eu? Não se importa comigo?
– Lógico que não. Porque me importaria com uma menina malcriada e briguenta como você? – Liara fez cara de choro e ela percebeu que tinha ido longe demais. Sentou-a em seu colo.
– Tolinha. Adoro você. E não apenas eu. Praticamente todo mundo que te conhece. Tivemos medo por você.
– Eu sei, Lene. Estou me sentindo tão mal. Desculpe. – E começou a chorar.
– Ah, querida. Pare com isto. Crianças fazem estas coisas que você fez. E muito mais. E as mães fazem o que eu faço, dão broncas e reclamam. Tem que entender que é assim que funciona.
– Não gosto, Lene. Sinto-me mal quando deixo as pessoas tristes.
– Eu sei, meu amor. Você é uma menina muito especial. Mas precisa aprender a ser mais resistente a críticas ou vai sofrer muito ainda. Não leve as coisas tão sério sempre. Você é criança ainda e tem que ser mais solta.
– Tenho medo de fazer algo errado e ser banida ou perder Iá. – Ela confessou.
– Ah, não vai perder Ani. Ela ama você. E quanto a ser banida, aqueles anciões são uns babacas. Se tentarem fazer algo contra você é só me avisar, está bem? – Liara acabou rindo com o jeito dela e parou de chorar aos poucos.
No dia seguinte, avisou os amigos que voltaria às pedras e que iria demorar. Prometeu tomar cuidado e acabaram permitindo. Assim que se afastou, encontrou Nahla.
– Vim te buscar. – Ela falou sorrindo.
– Obrigada. – Foram nadando devagar e pararam algumas vezes no meio do caminho conversando.
– Você não nadaria mais rápido como peixe? – Ela perguntou.
– Ah, não estou com vontade. – Se Nahla percebeu algo, não comentou.
– Estive pensando sobre sua vontade de ir à aldeia. – Liara falou quando já estavam nas pedras. – Esqueça isto. É só um desejo bobo.
– Não. Eu sei como é. – E contou sobre sua vontade de tirar a thuga e de como agora todos os domingos eram tão incríveis.
Você poderia ir em um domingo. Tenho certeza de que os Gigantes gostariam de você. O chefe Anajé é muito legal. Todos eles.
– Mas e o encantamento?
– Você poderia usar a thuga. Assim ninguém veria você totalmente. – Ela franziu o nariz daquele jeito que Liara vira ontem, demonstrando que não gostara.
– Isto deve ser bem ruim.
– É, mas funcionaria.
– Ainda tem a voz. – Liara percebia que estava cedendo.
– Não pode cantar. Mesmo que fiquem um pouco encantados quando falar, vão se acostumar. Só não pode cantar.
– Vou pensar. Não seria a mesma coisa, como ser um deles, mas poderia ser bom.
– Bom? Seria o máximo! Ah, Nahla, tem que ir. Vamos nos divertir muito.
– Fale com eles primeiro então. Pode ser que não queiram.
– Tá. Tudo bem.
Liara estava pensando também na viagem dos Gigantes. O barco voltara a alguns dias, com a desalentadora notícia de não ter visto terra durante os dois dias em que ficaram no mar.
– Nahla, você conhece tudo lá fora?
– Do mar, você quer dizer?
– Isto.
– Não tudo. É muito grande. Conheço um bom pedaço. Sempre fui meio aventureira.
– Sabe onde fica a terra deles, dos Gigantes? Perto das Terras do Fogo?
– Sim. Sei sim. Estive lá há alguns anos.
– É longe?
– Muito longe. Eu tinha saído pela primeira vez. Queria conhecer o mundo inteiro. Fiquei quase dois anos longe de casa.
Liara falou do plano deles, da construção do barco e do problema da distancia, que não sabiam dimensionar.
– E eles tem um mapa, você disse?
– Sim, mas não sabem se está certo. Acha que poderia dar uma olhada e conferir com o que você conhece?
Claro.
– Senhorita Nahla. – Liara fez uma reverência. – Prepare-se para ser tratada como uma rainha no domingo. – Ambas riram.
– Vamos lá para o fundo? Queria mostrar alguns lugares para você. – Nahla propôs.
– Eu… Ahmmm… Não. Não quero.
– Mas, porque, Liara? Tem medo de mim dentro da água?
– Não! Lógico que não. É só que… bem… É que meu amigo Serg disse que sou um peixe muito feio e não queria que visse. – Confessou, muito vermelha.
– Bobagem. Já vi você como peixe.
– Não é feio?
– Todos os peixes são bonitos para mim.
– Ou seja, sou um peixe feio. – Liara fechou a cara e cruzou os braços.
– Talvez menos bonito, apenas. – Liara continuou olhando feio. – Ok. É feio e desengonçado. Parece um monstrengo. Não sei se é um peixe, uma tartaruga ou um golfinho. Parece que ficou em dúvida sobre qual seria e saiu uma mistura de tudo.
– Tão ruim assim? – Ela apenas balançou a cabeça, concordando e segurando o riso, mas quanto mais tentava segurar, mais tinha vontade de rir e escapou. Liara ficou brava no começo, mas acabou contagiada, rindo também.
– Porque não tenta melhorar o bicho? – Nahla disse, ainda ofegante com o riso.
– É peixe, não bicho. – Liara reclamou, gerando outra onda de risadas.
– Não pode ser um peixe melhor?
– Talvez depois, quando meu professor de magia chegar, ele me ensine. Agora não consigo.
– Quer guelras então? – Liara fez que sim com a cabeça, enfaticamente.
– Deixa ver. – Nahla passava as pontas dos dedos das mãos pelas laterais de sua garganta. – Fica quieta.
– Faz cócegas. – Reclamou Liara.
– Estou quase terminando. – Estava massageando a parte do couro cabeludo atrás de sua orelha.
– Seus cabelos são tão bonitos. Todas são bonitas como você?
– Sim. E somos muito, muito vaidosas. Vai ver quando for a Tritis. – Liara pensou se um dia iria à cidade no fundo do mar.
Pronto. Acabei. Veja que tal ficou. – Liara passou a ponta dos dedos atrás da orelha e sentiu uma rugosidade estranha.
– Isto sai depois?
– Não. Não sai. Mas prefiro que não conte para ninguém. Não quero enfrentar um enxame de pedidos de guelras. Aliás, não podemos dar guelras a ninguém que não pretendemos levar a
Tritis.
– Nahla, não sei se algum dia irei lá.
– Ah, vai sim. Tenho certeza. Mas agora chega de conversa. Pule na água e experimente.
Pularam juntas, do alto da pedra, algo que ela queria fazer desde que viu a altura. Mergulharam e ela percebeu que respirava. E mais, que ouvia Nahla dentro de sua mente.
– Uau! Como faz isto?
– É assim que conversamos entre nós. Não pode ter guelras e não saber conversar.
– Que legal! Uhruuuu… – Esbaldava-se em mergulhos e volteios, adorando a sensação. – Nossa, isto é bem melhor do que ser peixe!
– Vamos para o fundo e verá o que é realmente bom. – Desceram e quando chegaram Nahla falou.
– Caminhe. Assim. – E deu alguns passos, imensos, parecendo não ter gravidade. Liara fez o mesmo.
– Que delícia! – Andavam muito rápido assim. Percebeu que podia prolongar o salto projetando o corpo e caminharam por um bom pedaço, divertindo-se.
– Aqui. Veja. – Nahla seguia por uma brecha entre grandes pedras envoltas em musgos.
Suspensas na água havia algumas formas transparentes e que brilhavam.
– Não se aproxime. São Medusas. Também são chamadas de água-viva. Estão vivas e aqueles tentáculos queimam. Elas usam para agarrar comida e também para se defenderem. Não é bonito?
– Nossa! São lindas! Pena que queimam. Gostaria de nadar entre elas.
– Só olhar. – Nahla a segurava pelo braço. Depois seguiram por uma área também nova para Liara, com plantas de cores e formas mais bonitas que já havia visto.
– São corais. – Explicou ela. – E aquilo são anêmonas. Envenenam e matam com aqueles tentáculos. Não se aproxime delas. – Liara se afastou rapidamente.
– Não precisa ter medo. É só não chegar perto destes tipos e tudo está bem.
– Sim, mas é melhor voltarmos agora.
Pararam nas pedras para descansarem.
– Nahla, obrigada. Nossa, foi inesquecível. E obrigada também por me ensinar sobre as anêmonas e as águas-vivas. Não sabia que existiam estas espécies e poderia ter me machucado sozinha.
– Nossa terra tem perigos como a de vocês, mas quando você conhece e entende como funciona percebe como é perfeito, como todas as espécies se complementam em um ciclo que visa a continuidade de todos.
– Entendo. Existem outras espécies perigosas assim?
– Algumas. Mas não tem com que se preocupar. Posso te ensinar o que precisa saber e também a se defender.
– Obrigada. Quero sim.
Voltaram por dentro d´água agora, muito mais rápido do que nadando. Despediram-se um pouco antes da praia e Liara saiu meio entontecida. Com aquele eram três mundos que conhecera cada um totalmente diferente do outro. Era muita informação e sentiu-se um pouco confusa.
– “Quantos mundos diferentes existirão?” – Perguntou-se. Vagamente imaginou se existiria um mundo só como pessoas como ela. Balançou a cabeça para não pensar nisto e voltou ao mundo real.
Tinha que conversar com Mundo antes dos outros. Se conseguisse convencê-lo, ele ajudaria com os demais. Mas Mundo estava ocupado com o navio e Liara teve que traduzir durante quase toda tarde. Só no final do dia conseguiu arrastá-lo até a praia, onde sentaram com Neve observando o por do sol na linha do horizonte.
As cores chegavam diluídas pelo brilho do Urká nas paredes e seu reflexo na água e mesmo assim era um grande espetáculo.
– Mundo, você já ouviu falar em Nereidas?
– Não. O que é isto?
– Seres do mar. Metade peixe e metade como nós.
– Sereias.
– Sereias?
– É como chamamos nas estórias. Mas não existem realmente. São apenas contos antigos.
– E o que falam?
– São seres muito perigosos. Elas são belíssimas e sua voz seduz os homens no mar, arrastando-os para o fundo e matando-os. Mas nunca ninguém viu uma de verdade. São apenas estórias.
Eu vi uma. – Falou como se fosse algo banal.
– Você o quê?
– Encontrei uma delas nas pedras.
– Pelo amor de Itshara, Liara! Diga que não é verdade! – Ele parecia enlouquecido, passando as mãos pelos cabelos como costumava fazer quando ficava nervoso.
– Está tudo bem. Estou aqui, não estou? Ela é boazinha.
– Boazinha? Uma sereia? – Ele riu. – São os seres mais perigosos de todo o mar. Ela vai te arrastar com ela para o fundo do mar.
– Já arrastou. E sobrevivi. Esqueceu que viro peixe?
– Ela te levou para o fundo? Ó céus! Liara! Está proibida de nadar sozinha de novo. Aliás, está proibida de nadar. Não vou deixar ninguém ir com você se tem uma sereia por perto.
– Espere, escute.
– Não vou escutar mais nada. Você é uma criança, não entende! Vamos falar com Serg agora. – Falou com voz autoritária, segurando seu braço.
– Seu estúpido! – Ela retirou o braço com um puxão e saiu correndo, aos prantos. Foi até a cabana do chefe. Ele ouviria. Entrou correndo e ainda chorando jogou-se em seus braços.
– Chefe, chefe. – Ele a pegou e levou ao peito, acariciando seus cabelos.
– O que foi, menina Liara? Machucou-se?
– Esta doida encontrou uma sereia e acha que é boazinha, pai. – Mundo falou às suas costas.
– É verdade, menina? – Liara confirmou, fungando.
– Que perigo. Ela te machucou? Tentou te levar com ela?
– Ah, você também? Ela é boazinha. É minha amiga. Não vai me fazer mal. Porque não acreditam?
– Sereias não são boazinhas, Liara. – Ele falou pausadamente.
– Podem me escutar, por favor? – Ela gritou, desesperada. E a contragosto concordaram em ouvir.
Contou tudo, desde que a ouviu cantar até o momento em que se despediram perto da praia.
– Não sei se podemos acreditar nela. – Mundo falou.
– Pode ser um truque.
– E se quando estiver aqui começar a cantar e levar a todos nós para o fundo do mar? – Era Branca Flor que entrara ao ver Liara correndo.
– Não vai fazer isto. Ela falou que não levam mais pessoas para viver em Tritis porque não deu certo das outras vezes.
– Tritis?
– A cidade em que vivem. É seu nome.
– E ela te convidou para ir lá?
– Sim, mas…
– Está vendo? É isto que ela quer! – Falou Mundo como se fosse a comprovação que precisava.
– Não estou aqui? Já não encontrei com ela duas vezes e não voltei em ambas? Acham que não podia ter me levado se quisesse? Bastava cantar e eu a seguiria.
– Pode estar querendo mais, pode querer todos nós. – Branca falou.
– Não sejam bobos. Ela poderia simplesmente ter vindo aqui e cantado, se fosse isto que quisesse.
– É verdade. – Ponderou Mundo, alisando o queixo, pensativo.
– E ela disse que pode conferir o mapa. Disse que sabe onde é a Terra dos Gigantes e também a Terra do Fogo.
– Não sei. Não podemos confiar em Sereias. – Mundo ainda relutava.
– Bom, filho, poderia ser uma grande ajuda com o mapa. – Ponderou o chefe.
– Mas dizem que só de olhar para ela as pessoas já ficam encantadas. – Era Pata de Urso. A esta altura toda a família estava ali. Serg também, curioso, sem entender. Liara fez um sinal, dizendo que depois lhe explicaria.
– Ela é linda. – Concordou Liara. – Mas se pudesse vestir a thuga seria inofensiva. E ela concordou em não cantar.
– E acredita nela? – Branca também estava em dúvida.
– Sim. Acredito. Tudo que quer é passar algumas horas conosco, ver como vivemos. Não teria porque matar todos nós. O que ganharia com isto?
– É o que elas fazem. É a natureza delas. – Era Cavalo Selvagem, o irmão menor deles.
– Ah, desisto. Façam como acharem melhor. – Liara estava frustrada. Saiu com Serg e foram para o acampamento. Não quis contar o que houve. Ele também ficaria assustado e não iria deixar que voltasse ao mar. E também Lene.
Liara foi dormir triste ao ver que não apenas não conseguira convencer nenhum deles como ainda estava proibida de nadar. Ficou pensando em como Nahla ficaria desapontada amanhã e demorou a dormir.
Quando acordou, antes mesmo de ir ao acampamento Serg a chamou para saber o motivo do choro.
– E foi isto, Serg. Não sei por que não acreditam em mim.
– Não é por mal. É porque é criança e não sabe ver os perigos da vida.
– Mas não era mais criança ainda quando ajudei o Mundo?
– Sim, mas agora estamos falando de uma espécie que reconhecidamente é má.
– Serg, você também? – Ela começava a fazer cara de choro de novo e ele amoleceu.
– Bom, vamos até o chefe. Vou ver o que podemos fazer. – E recebeu um imenso sorriso, seguido de um daqueles abraços de caranguejo.
Afinal Serg conseguiu convencê-los a autorizar a visita, dentro de severas medidas de segurança que incluíam, além da thuga e da ausência de canto para a sereia, um pouco de cera nos ouvidos para os Gigantes. Não muito. Apenas o suficiente para diminuir a audição. Liara foi autorizada a ir ao encontro naquela manhã e combinar os detalhes para o domingo, dali a dois dias. Dois deles ficariam na praia com os ouvidos tampados e ela não deveria se afastar, permanecendo ao alcance da visão.
– Desculpe por isto, Nahla. São meio exagerados comigo.
– Levando em consideração que é um pouco verdade o que dizem sobre nosso povo, não tiro a razão deles. Tudo bem.
No domingo, após trocar de roupa, Liara foi buscar a amiga, levando sua própria thuga.
– Nossa! Como você fica bonita sem aquele negócio! – Ela falou ao vê-la com a tanga e os enfeites dos Gigantes.
– Aquele negócio está aqui e agora é você quem vai usar. – Aproximou a thuga de Nahla e ajustou-o até que ficasse com uma aparência correta.
– Como conseguem viver com isto? Que ruim!
– Você acostuma. E também não é tão ruim assim, lá fora, onde vivemos e que é sempre tão frio. É bom ter thuga lá.
– Pode tirar de cima dos olhos? Não consigo ver direito assim.
– Tudo não, Nahla. Espere, vou arrumar. – E esticou ao máximo, deixando a thuga quase transparente.
– Melhorou. Obrigada.
A aldeia em peso estava na praia para recebê-la, a curiosidade maior do que o medo. Liara e Nahla saíram devagar, para lhes dar tempo. Liara não queria provocar nenhum tumulto. Logo viu que não havia motivo para receio. Eles a receberam de forma muito gentil. O chefe entregou-lhe enfeites cheios de flores para a cabeça e pescoço e foram até sua cabana, tomar refrigerantes, comer doces e conversar.
– Estou com muito calor! – Nahla falou após uma hora de conversa.
– Podemos tomar um banho de mar e voltar. – Propôs Liara, entendendo perfeitamente o que ela sentia. No caminho de volta, liberou parte de suas pernas e braços, subindo-lhe a thuga.
– Acho que isto não vai matá-los. – Concluiu. Na segunda ida ao mar, soltou os ombros e a thuga das pernas foi até metade das coxas. – Acho que assim está bom. Os Gigantes não falaram nada e continuaram normais, assim, na terceira ida a thuga foi dividida ao meio, virando uma bermuda e um top curto. – Deve ser o máximo que conseguiremos hoje.
– Você é danada! – Ela falou, divertida. – Mas estou bem melhor assim, obrigada.
Depois do lanche, foram examinar os mapas.
– Aqui. Esta ponta está errada. É maior. Até aqui, mais ou menos. É difícil adaptar o que vi a um desenho tão pequeno, mas penso que o restante está bem aproximado.
Então havia mesmo uma imensa distância entre o lugar em que estavam e suas terras de origem. Mundo ficou chateado. Ainda tinha uma pequena esperança de que fosse próximo, mas tinham sido jogados da costa de um continente para o início de outro, encaixados em uma falha rochosa.
Liara olhou o mapa com atenção pela primeira vez, tentando entender.
– Este pontinho somos nós?
– Sim. E aqui, do outro lado, é onde moramos. Aqui, veja. E ao lado, aqui, estão as Terras do Fogo. E deste lado, o oposto, a Montanha Nevada. Precisava ver como é bonito, tudo, Liara. A nossa terra é colorida, florida e a temperatura é sempre morna e agradável. As Terras do Fogo são vermelhas e quentes, com lagos de puro fogo e caminhos negros que levam ao topo onde vivem os dragões e fica o ninho da Phoenix. A Montanha Nevada é o completo oposto: ela é alta, muito, muito alta, o pico é sempre branco de neve e a base tem florestas de pinheiros e muitas outras árvores, em todos os tons de verde. E lá é sempre frio, quanto mais alto se vai, mais frio é.
– Deve ser bonito, tudo. – Liara tentou imaginar, apesar da pouca referência que possuía de tudo que mencionava. Neve. Como seria? E um lago de fogo líquido? Uma floresta inteira cheia de árvores verdes. – “Isto deve ser realmente incrível.” – Pensou, lembrando-se das raras árvores que tinham por ali.
– E os outros lugares? – Aqueles pontos que Mundo mostrara ocupavam uma parte minúscula do mapa.
– É o restante do Reino de Rut. São outros mundos, muitos outros. Eu não conheço todos.
– Liara, veja aqui. É a Cidade do Sol. Está vendo o mar? Se você sair daqui indo em linha reta, assim, chegará em Tritis.
– A Cidade do Sol, ninho da Phoenix? – Foi Mundo quem perguntou.
– Sim, embora nunca ninguém tenha encontrado seu ninho, dizem que é lá. Você já viu a Phoenix. – Ela quis saber.
– Eu já voei nela. – Falou Branca, toda exibida.
– Pensamos que era só uma estória. – Comentou Nahla.
– Assim como pensávamos de vocês. – Respondeu Branca, fazendo-os rir.
– Nahla, você conhece todos os outros lugares do Reino? – Liara queria saber.
– Não. Só os que são na costa, perto do mar, lógico.
– E vocês, Gigantes?
– Também não. Nunca saímos de nossas terras. – Mundo respondeu. – Mas sei que aqui é a capital do Reino. – Apontou um ponto relativamente próximo de onde estavam. – É uma cidade gigantesca. A mais evoluída de todas. O centro de todos os mundos. Rutai.
– E onde vivem aqueles como eu? Alguém sabe?
– Aqui. Floresta Eterna. Lar dos Elfos desde o princípio dos tempos. – Nahla mostrara um ponto entre a Montanha Nevada e Rutai.
– Será que vim dali?
– Pode ser, mas também pode ter vindo de outros lugares. Existem Elfos em todos os reinos.
– São muitos, Nahla?
– Infinitos praticamente. E as raças também. De todos os tipos e tamanhos. Tanto nos costumes quanto na aparência. Seres totalmente azuis, por exemplo, como os Esrinfs, ou tão pequenos que cabem na palma da mão, como as pequenas fadas de Liftin, ou feitos de pedra ou que moram em árvores gigantescas. Você ficará maravilhada se um dia sair daqui, Liara.
– Acho que não deveria continuar vendo este mapa e ouvindo estas coisas. – Serg disse quando ela traduziu. – Não quero que fique confusa. E sabe que é proibido, não?
Liara mudou de assunto, propondo um jogo na praia.
– Liara, não sabe o quanto agradeço por este dia. – Nahla disse ao se despedir, no início da noite. – Foi um dos melhores dias de minha vida.
– Todos os domingos serão, Nahla. Enquanto estiver aqui. – Foi o chefe Anajé quem ofereceu.
– Obrigada a todos. São muito gentis. – Ela agradeceu. – Infelizmente devo retornar daqui á alguns dias. Já estou há muito tempo longe de casa.
– Ah… – Liara não pensara que partiria tão cedo. Pensou que ficaria para sempre ali e agora percebia que era lógico que teria que voltar.
Ainda temos alguns dias, Liara. Amanhã cedo nos encontramos?
– Sim. – Falou pensativa.
Ficou calada o restante da noite pensando nos outros mundos e na partida da amiga.
– “E em algum momento o barco ficará pronto e também Mundo e os Gigantes partirão.” – Compreendeu.
Eles a haviam convidado para ir com eles, mas não poderia. Não enquanto Iá vivesse.
– “Será que algum dia verei Nahla e eles novamente? Será que sairei de Sur realmente?” – Melhor seria aproveitar a companhia deles enquanto estavam ali, concluiu.
– “Deixarei para ficar triste quando partirem.” – Lembrando-se do que Loua ensinou sobre viver o fato e não a expectativa.
Ela convenceu a amiga a ficar até o próximo domingo. Sua mãe viria passar o final de semana com ela e queria que se conhecessem. Também seria a primeira vez que Ani a veria com as roupas dos Gigantes e estava um pouco ansiosa. Ter a companhia de Nahla para desviar um pouco sua atenção seria bom.
Os Gigantes tinham gostado muito de Nahla e estavam mortificados por terem julgado tão mal a moça e queriam fazer uma grande festa de despedida, também para comemorar a vinda de Ani, o que não surpreendia Liara. O Chefe Anajé comemorava tudo e qualquer coisa. Bastava ter um motivo qualquer para justificar.
Queriam fazer um traje para Nahla e houve uma discussão sobre ela poder usá-lo ou não sem a thuga e corajosamente decidiram que enfrentariam a tentação. Apenas sua tanga seria maior, com uma pequena saia de fibras e também enfeitariam a parte de cima, além de todos os outros adereços. Seria uma surpresa e Liara passou os próximos dias com Branca, decidindo sobre o modelo e acompanhando sua elaboração.
Ani chegou no sábado de manhã. Como sempre que acontecia depois de algum tempo sem vêla, Liara surpreendeu-se com sua aparência, achando-a ainda mais frágil e velhinha. Gostaria de estar com ela todos os dias. Imaginou como sua vida devia estar solitária agora, sem a Cala e sem ela e disse a ela.
– Imagine! Eu também pensei que com você aqui teria tempo para fazer algumas coisas que vivo adiando e que nada! Eles fazem uma verdadeira peregrinação em minha casa. Mal sai um e já está chegando outro. Todos com a desculpa de estarem passando por ali. Não me deixam fazer praticamente nada em casa. Sempre tem alguém para lavar, varrer e cozinhar. Se quer saber, estou a ponto de não abrir mais a porta. Não suporto ser tratada como inválida! – Reclamou.
– Bom, assim fico mais tranquila, Iá. Estava com tantas saudades! – Abraçou a mãe, ternamente.
– Eu também, menina. Eu também. E você, já não está cansada de ser paparicada por aqueles grandalhões? – Brincou.
– Ah, Iá. Tenho uma nova amiga. Vocês vão se conhecer amanhã. É Nahla, uma Nereida. Os Gigantes chamam de sereia. Não precisa ficar assustada, ela é boazinha. – Falou sobre como se conheceram e sobre sua visita à aldeia.
– Vou gostar de conhecer. Ela tem sua idade?
– Não. Ela parece ter menos de 20 anos, mas me falou que tem muito mais. Não disse quanto, só que eles vivem bem mais do que nós.
– Interessante. E Serg aprovou?
– Sim. Ele participou também. Serg é bonzinho, Iá. E parece gostar de mim, de verdade. Já não tenho medo dele.
– E este rapaz? Como cresceu! – Estava fazendo carinhos em Neve.
É tudo o que ele ama, carinhos. Vive se esfregando em mim, querendo que coce sua cabeça. – Liara observou o animal, com os olhos fechados de prazer. – Mas acho que ele tem algum tipo de trauma, porque não posso me afastar que começa a chorar.
– Deve ser por causa da família. Vai passar com o tempo. É só ter paciência.
– Sim. É tão bonito, não é Iá? – Ele tinha crescido bastante desde que se encontraram pela primeira vez e estava realmente muito bonito. Seu pelo era curto, mas não excessivamente e muito macio. As pequenas orelhas às vezes, como agora, ficavam dobradas pela metade e nestes momentos era de derreter o coração de tão bonito. – Não consigo resistir a ele quando faz isto.
– É um sedutor. – Ani riu ao comentar. – Onde está Lene?
– Estou aqui, Senhora. Não queria atrapalhar. – Ela surgiu na entrada da cabana e abraçou Ani.
– Oras, nunca atrapalha. Quero que me conte tudo sobre nossa menina. Liara, vá passear com Neve enquanto nós duas conversamos um pouco. – Liara não gostou, mas foi e quando voltou ela já estava esperando para visitarem a aldeia.
Os Gigantes adoravam Ani, a quem chamavam de Grande Mãe e cercaram-na em festa. Ani ria e cumprimentava um a um. Depois foi ver o navio, cuja construção já era o esqueleto completo.
– Que imenso! Acho que me perderia lá dentro.
– Não deixaríamos. – Respondeu, galantemente, o chefe. Ele gostava de flertar com ela de brincadeira.
Liara contou os planos para o domingo, mas não quis mostrar-lhe sua roupa. Queria que visse só amanhã, já totalmente vestida, junto com Nahla.
Acordou cedo, ansiosa para ver Nahla com as roupas que fizeram. Esperou a mãe levantar e seguiram para a caverna com Serg. Eles dois ficaram para trás, conversando e andando mais lentamente enquanto Liara disparava na frente. Seguiu direto para a cabana de Branca, onde se trocariam e pediu que levasse sua mãe para a cabana do chefe, para que não visse antes da hora. Depois foi buscar a amiga no mar, levando sua thuga para que vestisse até chegar à cabana.
Nahla olhou a roupa demoradamente, pegou as peças uma a uma nas mãos, examinando todos os detalhes. Tinham usado várias pérolas entremeadas com conchas e penas muito brancas e ficara quase tão bonita quanto as de Liara. Aquele exame lento, sem comentários começou a preocupa-la.
– O que foi? Não gostou?
– É linda! Estou emocionada, só isto. Um trabalho tão delicado! Tem certeza? Será que devo mesmo usar?
Certeza absoluta! Eles confiam em você. Mesmo que fiquem um pouco tontos no começo, acham que vão se acostumar até o final do dia.
– Vou fazer o possível para não falar muito. – Ela prometeu séria e fez Liara rir.
– Acho que vão sobreviver. Vamos, vista. – Ajudou a amiga a colocar as peças, incluindo o arranjo para o cabelo, uma tiara muito delicada, quase toda em pérolas. Quando terminaram, parou para olhar o resultado.
– Ah, não sei não. Talvez tenha sido uma má ideia mesmo.
– Ficou feio assim?
– Pensei que não seria possível que ficasse mais bonita, porque já é assim deslumbrante, mas ficou! – Nahla sorriu, confirmando a vaidade que mencionara em seu primeiro encontro.
– Vamos às feras então.
Entraram juntas na cabana que já estava cheia e barulhenta. Assim que as viram, fez-se silêncio. Elas foram até o chefe e ele estava também mudo. Ficaram um pouco constrangidas e olharam ao redor. Todos continuavam parados e Liara viu que alguns tinham lágrimas nos olhos e um por um estenderam-se à frente de Nahla, em uma profunda reverência.
– É como uma visão do paraíso. – O chefe conseguiu falar, mais como um pensamento que escapa.
– Ah, também não exagerem. É só a Nahla, ok? – Mundo pareceu despertar do transe coletivo e ajudou.
– Isto mesmo, pessoal. Levantem, vamos. – Eles levantaram-se, ainda meio hipnotizados e alguns balançaram as cabeças para sair do transe.
– Nahla, desculpe-nos, por favor. Tenho certeza de que compreenderá. Nunca vimos um ser tão formoso e perfeito.
– Tudo bem, Chefe. Podemos comer? – Ela sugeriu, para desanuviar. E o café ajudou muito. Alguns ainda não conseguiam desviar o olhar e nem comeram, mas aos poucos o clima de festa se restabeleceu.
– Nahla, esta é minha mãe, Ani. – Apresentou Liara.
– Estou honrada em conhecer você. Não acreditaria se tivessem me contado. – Falou Ani.
– Pensavam que éramos apenas invenções de estórias antigas, não é?
– Sim. E estou feliz em ver que não é. E também de que é amiga de Liara.
– Eu sempre tive esta vontade, de passar algumas horas ou dias na terra seca, como se fosse um de vocês e graças a sua filha estou fazendo isto. Não tenho como agradecer.
Ela faz estas coisas impossíveis acontecerem. Como fez com Mundo. Pena que tenha que partir tão rápido.
– Sim, mas voltarei antes dos Gigantes irem embora.
– Volta mesmo? – Liara nem acreditava de tão feliz.
– Sim. Com certeza. Os peixes me contarão do andamento dos trabalhos aqui e assim que a partida estiver próxima virei me despedir deles.
Mais tarde Nahla perguntou sobre Pássaro Suave. Notara o olhar de Mundo para a ex-noiva. Liara contou-lhe a história toda.
– O povo de Liftin poderia ajudar. Eles têm a magia de encolher e aumentar.
– Quem?
– As pequenas fadas. São seres minúsculos e talvez ainda mais belos que nós. E eles têm um pó mágico que jogam nas pessoas para fazerem-nas diminuir para poderem entrar em seu reino e depois jogam o pó novamente para voltarem ao tamanho normal.
– Mas será que funciona só para aumentar?
– Sim, sim. Com certeza. Seu amigo ficaria do mesmo tamanho dos irmãos se usasse o Pó de
Liftin.
– Tenho que contar a ele. Onde elas vivem? Será que ele pode ir até lá?
– Hum, não sei. O que tem que entender é que cada raça possui um dom único e também uma forma de defesa. Nós temos nossa beleza, seja do físico ou da voz. Vocês, Elfos, podem mudar de forma. Eles têm o poder do tempo. Não sei se esta é a expressão correta, mas eles podem estar aqui e ali, não possuem nem um local fixo e nem o tempo no reino deles transcorre da mesma forma. Alguém que entra em seu reino e fica por lá algumas horas, quando sair pode perceber que se passaram vários anos ou apenas um minuto. É complicado visitá-los. Primeiro tem que encontra-los e se conseguir, quando sair não se sabe quanto tempo terá passado.
– Nossa! Mas como se faz para encontrá-los?
– Dizem que eles é que te encontram quando querem. Eu os encontrei uma vez, mas não cheguei a entrar no seu mundo. Eles é que foram ao nosso porque estavam com um problema que precisava da ajuda de nosso pai. E o que soube é isto: se você quiser encontrá-los, basta desejar e se eles também quiserem, irão ao seu encontro.
– Será que viriam aqui?
– Ah, não sei. Este lugar em que vivem é especial. Nunca conseguimos entrar nele. Aliás, foi isto que me chamou a atenção. Antes, aqui só tinha um paredão de rocha. Quando vi esta entrada fiquei muito curiosa.
– Nahla, Mundo precisa deste pó! Temos que conseguir!
Mas você não pode sair. Eu vivo no mar. Mundo também está preso aqui e nunca sai do seu mundo. Aliás, não é estranho?
– O quê?
– Nosso encontro. Três raças diferentes, todos presos de alguma forma em seus mundos. Você aqui, eu no mar e ele lá. Nenhum de nós é livre para conhecer todos os outros reinos. Não totalmente ao menos.
– Caramba, é mesmo! – Ficaram alguns segundos pensando no assunto.
– Mas, voltando ao assunto. Tem alguma ideia? – Liara perguntou.
– Não. Agora não. Mas posso ver com meu pai se há alguma forma de conseguir o pó. Quando voltar talvez traga boas notícias. – Liara contentou-se com essa possibilidade.
– Bem, então é melhor não contarmos nada a ele por enquanto. – Imaginou a alegria de Mundo se Nahla conseguisse. Nem acreditaria. – “Coitado. Ele merece isto.” – Pensou, lembrando-se de tudo pelo que passara e de estar o tempo todo trabalhando pelos outros, incansavelmente, ao invés de ficar chorando pelos cantos.
– Vamos chamá-lo aqui? Quero dar um presente a vocês dois, em agradecimento por estes dias.
– Ah, Nahla, não precisa. Você é quem nos presenteou. – Mas ela já acenava e ele vinha.
– Aqui. Ela abriu uma concha que sempre trazia consigo e mostrou três pérolas grandes. Deu uma a cada um deles, ficando com a outra.
– Encantei as pérolas para refletirem nossas emoções. Assim poderemos saber sempre uns do outros.
– Como assim?
– Minha cor é a azul, a sua, Liara é a verde e a de Mundo é a laranja. Enquanto estivermos bem, nossas pérolas manterão a cor natural, levemente rosada. Se um de nós estiver com algum problema elas mudarão de cor e quanto mais escuras, mais sério será. E pela cor, saberemos a quem se refere.
– Mas funciona mesmo?
– Pode acreditar. Fazemos isto há séculos, sempre que alguém sai de viagem. Minha família sabe que estou bem desta forma, assim como eu também tenho acompanhado as pérolas que trouxe.
– Nahla, que ideia maravilhosa! Obrigada.
– E tem mais uma coisa: se um de vocês jogar sua pérola próximo ao mar, eu saberei e entenderei como um chamado. E irei ao seu encontro.
Ah! – Liara virava a pérola sob os olhos, sem acreditar direito. Mas, se ela podia fazer as coisas que fazia, porque Nahla também não poderia fazer aquilo? – Vou guardar com muito cuidado.
– Obrigado, Nahla. Gostei muito do presente. Ficarei muito mais tranquilo depois, sabendo que minha amiguinha e você estão bem. Vou fazer uma bolsinha e carregar sempre comigo.
– Gostaria de ter mais o que dar para vocês, mas estando longe de casa, é só o que posso oferecer.
– Ah, e nós? Não te demos nada.
– Engano. Deram-me esses dias e suas amizades. Não sabe como é difícil para nós conhecermos pessoas fora do mar. Quero que sejamos amigos para sempre.
– Amigos para sempre. – Liara disse colocando a mão dela entre as suas.
– Amigos para sempre. – Disse Mundo colocando também suas mãos.
Depois deste pacto, voltaram para junto dos demais e o dia passou rapidamente. Ao principiar da noite fizeram a fogueira e começaram a tocar os instrumentos para danças e cantos.
Alguns Gigantes queriam ouvir Nahla cantar. Como ela não sairia dali não haveria problema. Mesmo que ficassem encantados, depois de algum tempo o encanto passaria e então ela poderia ir embora.
– O que acha, Nahla? – Mundo perguntou.
– Eu gostaria muito de ouvir, querida. – Falou Ani.
– Eu também. – Concordou Serg.
– E eu. – Juntou-se o chefe e logo era um coro.
– Bem, se vocês acham que não haverá problema.
– Seria bom se tivesse alguém para ajudar, se for o caso. – Ponderou Liara. Todos concordaram e sortearam um dos Gigantes para ficar com cera nos ouvidos, além dos dois que estavam de guarda na entrada da caverna.
Sentaram-se em círculo com Nahla ao centro. Liara e Ani de um lado, o chefe Anajé, Mundo e seus irmãos de outro, seguidos pelo restante da aldeia.
Talvez o termo cantar não se aplique ao que Nahla fez, porque foi mais com um transpirar de alma que saia pela boca, suave e delicadamente. Era um som muito baixo que a princípio quase não ouviam. Tão lento, que podiam saborear sem pressa cada nota, cada movimento. O som entrava, não pelos ouvidos, mas por todo corpo e se transformavam em células a pulsar no mesmo ritmo da melodia.
Aquele som sem palavras, sem letra, apenas ritmo e doçura parecia conter sensações, cheiros, muito familiares que remetia cada um deles a uma lembrança particular a que seguiram,
deixando-se embalar como se em um sonho, revisitando lugares há muito esquecidos, revivendo acontecimentos perdidos na poeira do tempo, mas que percebiam serem especificamente os momentos realmente significativos de suas vidas, pelo que haviam lhes acrescentado em beleza e magia. Podia ser apenas a imagem de um sorriso, uma mãe ao ver o olhar do filho pela primeira vez, o rapaz ao ouvir sua esposa dizendo sim, um abraço, um por do sol. Simples ou complexas, as imagens passavam pelas mentes de cada um.
Nahla juntou palavras aos sons e as imagens desapareceram tornando-os apenas sensações que ela produzia e conduzia. Prazer suave, bem estar que entrava em ondas e levava-os como o mar. Um bem estar tão intenso e tão belo que cortavam a respiração com o receio de que o mais leve movimento a interrompesse e que foi crescendo gradativamente e levando-os a uma emoção que beirava o insuportável.
Quando pensaram que não conseguiriam suportar mais uma única nota, a canção mudou, fazendo o caminho inverso, acalmando as sensações e sentidos até concluir, mar sereno à beira da praia.
Fez-se silêncio após o término. Todos pareciam em transe. Ninguém queria ou ousava se mexer, querendo reter, prolongar aquela sensação ao máximo. Infelizmente ela foi partindo aos poucos, segundo a segundo. Alguns começaram a chorar baixinho pela sensação de perda que sentiram ao voltarem à realidade, ao momento presente. Outros continuaram quietos, relembrando, tentando pegar de volta os sentimentos que avistavam ainda próximos, como penas que flutuassem ao vento.
Foi o chefe quem conseguiu primeiro reagir. Não falou. Prostrou-se aos pés de Nahla e foi seguido pelos demais. Quando falou apenas conseguiu agradecer.
Ficaram ainda algum tempo juntos, em silêncio e em paz, ouvindo os ruídos da fogueira que queimava, das ondas que quebravam na praia, das folhas das palmeiras que se agitavam e todos os outros sons daquela noite. Palavras pareciam inúteis, pobres e sem sentido. Estavam em paz e bem.
Em algum momento Nahla levantou-se e foi em direção à praia. Liara a seguiu e foram em silêncio até a beira do mar.
– Nahla, minha amiga, foi tão bonito. É difícil expressar.
– Não se preocupe. Eu entendo. Estava cantando sobre o que senti ao lado de vocês e acho que consegui transmitir ao menos uma parte de meu bem estar. Fico feliz.
– Contarei a eles. Obrigada.
– Eu voltarei, minha amiga. Espero que antes que imagine. Fique bem. Cuide-se.
– Estarei aqui, esperando. Você também. Tome cuidado na volta. Vou ficar de olho em sua pérola.
Elas se abraçaram ainda uma vez, demoradamente, antes que Nahla entrasse no mar. Liara ficou olhando até que desapareceu, já com saudades.
Não se preocupe, querida. Ela voltará logo. – Sentiu a mão de Ani em seu ombro e abraçou-a. Serg estava com ela e também Neve.
Voltaram à aldeia que aos poucos recuperava movimento e voz e Liara trocou de roupa para irem embora.
O chefe, ainda emocionado, pegou-a no colo em um abraço carinhoso de agradecimento e levou-a assim até a entrada da caverna.
– Acho que devemos nos considerar privilegiados por ter presenciado este momento. – Falou Serg.
– Parece que toda minha vida valeu a pena, só por isto. – Concordou Ani.
Liara, envolvida em uma mescla de emoções, sentia paz e tristeza ao mesmo tempo. Preferiu ficar quieta, preservando a sensação de ter Nahla consigo até dormir.
Os próximos meses até a conclusão do navio foram tão agitados que muitas vezes Liara voltava àqueles domingos idílicos em busca de alguma calma.
O inferno começou com a chegada de Loua. Arrogante e prepotente como sempre, fez uma série de exigências quanto à sua barraca, sem nunca estar satisfeito com nada. Liara tentou acalmar Lene e Serg, que em pouco tempo já arquitetavam planos de vingança.
– Ele é assim, meio maluco, mas é por causa da magia. Procurem entender. – Suplicava.
– Para mim isto tem outro nome e é falta de educação e grosseria. – Retrucou Lene.
– Passou dos limites. – Serg concordou enfaticamente.
– Bom, mas agora ele já tem tudo que quer, não é? Cama, colchão extra macio, travesseiros e colchas de penas.
– Esqueceu-se da comida especial com suas próprias receitas. – Ela lembrou.
– Por favor? Eu preciso dele. – Implorou.
Eles olharam um para o outro e suspirando, concordaram.
– Por você, menina, mas só por isto. Ele que não faça mais nada ou vai receber uma bolacha de minhas próprias mãos, para aprender a se comportar.
– Pode deixar que eu mesmo dou. – Assegurou Serg.
– Obrigada. Vou falar com ele. – Liara saiu, preparando-se para enfrentar Loua, enquanto Serg e Lene se olhavam preocupados.
– Isto não está me cheirando bem. O que este engomadinho pode ensinar à nossa menina?
Serg concordou distraído. – “Nossa menina.” – Pensava. Quando Liara teria se tornado a filha que nunca teve e nem ela. Olhou-a carinhosamente.
Ele nem se preocupava mais com transformações ou revoluções. Estava em paz, depois de tanto tempo e tudo graças à Liara. Se não fosse por ela, não teria conhecido Lene. E foi por amá-la tanto e se preocuparem juntos que começaram a olhar um para o outro.
Pena que ela não pudesse realmente ser a menina deles. Planejavam casar tão logo os Gigantes partissem. – “Mas quem sabe no futuro? Ani está tão velhinha.” – Pensou.
Liara chegou à cabana de Loua e respirou fundo antes de entrar.
– Loua, você precisa parar com isto. Está deixando todos loucos com suas exigências! – Ela disse de supetão, antes de perder a coragem.
– Só estou pedindo o mínimo, para compensar a vida sem conforto deste lugar.
– Pois se queria conforto, porque se ofereceu para vir?
– Por você, Liara. Por você.
Eu estava muito bem sem você. – Precisava dele, mas não podia deixar que soubesse ou ficaria ainda mais exigente.
– Escute uma coisa: você é excepcional. Realmente excepcional. Acha mesmo que deixaria que estes selvagens – e não estou me referindo aos Gigantes – atrofiassem seu talento?
– Tudo bem, Loua. Você está aqui e tudo que pediu foi feito. Só que agora é hora de parar e começar a se preocupar comigo, já que foi por isto que veio.
– Ok. Ok. – Ele levantou as mãos em sinal de rendição.
– Ótimo. Eu tenho as manhãs para estudar e algum tempo à noite. Está bem para você?
– Não. Porque não podemos fazer exercícios juntos lá na caverna?
– Porque eu estarei ajudando Mundo e você vai atrapalhar.
– E o que vou fazer durante as tardes?
– Faça… Oras, faça alguns artefatos mágicos! – E saiu, antes que ele pudesse retrucar.
Loua seria responsável por seu aprendizado também nas outras matérias, que a cada ano eram mais difíceis. Para começar, no final do ano precisava entregar um artefato próprio, criado e construído por ela. O que exigia mais do que magia. Ela precisava aprender algo de forja, de corte, de fazer modelos, desenhar moldes e cortá-los, juntar as peças e tudo mais que fosse necessário para executar uma ideia.
Linguagem e Escrita começavam a incorporar magia e se há algo que é muito, muito difícil é escrever magia. Muito mais do que pensar magia, ela sabia. E havia ainda as outras matérias todas. Medicina, Matemática, Natureza e Elementos e por aí afora. Eles teriam que organizar muito bem os horários para acompanhar tudo. Ao menos era o que ela pensava.
Ficou claro, logo às primeiras aulas, que Loua só se interessava por magia. As outras matérias eram sempre relegadas ao último plano.
– De novo! – Insistia apesar do cansaço de Liara.
– Loua, não consigo. Vamos tentar outra coisa. – Estavam tentando a invisibilidade móvel pela centésima vez. Por mais que Liara já tivesse tentado sozinha por um ano, ele se recusava a acreditar que não era possível.
– Muito bem. Então à distância. – Liara suspirou. Outra impossibilidade. Ele queria que ela deixasse um alvo invisível à distância, sem tocá-lo. E ela simplesmente não conseguia. Tinha que tocar o objeto para conseguir.
– “Droga!” – Praguejou em pensamentos antes de começar a tentar novamente.
– Concentre-se! Você está dispersa. Esqueceu os exercícios? Não pense em outra coisa. Pense apenas nisto. Sinta-o, imagine que está invisível. Alcance-o com sua mente.
– “Talvez seja isto!” – Ela teve a inspiração. Imaginou sua mão estendendo-se e tocando o pedaço de Ká que ele tinha nas mãos.
– Veja, está quase. Ficou mais claro! Estamos progredindo. Mais uma vez.
Liara saia das sessões mentalmente exausta. E alegrava-se pelas horas em que ficaria livre de Loua.
A caverna estava frenética, mas era uma atividade puramente física, que não a cansava.
Gigantes e Surs iam de um lado para o outro, o tempo todo. Os Gigantes ajudavam os Surs na extração de UrKá, que já chegara à caverna, esgotando tudo que estava na primeira gruta. Ao mesmo tempo, outro grupo de Gigantes e Surs montavam o navio sob as ordens do construtor chefe.
Era uma monstruosidade aos olhos de Liara. Muito, muito grande. Qualquer embarcação para os Gigantes já seria naturalmente grande, mas aquela comportaria todos eles – e eram mais de uma centena – e, devido ao tempo em que navegariam, tinha aposentos para descanso, para armazenagem dos animais, suprimentos e água.
No topo ficava o convés, com uma parte aberta e limpa, onde podiam se movimentar durante o dia e outra fechada para os depósitos e um pavimento abaixo ficavam os dormitórios e os bancos para remarem. Na verdade, os dormitórios e depósitos ficavam em um pavimento intermediário, que ocupava parte do subsolo e parte de um nível elevado do convés.
A estrutura estava pronta, o esqueleto. Agora faltava cobrir o esqueleto e todo o acabamento, além dos remos, timão e outros instrumentos. Ela pensou que o principal estava feito, mas Mundo disse que o mais demorado era o que faltava.
Tudo isto sem contar que era o primeiro navio de ambos os grupos e ainda teriam que fazer testes de navegação antes de ter certeza de que estava pronto. Ele calculava que com sorte conseguiriam partir até o final do ano. Parecia muito tempo e ela ficou contente.
Nos momentos em que tudo estava encaminhado, eles conversavam, sem ter muito que fazer. Às vezes Liara nadava, mas não sentia tanta disposição, agora que Nahla se fora. Mundo percebia sua tristeza e às vezes levava-a para vê-lo atirar com seu arco.
– Você gosta disto? Quer aprender? – Perguntou, vendo seu interesse.
– Seria legal, mas este seu arco é imenso, não conseguiria.
– Tem razão, mas podemos fazer um pequeno para você. Quer?
– Quero! – Ela sempre se animava com novidades e ele ficou contente em perceber que já conhecia tão bem a amiga.
– Vou pedir para fazerem um especial para você e também flechas menores. Daqui a uns dois dias ficará pronto.
Liara mal podia esperar e quando ele trouxe seu arco, pegou-o nas mãos com todo cuidado, com receio de estragá-lo.
– Ei, pode pegar direito? – Ele mostrou-lhe como segurar, onde colocar cada mão, a postura do corpo, como segurar a flecha no local correto e como mirar.
– Solte! – Ela soltou e a flecha caiu pouco além de seus pés. Ele riu.
– Pare de rir ou não vou mais aprender.
– Desculpe. É que foi engraçado. – Ele ficou o mais sério que conseguiu e explicou. – Você tem que puxar a corda com mais força, para dar o impulso. Veja. – E atirou com seu arco.
Liara avançou um pouco mais com a segunda flecha e cada uma parecia um pouco melhor. Ela vibrava.
– Isto é bom!
– Vai ver como é bom quando acertar o alvo. É maravilhoso. E com o tempo conseguirá acertar alvos que se movem ao longe. É a melhor sensação do mundo!
– Deve ser mesmo. – E lançou mais uma flecha.
Ficou viciada. Não podia esperar por uma oportunidade e lá estava ela treinando. Andava a tarde inteira com seu arco e só não o levava à noite porque na escuridão da Vila não conseguiria acertar em nada.
Pensou em arrumar um lugar para treinar lá fora. Imaginou que poderia iluminar uma área com lampiões e um grande alvo em uma árvore. Logo desistiu, lembrando-se de Loua, que não a deixava em paz. Assim que surgia ele vinha, pronto para mais algumas séries de exercícios. Felizmente Lene ou estavam sempre por perto e conseguia jantar e descansar um pouco antes de juntar-se a ele ou teria que comer no meio de algum exercício.
– Que tal tentarmos alguma transformação hoje?
– Loua, acho que não é assim que funciona. Não temos muitos animais aqui. Quer que me transforme em uma cabra? Ou em um cachorro?
– Qual o problema? O importante é que você domine este dom, que consiga transformar-se em qualquer animal que deseje.
– Não consigo imaginar-me como um cachorro ou uma cabra.
– E em que se imaginaria?
– Ah, gostaria de ser uma ave. Uma das grandes. E voar.
– Mas não consegue.
– Porque não sei como são. Como posso imaginar que sou uma ave se não sei como ela é?
– Então, porque não tenta um passarinho pequeno, destes que temos por aqui?
– Porque já tentei. Acho que não funciona porque são muito pequenos e eu sou muito grande. Transformar não é diminuir. Não a este ponto ao menos.
– Liara, você é frustrante. Percebe que não evoluímos absolutamente nada?
Ela ficou quieta. Era verdade. Porque tudo que ele queria parecia totalmente impossível.
– Se você quisesse que eu fizesse coisas maiores ficarem invisível ou qualquer coisa com o Ká, seria mais simples. E avançaríamos mais.
– Todos podem alterar ou mudar o Ká. Você pode mais do que isto.
– Estamos avançando na invisibilidade à distância, não estamos?
– Muito menos do que gostaria.
– Está bem, Loua. Vou tentar com mais empenho amanhã, prometo. – Foi mais para apaziguálo. Não tinha como se empenhar mais.
Para ajudar, os construtores começaram a discutir com os mineradores. A retirada do UrKá da caverna estava atrapalhando a iluminação, uma vez que eles refletiam a luz do exterior. Nem a intervenção de Serg resolveu e foi preciso chamar os anciões novamente e somente após a decisão da assembleia a extração foi pausada.
Isto significava dúzias de mineiros parados por meses no acampamento, sem nada a fazer além de discutir por nada, além de Gigantes inativos dentro da caverna, querendo ajudar e atrapalhando.
Quando a situação ficou mais ou menos tranquila, descobriram que o ambiente onde ficariam os remadores era um forno e ainda por cima mal iluminado. Ninguém havia pensado em fazer aberturas para iluminação e ventilação e tiveram que cortar as folhas já encaixadas da cobertura e acrescentar janelas que podiam ser abertas por dentro.
E assim que isto foi resolvido surgiu outra questão complicada: esqueceram-se da cozinha. Tão acostumados eram às fogueiras que não pensaram que o Ká era altamente inflamável. Foi preciso construir uma cozinha em um dos cantos do convés e instalar nele um fogão de Sur, com isolação mágica contra fogo.
Depois pensaram na questão das velas que Nahla mencionara existir em todos os navios que tinha visto. Ela explicou como apanhavam o vento, inflando-se e ajudando os navios a avançarem. Tinham discutido e acharam que não seria necessário. Agora, vendo o tamanho e peso do navio, acharam que reduziria em muito o esforço nos remos e decidiram fazer.
Precisariam da lã de muitas cabras para conseguir o tecido necessário para elas. O que já era um problema por si só, visto que o rebanho do reino era pequeno, normalmente mal sendo suficiente para suprir as necessidades de Sur. E como em todas as questões polêmicas, metade foi contra, metade a favor e os anciões vieram novamente.
E sendo a questão muito simples – se o navio não fica pronto, os Gigantes não partem. Se não partem, não se extrai Urká e ainda tem-se que sustentar a todos – ficou decidido que cada habitante doaria um pedaço de pano, mesmo que usado. E montaram as velas, toda remendada e em vários tons de preto e cinza.
Como se estes problemas fossem poucos, Pássaro Suave declarou-se para Mundo, dizendo que não queria casar com seu irmão, mesmo que este fosse grande e o futuro chefe. Eles tentaram esconder durante um tempo, mas logo ficou claro que estavam profundamente apaixonados, gerando um grave problema entre o chefe e o curandeiro, pai dela e também com Pata de Urso. Ele já estava ressentido por conta do sucesso de Mundo com a solução dos problemas da aldeia, que o colocara novamente no páreo para a disputa da sucessão e agora perdia a noiva para o irmão.
Pata de Urso sabia que a chefia e a noiva eram originalmente destinados a Mundo, mas não achou justo que lhe fossem prometidos e depois retirados e exigiu que seu pai cumprisse com a palavra.
O chefe Anajé viu-se em uma situação extremamente complicada, pois gostava de ambos os filhos. A solução tradicional seria uma luta entre os dois, mas, como Mundo poderia lutar com o irmão, dois metros a mais do que ele? Decidiram por um torneio de habilidades que incluíam natação, corrida, arco e flecha, arremesso de lança e escalada e que aconteceria tão logo o navio estivesse pronto. O clima ficou pesado na aldeia com Pata de Urso vira e mexe atacando Mundo através de comentários irônicos sobre seu tamanho ou força.
Diante de todos estes problemas Liara acabava por preferir as aulas de Loua. Ainda que desgastantes, eram silenciosas. E, surpreendentemente, Loua fora favorável ao aprendizado do arco. Como ela entendeu posteriormente, foi só porque percebeu mais uma oportunidade de desenvolvimento de sua magia.
Loua queria que ela direcionasse a flecha com sua magia, de forma que ela atingisse perfeitamente o alvo. Ela estava melhorando, mas não o suficiente. Foi quando Loua teve a ideia de fazer arco e flechas de Ká, um material muito mais reagente ao controle pela magia do que a madeira utilizada pelos Gigantes.
E este foi o primeiro artefato desenvolvido por Liara. Foram muitos moldes e protótipos falhos até pensarem em usar o Urká. Ele tinha a leveza ideal e as flechas pareciam levadas pela própria mão de Liara até o alvo. O arco final era leve apesar de grande para seu tamanho. Liara achava mais fácil lidar com um arco maior. As flechas tinham pontas afiadas e não em seta e eram lisas até o final. Isto porque precisavam recuperá-las depois do disparo e desta forma garantiam menor adesão.
Na verdade, o Urká penetrava as superfícies mais sólidas como se fosse manteiga, mas Liara não queria estragar algumas delas por se engancharem em alguma pedra ou madeira.
Logicamente Loua não considerava grande coisa que conseguisse acertar um alvo imóvel com estas flechas. Queria que fizesse o mesmo com flechas comuns e que com as de Urká, conseguisse acertar alvos em movimento. E sendo ambos difíceis, Liara treinava cada vez mais. Primeiro porque era um desafio que queria vencer, segundo pela pressão de Loua e terceiro porque apresentaria o arco e as flechas como seu projeto de final de ano.
Eles também tentavam melhorar a forma de seu peixe.
– Ridículo! – Loua dissera quando vira pela primeira vez.
E ainda praticavam a invisibilidade à distância e o aumento do raio de alcance, para atingir áreas cada vez maiores e também objetos múltiplos e dispersos, o que era particularmente exaustivo. Frequentemente Liara saia completamente molhada de suor das sessões.
– Isto não está nada bom. – Disse Lene para Serg vendo-a chegar à cabana aos tropeços de tão cansada. Serg olhou, preocupado.
Um domingo Liara não conseguiu levantar da cama para ir à caverna e foi a comprovação de seu estado de absoluto esgotamento, pois não havia nada com que ela tivesse mais prazer do que nestes dias em que podia tirar a thuga e simplesmente divertir-se com os amigos. Ela dormiu o dia inteiro, acordando apenas para comer e ir ao banheiro.
– Loua, não pode continuar exigindo tanto dela.
– Não se metam. Eu sou o responsável por sua educação.
– É mesmo? Não tinha que cuidar de sua educação em todas as matérias? Nunca vejo Liara estudando outra coisa que não seja magia. – Falou Lene.
– As outras matérias podem esperar.
– Não podem e não vão. – Explodiu Serg. – Você pode ser o responsável por sua educação, mas eu sou responsável por sua segurança e Lene é responsável por sua saúde. E nós dois não estamos contentes e de amanhã em diante será diferente.
– Vocês não podem se intrometer.
– Não só podemos como vamos. De amanhã em diante você ficará com ela durante cinco horas por dia e usará uma hora para cada matéria. Nem um minuto a mais ou a menos. Eu supervisionarei. E as noites serão livres, para que ela descanse ou faça outra coisa que desejar. – Vou reclamar aos anciões.
– Ah vai? Ótimo. Eles ficarão bem contentes em saber como está privilegiando magia sobre as outras matérias. – Lene provocou.
– Ao menos mais duas horas a noite, para nossos exercícios. – Ele tentou negociar.
– Não. Nem mais cinco minutos. – Recusou Serg.
– Se não estiver satisfeito, pode pegar o rumo da cidade agora mesmo. – Ajudou Lene.
– Ignorantes! Não entendem o que faço. – Entrou resmungando em sua própria cabana. Lene e Serg riram, aliviados.
– Teremos que ficar de olho nele. – Serg estava um pouco preocupado.
– Sim, mas não se preocupe. É cachorro que ladra e não morde. – Ela assegurou.
Loua continuava a praguejar em sua cabana.
– Cambada de ignorantes! Asnos! Burros! Imbecis!
É lógico que não entenderiam. Ninguém ali poderia entender. Loua estava acostumado. Desde pequeno percebeu a imensa distância que havia entre ele e os Surs. E prosseguiu desenvolvendo sua inteligência, aumentando o potencial de sua mente, praticamente sozinho. Ele não achava que era mais inteligente do que eles, tinha certeza de que era o ser mais inteligente que existira em todos os tempos entre os Surs. E muito mais inteligente do que qualquer um deles poderia sonhar ser algum dia.
Se estivesse fora dali, poderia fazer qualquer coisa: ser o maior de todos os magos, enriquecer, conquistar posições. Tudo! O mundo estaria ao alcance de suas mãos. Ele seria admirado por muitos. Seu nome entraria para a história.
Mas ele estava ali. Preso aquele mundo de puritanos religiosos, aqueles tolos fanáticos que não enxergavam um palmo à frente do nariz. E ele teve que dar aulas para aqueles arremedos de gente, aquelas crianças ranhetas e desprezíveis por ano e anos.
Nunca deixou de procurar uma saída. Investigou várias possibilidades e testou toda sorte de magias. Infelizmente não conseguiu se aproximar mais do que qualquer outra pessoa da barreira e nem descobriu outra forma de sair.
Então Liara surgiu. Alguém de fora que entrara. Ele soube que ela significava a liberdade. Não sabia como ou quando, mas sabia que iria acontecer. Quando começou a dar aulas para ela e viu sua inteligência e potencial para a magia tão incrivelmente superior aos dos Surs, sentiu a impaciência aflorar e quase não falava com ela durante as aulas por receio de se trair.
Os Gigantes foram quase que uma consequência inevitável. Era lógico que ela provocaria mudanças e ali estava: sua chave para a liberdade. Planejava ir com o navio dos Gigantes. Ainda não sabia como, mas conseguiria. Quando estivesse fora da maldita cortina de névoa poderia ir para outro lugar, longe daqueles nativos incivilizados.
E, se isto falhasse, construiria seu próprio barco e iria só. E, apenas por prevenção, continuaria desenvolvendo o potencial de Liara, levando-a ao seu máximo. Se havia alguém que poderia desfazer a mágica da cortina era ela, embora ainda não soubesse. Mas, ele, Loua, sabia. E a levaria a isto, se fosse necessário.
Já estava há meses naquele acampamento de peões, longe do conforto de seu lar, passando por todo tipo de privação e humilhações e até agora não conseguira aproximação com os Gigantes. Mal podia descer à Caverna e Serg o mandava de volta.
E os domingos? O que fariam lá, durante todo o dia? Porque ele não podia participar?
Ele tentara entrar e ao ver dois gigantes de guarda na porta teve certeza de que havia algo muito errado, pois eles não faziam isto nos outros dias. Ele esperaria por uma falha. E ela aconteceria. Pois se tinha certeza de algo era da capacidade destes seres menos evoluídos de falharem. Eles sempre falhavam. Sempre.
E ele estaria lá e aproveitaria a menor distração para entrar e saber o segredo que guardavam tão bem.
– “Mas não resolve meu problema. Tenho que entrar no navio e planejar meu esconderijo. Entrar no navio no dia da partida será fácil. Será uma bagunça e ninguém prestará atenção em mim.” – Decidiu que forçaria sua presença na caverna. Uma desculpa. Tudo que preciso é de uma desculpa para estar lá.
Na tarde seguinte apareceu na caverna. Serg mandou-o embora.
– Serg, estive pensando e acho que muito de minha impaciência é porque não tenho nada a fazer durante as tardes. Deixe-me acompanhar os trabalhos do navio. Acho muito interessante. Prometo não falar com Liara e não atrapalhar ninguém.
– Se isto for uma desculpa para pressioná-la…
– Pode ficar tranquilo. Não é.
E cumpriu com sua palavra. Não apenas ficou em silêncio, observando, durante toda a tarde, como não procurou por Liara a noite. No dia seguinte, ensinou uma matéria a cada hora, pacientemente. Serg achou que era melhor deixa-lo ficar na caverna e logo se acostumaram tanto com sua presença silenciosa que se tornou praticamente invisível.
O navio estava quase pronto. Já começavam os preparativos para a partida. Um primeiro teste com o navio foi marcado e Liara começou a afligir-se com a ausência de Nahla. E o principal motivo era a diferença na coloração da pérola, que checava todos os dias.
Sua cor mudara do rosado natural para um azul muito pálido e parecia ficar cada vez mais claro. Ela não sabia como interpretar. Se ficasse mais escuro, ela tinha dito, é porque algo ruim está acontecendo. Saberia que estava em perigo ou doente. Mas, e mais claro? O que significava? Que estava feliz?
– O que acha, Mundo?
– Não sei. É como se estivesse desaparecendo.
– Será que está bem?
– Só podemos esperar e torcer para que volte.
Os dias se passaram sem alteração, em uma fase de calmaria, apesar da intensa atividade na caverna. Liara viu os Gigantes começarem a empacotar o que levariam e começou a entender de forma real que eles iriam embora. Não haveria mais Mundo ou Branca Flor ou qualquer Gigante em sua vida quando se fossem. E nem caverna ou acampamento. Ou Lene e Serg. Estranho como aquela vida em tão pouco tempo se tornara mais real do que a vida na cidade. Era sua vida e seu lar e pensar que acabaria a deixava entristecida, embora entendesse que não poderia continuar para sempre e que os Gigantes tinham que retornar à sua própria terra.
– Porque não vem conosco? – Mundo perguntou?
– Não posso. Por causa de Iá e também, sei lá, tudo.
– Tudo o quê?
– Ah, a magia principalmente. Loua e eu estamos evoluindo e sei que tenho muito a aprender ainda. E também… Vocês não acreditam em Ur. É esquisito.
– Sua mãe não poderia ir conosco?
– Não. Sem chances. Mesmo que sobrevivesse à viagem, seria muito difícil acostumar a outro tipo de vida.
– Sim. Concordo. Sei que é importante para você entender seus dons, saber até onde pode ir. Mas pense nisto. Se for conosco estará em Rut, poderá ir a qualquer lugar futuramente e talvez saber mais sobre sua origem.
– Eu sei. Penso nisto. Mas não posso ir. Não agora.
– Talvez não tenha outra oportunidade.
– É estranho, mas sei que acontecerá. Não sei se vou sair. Mas tenho certeza de que saberei mais sobre meus pais ou porque vim parar aqui.
– Sentirei sua falta. – Ele falou. Liara jogou-se em seus braços.
Eu também. – Mundo era seu melhor amigo, praticamente o único que já tivera. Seria muito triste não poder conversar com ele. Verdade que tinham as outras pessoas, mas eram todos adultos. Era diferente. E também, Mundo era diferente como ela. Eles se entendiam. Era como se o fato de ambos serem diferentes fosse um elo, uma linguagem própria que ambos entendiam e por isto se completavam.
– Não chore. Voltaremos a nos encontrar. Posso vir te visitar ou se você sair pode ir nos encontrar. Agora vamos, Branca está nos chamando para o lanche.
Algumas semanas depois fizeram o primeiro teste de navegabilidade. Liara foi impedida de ir por Serg. Só os Gigantes. Nenhum Sur. O navio saiu lentamente, cruzou a “boca” da caverna e afastou-se, diminuindo gradativamente. Fez a volta após algumas horas e chegou à praia parando no mesmo ponto de onde saíram, sem qualquer problema.
Agora restava apenas embarcar tudo que precisariam e a partida foi marcada para dali a doze dias. Eram apenas mais dois finais de semana, sendo que o último seria um dia antes da partida, após a festa de despedida, com o torneio dos irmãos e que culminaria no casamento com Pássaro Suave, embora não se soubesse qual dos irmãos seria seu par.
– Não tem como resolver isto de outra forma? – Ela perguntou a ele.
– Não. Eu tentei, mas Pata de Urso exige que seja assim. Para ele é tudo ou nada.
– E quais são suas chances?
– Não sei. Sou mais rápido do que ele, mas ele é maior, tem mais força. Pode ser que eu perca. Não me importo com a chefia, mas Pássaro Suave… Não sei o que será de nós se eu perder.
– Ele gosta dela mesmo?
– Não. É só pelo que significa. Não serão felizes juntos. Mas ele não se importa.
– E não dá para dividirem? Ele fica com a chefia e você com Pássaro Suave?
– Complicado…
– Posso tentar falar com o chefe.
– Não. Não adianta. Terá que ser resolvido assim.
E o último domingo chegou, muito mais rápido do que Liara desejava. Ani viera no dia seguinte. Queria estar presente à despedida dos amigos.
O torneio seria realizado ainda de manhã, logo após o café da manhã. Liara examinou novamente a pérola que guardava no pescoço em um saquinho que ganhara de Branca e viu que continuava azulada. Era quase certo agora que algo acontecera com sua amiga e que ela não viria. Entristecida e preocupada desceu à caverna, junto com Serg.
O torneio seria composto pelas provas de natação, corrida, arco e flecha, arremesso de lança e escalada. Deslocaram-se para a praia, onde seria a competição.
A primeira prova foi arremesso de lança, no qual Mundo era considerado imbatível. Entretanto Pata de Urso era mais alto e com mais força nos braços conseguiu enterrar sua lança poucos milímetros a mais do que Mundo. Recebeu poucos aplausos e ela percebeu que não era tão bem visto pela aldeia.
A segunda prova, Arco e flecha era o domínio de Mundo. Haviam treinado juntos durante meses e ela sabia da invencibilidade do amigo, pois mesmo sem magia ele ganhava dela, sempre. Não foi surpresa que ficasse muito à frente do irmão. E recebeu numerosos aplausos.
A terceira prova foi a de corrida. Eles iriam de uma ponta a outra da praia e o que chegasse primeiro seria o vencedor. Pata de Urso venceu com suas pernas imensas e fortes. Liara estava muito preocupada agora. Bastaria que ganhasse mais uma prova para derrotar Mundo. Olhou para Pássaro Suave e ela estava pálida, com os lábios apertados e segurando as lágrimas. Foi com apreensão que acompanhou a próxima disputa.
Eles deveriam escalar nos paredões da caverna e chegar até as pedras da entrada, onde Liara e Nahla se conheceram. Mundo e ela haviam feito aquilo algumas vezes e Pata de Urso era muito pesado para ser tão ágil. Mundo chegou às pedras quando Pata de Urso ainda estava um terço do caminho atrás. Os juízes e ele ficaram esperando até que os alcançassem.
Loua aproveitou este momento em que todos estavam distraídos para entrar na Caverna. Estivera acampado à entrada, sabendo que se não conseguisse entrar naquele momento provavelmente não entraria mais e perderia sua chance.
Viu quando as sentinelas foram se aproximando aos poucos da praia e entrou furtivamente, escondendo-se atrás dos pilares e palmeiras. Não havia ninguém próximo ao navio e subiu correndo a escada de acesso. No navio, já planejara tudo de antemão e escondeu-se em um barril que previamente esvaziara. Depois que estivessem longe poderia ser descoberto, mas então não haveria mais nada a ser feito. Certamente o chefe não o jogaria ao mar. Teriam que aceitá-lo como hóspede e uma vez em terra seguiria seu caminho até a cidade mais próxima.
Na praia a tensão era grande. Com duas vitórias cada um, a prova de natação seria decisiva. Nadariam das pedras até a praia e o primeiro que chegasse até o chefe seria o sucessor e também o marido de Pássaro Suave.
Ambos estavam receosos. Mundo nadara muito nos últimos meses, acompanhando Liara, mas o irmão tinha mais força nos braços, além de ser um excelente nadador. Pata de Urso achava que ganharia, mas havia uma possibilidade de que perdesse e não queria arriscar.
Ao sinal de largada pularam da pedra mais alta e começaram a nadar emparelhados e assim se mantiveram até metade do caminho. Neste ponto Pata de Urso sabia que eram avistados muito vagamente tanto da praia quanto da pedra. Sem uma palavra agarrou seu irmão pelo pescoço com um dos braços e mantendo sua cabeça dentro d´água continuou a nadar para não despertar suspeitas. O afogamento de Mundo seria considerado uma fatalidade que logo seria esquecida e ele ficaria livre de sua sombra.
Mundo agitava-se tentando escapar daquele abraço de ferro, sem conseguir. O irmão era muito forte e ele estava sem ar.
“Vou morrer.” – Entendeu. O rosto preocupado de Pássaro Suave surgiu em sua mente e lembrou-se da conversa que tiveram na noite anterior. Ela não confiava em Pata de Urso e pedia-lhe que tomasse cuidado.
Procurou concentrar-se e conseguiu pegar os testículos de Pata de Urso com os pés. Pressionou-os tanto quanto conseguiu e o irmão soltou-o com um urro de dor. Mundo nadou desesperadamente, tentando impor alguma distância entre eles. Se chegasse à praia estaria salvo.
Seu irmão conseguiu agarrar um de seus pés, puxando-o para trás. A plateia já percebia que algo estava errado e alguns já se preparavam para entrar na água. Pata de Urso se esquecera destes. Só lhe interessava matar Mundo, não deixar que voltasse vivo. Ele contaria ao pai e ele estaria perdido.
Mundo lutava para liberar o pé, ao mesmo tempo em que continuava nadando. Sabia que não conseguiria. E em um confronto físico ele não poderia ganhar jamais. O irmão agarrou seu outro pé e agora nada mais podia fazer exceto preparar-se para o confronto.
– Mundo. – Ouviu chamarem seu nome baixinho. Nahla vinha nadando, já quase ao seu lado.
– Nahla!
– Derrame isto nele, rápido. – Jogou-lhe um vidrinho que caiu a poucos dedos de suas mãos e submergiu. Ele mergulhou e conseguiu pegá-lo, um segundo antes do forte puxão que o levou à superfície, fortemente contraído no peito de Pata de Urso.
– Pata de Urso, pare. Não precisa fazer isto. Somos irmãos.
– Irmãos! Você sabe o que é ser o segundo, sempre? Viver na sua sombra? Pensei que estava seguro, quando nosso pai escolheu-me para a sucessão e ganhei Pássaro Suave como noiva, mas você tinha que sair e voltar como herói, não é?
– Foi para nosso bem!
– Para o seu bem. Eu não me incomodaria de ficar aqui para sempre. E com o tempo encontraríamos uma solução, construiríamos nosso navio sem estes pequenos nojentos.
– Não é verdade. Sabe que morreríamos de fome sem a ajuda deles!
– Não era sua função. Era minha!
– Por favor, irmão. Vamos até a praia. Fique com a chefia da aldeia. Não importa.
– E acha que eles deixarão? Não vê como te amam? Acha que não percebi os aplausos quando você ganhou?
– Então vamos governar juntos, você e eu. Eles aprenderão a te amar.
– Não. Você vai morrer. Agora.
Preparou-se para afogar Mundo, afastando-o de seu corpo. Mundo aproveitou os poucos segundos e apoiando os pés no peito dele, ganhou impulso para elevar-se, despejando o conteúdo do frasco em sua cabeça.
– O que é isto? – Perguntou ele ao ver o pó que despejava, soltando-o enquanto tentava espanar o pó para longe de seu corpo.
Mundo afastou-se um pouco e viu o irmão diminuir de tamanho até ficar igual a ele e não quis perder tempo, recomeçando a nadar. Pata de Urso berrou colérico e saiu em seu encalço. Chegaram praticamente juntos à praia, mas em um ponto distante de onde eram aguardados e próximos ao navio.
Lutaram na areia. Agora suas forças se igualavam e Pata de Urso perdia. Ele atingiu Mundo com um soco que o deixou desacordado. Correu para o navio e jogou um barril em sua direção.
– Morra!
Sua voz despertou Mundo a tempo de jogar-se para um lado, escapando por um triz do barril pesado. Tentou levantar-se e desviar ao mesmo tempo dos outros barris que se seguiram. Felizmente Pata de Urso não era tão bom em pontaria e Mundo conseguiu chegar onde estava.
Pata de Urso pegou um pedaço de madeira pontiagudo e tentava acertá-lo, mas Mundo esquivou-se e subiu pelas cordas até alcançar o mastro principal do navio. Pata de Urso ainda tentava cortar a corda quando Mundo caiu sobre ele, jogando-se do alto. Com o impacto foram ambos ao chão, mas Mundo foi amortecido pelo corpo do irmão e conseguiu prender suas mãos, pressionando-o contra o piso.
Neste momento os Gigantes conseguiram chegar a eles e Pata de Urso foi rapidamente dominado e seguro por dois deles.
– Pata de Urso, eu não quis acreditar em meus olhos, filho. Como pode tentar matar seu irmão? – A voz do chefe Anajé era trêmula. Pata de Urso não respondeu.
– Traição! – Disse um deles.
– Traição! – Responderam todos em coro.
– Ele deve ficar aqui, sozinho. – Alguém propôs.
– Sim. Não merece voltar conosco. – Concordavam.
– Pai, irmãos. O que Pata de Urso fez foi indigno de nossa aldeia, mas ele é nosso problema. Não seria justo com nossos benfeitores que o deixássemos aqui, com eles. – As vozes se calaram a estas palavras de Mundo.
– E o que sugere, filho de meu coração. – Perguntou o chefe.
Ele agora tem meu tamanho, graças a ajuda de nossa amiga Nahla. Não oferecerá perigo. Levemos-o conosco e deixemos-o viver como eu vivo. Será uma boa lição.
– Sim. – O coro de aprovação encerrou o assunto. Chefe Anajé mandou que o prendessem no navio até a partida.
– Mundo, Nahla apareceu? – Liara perguntou.
– Sim. Está no mar. – Foi o que bastou para que ela entrasse na água, pulando do navio.
– Liara, cuidado! – Ele falou tarde demais.
– Nahla, Nahla. – Liara chamava em sua mente.
– Oi. – Ela apareceu a seu lado sorrindo e abraçaram-se felizes.
– Nahla! Pensei que não viria! Estava preocupada com a cor da pérola. O que houve?
– Vou te contar tudo, mas antes, preciso de minha roupa de Gigantes. Não posso sair nua. Pode pegar para mim?
Liara foi e voltou rapidamente. Enquanto isto os Gigantes, retornando à aldeia, encontraram Loua ferido em meio aos escombros dos barris despedaçados.
– O que ele faz aqui? – Mundo perguntou a Serg, que também não sabia responder. As sentinelas esconderam-se, voltando ao posto, mas não antes que todos vissem.
– Depois falamos com vocês. – O chefe prometeu.
– Ajudem-me a levar este infeliz de volta ao acampamento, por favor. Precisa de cuidados médicos. – Serg pediu. Quando tentaram mover Loua, perceberam que estava com vários membros quebrados e improvisaram uma maca. Dois Gigantes pegaram nas pontas e foi levado ao acampamento, junto com Serg.
No centro da aldeia encontraram Nahla já vestida, junto com Liara.
– Nahla! – Mundo abraçou-a, rodando com ela.
– Calma, assim ela fica tonta, seu bobo. – Reclamou Liara.
– Desculpe. – Ele parou, constrangido. Nahla apenas riu.
– Estou feliz em encontrá-los também!
A aldeia rapidamente transformou-se em uma alegre confusão, com todos falando ao mesmo tempo, comentando sobre os últimos acontecimentos. O chefe teve que ordenar silêncio e fazê-los sentar para conversarem com calma.
Mundo contou como tudo acontecera.
– Eu sei que ele foi errado, mas é meu irmão. Entendo o que sentiu porque também me senti colocado de lado. Imploro para que o perdoe, pai.
Depois do que houve não posso negar-lhe um pedido. Eu o perdoo, mas ele passa a ser sua responsabilidade de hoje em diante. – Mundo assentiu.
– Meu filho, você provou ser digno de chefiar seu povo e será meu sucessor. Pássaro Suave é sua noiva, por direito. – Vivas irromperam entre os Gigantes e o chefe ordenou o início das comemorações, com música e dança. Pássaro Suave ergueu Mundo e beijaram-se sobre aplausos.
– Nahla, toda nossa aldeia está em débito com você. Muito obrigado. – Disse o chefe.
– Mundo é meu amigo. Vi o que estava acontecendo e fiz o que tinha que fazer para salvá-lo. Não precisa agradecer. – Ela falou, olhando os noivos abraçados.
– Quando sai daqui fui para casa e encontrei um portador do mundo de Liftin à minha espera. Leena, a rainha do reino das fadas, solicitava minha presença em uma audiência. Um portal estava à minha espera e mal tive tempo de abraçar meu pai e minhas irmãs antes de entrar.
– Uau! Que emocionante!
– Sim, muito. Saí nas portas do reino e fui diminuída para poder entrar. Ah, Liara, é tão bonito! Parece um sonho.
– E o que ela queria? – Ela perguntou.
– Fiquei tão surpresa quanto acho que ficarão. Ela sabia de vocês todos e de Liara, de tudo. Ela queria ajudar.
– Por quê? – Mundo quis saber.
– Disse que foi amiga da mãe de Liara.
– Minha mãe? Ela contou algo sobre ela?
– Não. Disse que não podia contar nada exceto a você. Pediu para dizer que a procure se um dia sair daqui. Enviou um presente. Aqui. – Estendeu uma pequena bolsinha.
Era feita de um tecido tão leve que parecia desmanchar-se nas mãos e tinha uma alça longa. Liara colocou-a atravessada no peito.
– Que bonita. – Falou admirando todos os minúsculos bordados de flores, árvores e minúsculos seres com asas que pareciam querer voar para fora do tecido.
– Ah, mas não é apenas bonita. É uma bolsa das fadas. – Liara não entendeu.
– Elas são famosas em todo o reino! Nunca ouviu falar?
– Não.
– São mágicas. Você pode guardar tudo dentro desta bolsa. Ela disse que precisaria dela. Veja. – Nahla pegou o imenso arco de Liara. Sua ponta mal cabia na boca da bolsa e Liara viu incrédula como foi tragada inteiramente para dentro, desaparecendo.
Mas, como??
Magia. Este é um dos talentos próprios das fadas: diminuir e aumentar. E veja, não está cheia. Pode colocar muito mais aí dentro.
– E para tirar daí?
– Ponha a mão e pegue seu arco. – Liara pôs os dedos dentro da bolsinha que parecia vazia e sentiu algo entre os dedos. Puxou-os para fora e saiu com seu arco.
– Oh! Que incrível!
– Sim. Incrível mesmo. É um item muito valioso. Pouquíssimos conseguem uma bolsa destas. Cuide bem dela.
– Sim. Claro. – Falou ainda boquiaberta de espanto.
– E depois ela deu-me dois vidrinhos com poções. Disse que eram para Mundo. Um foi o que lhe dei durante a luta, de encolher. E o outro. – Remexeu em uma sacola que trazia consigo. – Uma poção de aumentar. Acho que não precisa beber tudo porque você já é grande. Tome só um gole. – Mundo olhou incrédulo para o vidrinho.
– Vou crescer?
– Sim. – Nahla sorriu. – Beba!
– Eu…
– Seu bobo, beba logo! – Ajudou Liara percebendo como estava confuso.
Mundo bebeu um gole, deixando metade no vidro e tapou-o. Todos olharam em expectativa.
– Acho que não funcionou. Será que devo beber o restante? – Mal falou estas palavras e começou a crescer rapidamente. Em poucos segundos ficou ligeiramente mais alto que seus irmãos e parou. – Pássaro Suave chorava compulsivamente, escondendo o rosto entre as mãos. Os homens disfarçavam a emoção e as mulheres logo estavam chorando também. Todos sabiam o quanto ele havia sofrido por causa do tamanho.
– Você está tão alto. – Liara murmurou entre as lágrimas. Ele pegou-a e levou até o alto. – E agora? – Isto quebrou um pouco a emoção e os Gigantes começaram a rir juntos. Mundo ajoelhou-se à frente de Pássaro Suave.
– Pássaro Suave, você, que é a ave mais rara de toda aldeia, aceita este Gigante como seu esposo?
– Sim. – Ela falou e beijaram-se embaixo de aplausos estrondosos.
Os Gigantes começaram a comemorar. A música irrompeu alegre e festiva. As danças eram sucessivas com cada um tendo sua vez de demonstrar seu talento.
Liara estava abraçada à mãe que ainda chorava, emocionada.
Que bonito!
– Sim, mamãe, mas pare de chorar. Todos estão felizes.
– Eu sei, estou tentando. – A velhinha tentou sorrir e desabou em lágrimas novamente. Nahla e Mundo chegavam.
– Nahla, minha mãe não pára de chorar.
– Deixe-a. Chorar é bom, desanuvia o coração.
– Nahla, porque a pérola ficou azul clarinho? – Perguntou Mundo.
– Eu não sei. Estive no reino de Liftin por poucas horas e quando entrei no portal já sai aqui, perto da luta.
– Sério? Poucas horas? Passaram-se meses desde que partiu! – Ele comentou.
– A pérola deveria estar refletindo meu afastamento deste mundo.
– Sim. Pode ser.
– E ela não falou nada mais sobre eu ou minha mãe? – Liara perguntou angustiada.
– Não, Liara. Apenas, pelo jeito como falou, percebi que gosta muito de você. Deve ter gostado muito de sua mãe.
– Ela disse que foi amiga de minha mãe. Será que não é mais? Será que minha mãe está morta?
– Sim, falou no passado. Não sei, Liara. Talvez sua mãe esteja em outro lugar apenas.
– Pode ser.
– Liara, faço novamente o convite: venha conosco. – Mundo falou. Ela olhou nervosa para a mãe.
– Querida, se acha que deve ir, não serei eu a impedir.
– Mas, mamãe…
– Liara, você quer ir? – Ela interrompeu.
– Eu quero. Saber de minha mãe, conhecer a cidade de Nahla, o reino das fadas. Lógico que quero. Mas não agora. Algum dia. Agora quero ficar com você e continuar a estudar.
– Talvez não tenha a mesma chance no futuro, querida. – Ani falou.
– Poderá aprender com seu povo, Liara, com os elfos. Existem muitos como você, lá fora. – Nahla completou.
– Eu não sei. – Estava dividida. Lá fora encontraria as respostas que procurava e talvez encontrasse um lugar junto com os seus, mas estaria sozinha, sem a mãe. Nahla não poderia ir com ela e nem Mundo, agora que se casaria e seria chefe.
Você pode voltar se não gostar. Eu te trago de volta. – A sereia falou.
Vá, querida. – Falou Ani, esforçando-se para não demonstrar tristeza.
– Eu poderia mesmo voltar? – Pensou que talvez pudesse ir e voltar rápido. Apenas encontrar a rainha, saber de sua mãe e voltar para Ani e para a segurança de sua casa.
– Sim. Se Nahla não a trouxer, nós a traremos em um dos dragões. – Mundo completou.
– Talvez eu vá, então. – Ainda estava em dúvida, mas a mãe a abraçou em apoio e fez um gesto com a cabeça para os dois, que se afastaram.
– Não sei, mamãe. Não sei se é o certo.
– Liara, nós não sabemos por qual razão veio para nós, mas sabemos que seu lugar não é aqui. Já pensou que Ur pode ter trazido os Gigantes aqui apenas para que tivesse esta chance?
– Mas posso fazer isto depois. Sempre poderei sair por aqui.
– Sim, mas agora pode fazer isto acompanhada de seus amigos, protegida.
– E você, Iá? Como posso deixá-la?
– Você foi um presente em minha vida, minha criança. Deu-me mais felicidade do que tive em toda vida. Foi como Ur agradeceu-me por ter vivido para seus filhos. E sou grata pelo tempo que tivemos.
– E ainda podemos ter. – Completou Liara.
– Não. Eu estou muito velha. Meu tempo está chegando ao fim. Preocupo-me com seu destino quando eu partir. Como viverá sozinha? Quem cuidará de você?
– Tem Serg e Lena. Posso viver com eles. Mas não agora. Você ainda viverá muitos anos comigo, não é Iá? – Estava chorando agora.
– Liara, pare. Não seja assim. Vá. Enfrente seu futuro.
E assim Liara aceitou partir, mesmo envolta em dúvidas e com o coração pesado pela separação com a mãe. Mas não a deixaram pensar muito. Mundo e Nahla vibraram com a notícia e logo as puxaram de volta à festa onde logo Mundo se casaria.
A roupa de Pássaro Suave estava um primor, muito colorida e cheia de penas. Mundo também usava vários adereços diferentes. Liara achou a cerimônia muito interessante.
O pai de Pássaro Suave, curandeiro da aldeia, primeiro queimou gravetos de várias árvores cheirosas de um suprimento que trouxera. Explicaram-lhe que o perfume e a fumaça serviam para afastar os maus espíritos. Eles tomaram uma bebida especial que passaram dias preparando, fumaram do mesmo cachimbo e depois dançaram juntos em uma dança muito sensual. Ani agradeceu pela fumaça que tapava a maior parte. E então foram declarados marido e mulher pelo curandeiro e o chefe deu-lhes sua benção.
Liara chorou. Aquele dia parecia mesmo ter existido com o objetivo de desanuviar todos os corações, pensou, fazendo troça de si.
Nahla despediu-se, prometendo retornar no dia seguinte. Ela pretendia acompanhá-los por uma parte do caminho até uma ilha onde poderiam se reabastecer, desfalcados como ficaram com os barris quebrados por Pata de Urso.
Ani e Liara voltaram ao acampamento e souberam que Loua quebrara vários ossos e ficaria imobilizado durante um bom tempo.
– O que será que ele estava fazendo lá embaixo? – Ani questionou.
– Ele é muito curioso. Acho que só estava olhando. – Liara minimizou.
Serg não engolira aquela estória, mas Loua ainda estava muito ferido para falar. Prometeu-se que ele explicaria tudo e bem explicado assim que melhorasse.
Elas contaram a ele e Lene sobre os últimos acontecimentos e foram dormir exaustas, deixando-os ainda conversando. Não sabiam o que pensar. A princípio assustaram-se com a partida eminente de Liara, mas depois acharam que talvez fosse mesmo o certo. Sur não era seu lugar. Ela era grande demais para aquele lugar. E eles poderiam cuidar de Ani. Sentiriam falta dela.
– Sim, mas às vezes amar é isto: dar liberdade para voar. – Lene disse e Serg abraçou-a concordando.
– O que acha, Neve? Devemos ir com eles? – Liara coçava a cabeça de Neve, recostada em seu colo, sentada na praia, na manhã do outro dia. Neve ergueu a cabeça e deu dois latidos curtos.
– É eu sei. Você quer ir, não é? É seu lugar, talvez encontre amigos por lá. – Recebeu uma lambida em resposta.
– Talvez seja besteira minha e deva mesmo ir. Todos acham que devo. – Neve concordou com mais latidos e apontou para o navio, querendo ir para lá.
– Está bem, vamos então.
Estavam terminando o embarque dos itens. Liara estava com sua thunga, pois os Surs vieram para ver a partida. Na bolsinha estavam os poucos bens que possuía: as miniaturas que ganhara de Ani, o arco, as flechas de Urká e um pedaço de cada tipo de Ká. Liara esperava que não se importassem, mas gostaria de levá-los para o caso de precisar.
Ani abraçou-a em apoio. Serg e Lena sorriram. Os Gigantes começaram a embarcar e quando só restavam o chefe, Mundo, Pássaro Suave e Nahla, chamaram-na.
– Iá, você tem certeza?
– Vá querida. Busque seu caminho, encontre outros como você e seja livre.
– Eu volto, assim que souber de minha mãe. Prometo. – Abraçaram-se pela última vez. Depois Liara despediu-se de Serg e Lene, assegurando-se de que cuidariam de Ani.
Pronta? – Nahla perguntou. Ela fez que não com a cabeça, mas aceitou a mão dela e subiram no navio.
Até aquele momento os Surs pensavam que ela estava apenas se despedindo, mas quando viram que subia junto com os últimos Gigantes, começaram a protestar.
Serg postou-se junto à escada.
– Ela vai com eles. – Declarou.
– Mas não pode. O conselho não foi consultado. – Lure falou.
– Não importa. Ela vai. Está decidido. Seu destino está lá fora. – A escada foi levantada e eles nada mais podiam fazer.
Liara viu a discussão que se armava ao redor de Ani, enquanto o chefe Anajé dava a ordem de partida. O navio começou a se afastar e ela não conseguia ver sua mãe, rodeada de Surs que gesticulavam muito.
– Iá, Iá. – Chamou. Serg deu um jeito de tirá-la do meio da confusão e ela aproximou-se da praia junto com Lene e Suri e acenaram.
– Eu te amo. – Gritou, mesmo sabendo que não seria ouvida.
O navio afastava-se ainda mais e eles ficaram menores na praia. Liara viu quando Serg não conseguiu mais conter os Surs e eles se aproximaram de Ani. Viu-a afastando-se deles e aproximando-se mais da praia e também quando caiu.
– Iá! – Gritou. Olhou para Mundo. – Tenho que ir. Não posso. Desculpe.
– Vá. Cuide-se. Nós nos encontraremos ainda. Obrigado. – Ele disse rapidamente, erguendo-a para que alcançasse a grade do convés e pudesse pular. Neve latiu.
– Neve. Ele…
– Não se preocupe, Liara. Eu o levo para você, falou Nahla. Vá.
Liara deu um último olhar aos seus amigos e um beijo em Mundo antes de pular no mar. Nadou o mais rápido que pode, seguida de Nahla que trazia Neve.
– Ah, Nahla, o que fizeram com Iá?
– Ela está bem. Deve apenas ter caído. Não se preocupe. Estamos quase lá.
Chegaram à beira da praia.
– Nahla, obrigada.
– Vou com eles, mas volto depois, assim que mostrar-lhe a ilha de reabastecimento. – Abraçaram-se e cada uma foi em uma direção.
Liara correu até a praia.
– Iá, onde você está?
– Liara? – Ouviu sua voz. – O que faz aqui?
– Você caiu, mamãe. Está bem? O que houve?
– Não foi nada. Com a confusão fiquei tonta e desmaiei. Não precisava voltar. Estou bem.
– Iá, não devia nunca ter pensado em deixá-la. – Lembrava-se de Ur, agora. Fora ele, com certeza, que fizera sua mãe desmaiar. Um aviso, um sinal de que estava seguindo pelo caminho errado.
– Ah, querida. Que pena. Perdeu sua oportunidade para ficar com uma velha boba. Volte. Você ainda pode alcançar o navio.
Liara olhou para a embarcação que acabava de passar pela boca da caverna.
– Não, Iá. Não vou. Meu lugar é aqui com você.
Os Surs tinham aquietado com o desmaio de Ani. Ela ainda era muito querida e arrependiamse do desrespeito com que a haviam questionado.
Ficaram olhando o navio apequenando-se no horizonte. Quando ele estava já pequeno e distante ouviram um barulho forte.
– O que é isto? – Liara perguntou.
– O teto. Vejam. Vai desabar! Saiam daqui todos! Rápido! – Falou o chefe dos mineiros apontando para uma imensa fissura que surgira no topo, mais ou menos na metade do trecho entre a praia e a boca da caverna.
Serg pegou Ani no colo e correram ao som da terra que se partia. Estavam já no fundo, próximos à saída quando escutaram o estrondo. Houve um princípio de confusão, com todos tentando entrar primeiro no túnel de saída.
Liara olhou para trás e viu a metade da parede superior caindo, inteira, como uma porta e selando a saída para o mar. Uma onda imensa armou-se em segundos e avançou para a caverna que ficou escura, tanto pela terra que o desabamento levantou como pelo corte da luz do exterior.
– Vamos, menina! Quer morrer aqui? – Lene puxou-a para a entrada e subiram ouvindo o estouro da gigantesca onda.
No dia seguinte desceram para ver os estragos. Nada mais além de escombros existia da aldeia. Todas as cabanas cederam à água. Palmeiras e restos da vila boiavam no lago que se formara aos fundos, onde agora estava a parede que antes era teto.
Liara chorou de tristeza. Não veria mais Nahla. Nenhum deles voltaria. E nem ao menos teria as cabanas para se recordar.
– Não chore, querida. Foi a vontade de Ur. – Falou Ani.
– Sim, mamãe. Eu sei. – Entendia que fora mesmo Ur. Ele abrira a passagem e agora a fechara. Fora um presente. Um breve vislumbre da vida que existia lá fora e que agora voltava a ficar fora de alcance.
Talvez algum dia ele abrisse outra passagem. Liara não sabia neste momento, mas tinha certeza de ter feito a escolha certa. Seu lugar era ali por enquanto. Ur fechara a saída, em uma clara indicação de que ninguém além dos Gigantes e de Nahla deveriam sair.
A Vila dos Gigantes agora era apenas dos mineiros para a extração do Urká. Todos os construtores e Surs que não fossem trabalhar na mineração partiram. Ani e Liara arrumaram suas coisas e seguiram com Serg e Lene. Ele voltaria a assumir o cargo de Cure e eles se casariam assim que fosse possível.
Liara ficou olhando o acampamento se distanciar. Não queria chorar para não entristecer Ani, mas sentia um nó na garganta enquanto se despedia daquele lugar onde vivera por mais de um ano.
– “Adeus Mundo, Nahla, Gigantes. Até qualquer dia.” – Pensou quando já não avistava senão um pequeno ponto onde estava a vila.
Aos poucos ela se encaixou novamente em sua antiga vida, envolvida com os exames de final de ano e o aniversário de onze anos.
Apresentou seu arco de Urká que foi aprovado com restrições. Os professores pediram para que no futuro ocupasse-se com artefatos úteis à cidade. Não viam utilidade para um arco e flecha, apesar de reconhecerem sua habilidade na construção e na magia.
Loua recuperou-se aos poucos. Voltaroa a dar aulas no próximo ano ainda usando bengalas por que a perna direita demorava a cicatrizar. Liara foi visitá-lo ao voltar para a cidade. Ele estava mais irascível do que nunca, xingando todo mundo e não quis responder às perguntas sobre o que fazia próximo ao navio.
Seu aniversário este ano teve convidados: Lure, Suri, Serg e Lene e várias pessoas e crianças de Sur. Liara fizera um grande trabalho e eles reconheciam felizes com o depósito abarrotado de Urká e todos os novos artefatos que já começavam a usar, como as lâmpadas que iluminavam a cidade e todas as casas. Também o fato de ter pulado do navio, desistindo de partir, contava como um ponto a seu favor.
As mulheres trabalharam com afinco no imenso bolo de Aliras, recortado como um peixe e este foi o sinal mais evidente de que a aceitavam como era. Havia docinhos e salgadinhos. Doaram uma cabra para um churrasco, mas Liara e Ani não aceitaram e toda comida era vegetariana. As crianças brincaram no rio, em torno da casa e na casinha do telhado até a hora de cortarem o bolo. Liara ficou um pouco emocionada com aquele monte de gente cantando parabéns, mas gostou muito.
Ani deu-lhe uma nova miniatura, retratando-as como estavam agora. Já era a terceira e Liara gostava daquelas preciosidades que fixavam o passado. Ela também ganhou um espelho, a nova sensação desenvolvida com Urká. Era pequeno, oval e com um cabo delicado para as mãos.
A primeira vez que se viu nele sem a thuga foi impactante. Até aquele momento só tinha se visto através do reflexo nas águas. Observou com atenção seus olhos, a pele, os cabelos e entristeceu-se com o resultado.
– Sou realmente feia. – Suri era seu objeto de comparação, aquela a quem achava linda. Pequena, delicada, com cabelos lisos, longos e sedosos. Olhos e boca pequenos. Seus cabelos eram volumosos demais. Ela era grande demais. Seus olhos também eram grandes. E sua boca muito cheia. Tudo nela era demais constatou com desalento.
– Nenhum Sur vai me querer como esposa. – Compreendeu. Tanto Ani quanto os Gigantes haviam assegurado que era linda e acreditara até aquele momento. Agora sabia que haviam mentido porque gostavam dela. Não disse nada a mãe, mas guardou o espelho em sua bolsinha das fadas e nunca mais se olhou.
Voltaram a participar das reuniões da igreja, agora que providenciaram uma carroça para levar e trazer Ani. A consciência tranquila de Liara fazia-a dormir serenamente nas noites de domingo, embora continuasse a dormir na cama de Ani nestes dias, porque fazia parte de um ritual próprio delas e Liara gostava de sentir o calor de Iá ao seu lado.
O ano letivo recomeçou e as aulas de Liara eram mais práticas, voltadas à construção de artefatos, domínio da matéria, escrita mágica e magia.
Loua tratava-a como aos demais alunos, atormentando a todos igualmente. Recomeçou com os exercícios mentais, testando-os continuamente para domínio do pensar e das emoções. Cada aula era como uma batalha a ser vencida, da qual saíam exaustos.
– Louco! – Diziam
Todas as tardes ele vinha à casa de Liara por volta das três da tarde e tinham duas horas de aulas particulares. Os exercícios de transformação foram colocados de lado em favor da magia de alcance, que parecia ser o foco de interesse de Loua. Isto e manipulação mágica de outras matérias que não o Ká.
– Manipular um mineral tão reativo à magia como Ká é para fracos e incompetentes, Liara. A verdadeira magia é manipular matérias não reagentes como madeira, pedra, água, fogo, vento e terra.
E era muito mais difícil. Liara avançava lentamente, vez por outra conseguindo mexer um pedaço de madeira ou levantar poeira em uma parte do chão. Ele irritava-se com a lentidão dos resultados.
– Não é possível! Você parece retardada! – Praguejava.
O outro treino, de distância de alcance, o satisfazia mais. Liara conseguia acertar qualquer coisa a 50 metros de distância com suas flechas de Urká. Se o alvo fosse de Ká, ela poderia acertar no dobro da distância e mesmo que fosse móvel. O fracasso acontecia com as flechas de madeira quando no máximo atingia 30 metros se o alvo fosse fixo.
Ele queria que obtivesse 100 metros com as flechas de madeira.
– Não pense que é impossível. Não é. Você consegue. Vamos avançar metro a metro, leve o tempo que precisar. – Liara sentia-se desanimar com isto.
Passaram o ano inteiro nestes exercícios. Ela mal podia suportar olhar para seu arco, mas teve que reconhecer que avançaram, mesmo que não tanto quanto ele desejava.
Liara conseguia manipular qualquer matéria próxima com relativa facilidade. Podia apagar uma fogueira ou avivá-la, abrir um redemoinho no rio ou fazer com que jorrasse em uma coluna espiral.
E sua distância com as flechas de madeira melhoram para perto dos 100 metros.
No tempo livre ela se dedicava ao restante das matérias, principalmente no próximo artefato que apresentaria na conclusão do ano.
Examinara a bolsinha das fadas, intrigada com seu funcionamento e decidira tentar reproduzir o mesmo com Urká, não com uma bolsa, mas com uma pequena caixa.
Em Matéria e Elementos aprendera bastante sobre a estrutura dos elementos e sabia que a solução estaria na compactação, eliminando os espaços vazios da matéria.
Em Escrita e Linguagem aprendera palavras mágicas que escritas em um objeto empregavamlhe alguma função mágica. Ela podia escrever, por exemplo, o equivalente a “folha nova” em seu caderno e uma folha nova surgia. Ou, o que era comum, em portas, uma inscrição fazia tocar a campainha quando alguém se aproximava. Não havia palavra já pronta para compactação e foi o desafio com o qual se debateu durante quase todo o ano.
Liara crescera muito neste ano. Com quase doze anos era mais alta do que todos os Surs, com praticamente um metro e setenta, quando todos eles tinham no máximo um metro e sessenta. Seu cabelo chegava aos quadris e Ani concordou em cortar um pouco, deixando-o na cintura para dar um pouco menos trabalho. Liara ainda sofria para desembaraça-lo todas vezes em que não trançava.
Ao final do ano Neve já era quase um adulto com mais de um metro de altura, mas continuava dependente como antes. Foi quase impossível fazer com que se acostumasse a esperá-la na porta do educandário. Nos primeiros dias invadiu a sala de aula causando comoção. Liara disse que o amarraria se não ficasse no portão e ele acabou ficando, embora ganisse o tempo todo.
Davam longos passeios à noite. Liara o treinava um pouco, mas quase sempre apenas brincavam. Ela conheceu todos os animais da redondeza, até mesmo as formigas, aprendendo suas línguas. Era comum que os seguissem durantes os passeios e Liara levava bolos e sementes para lancharem. Algumas vezes eles tinham problemas como um ninho desmanchado, uma toca encoberta ou pequenos ferimentos e estava sempre pronta para ajudar.
Olhava as pérolas todos os dias de manhã e sabia que Mundo e Nahla estavam bem. Sentia-se feliz. Vez por outra sentia muita saudade deles e dos domingos na praia, mas não se arrependia por sua decisão. Tinha curiosidade em saber mais sobre seu passado, mas era um sentimento vago e impreciso que não incomodava muito.
– Algum dia saberei, não é Neve? – E ele lambia-a, como forma de carinho.
Assim o ano chegou ao fim.
Liara não conseguira uma palavra e resolveu o problema escrevendo uma frase cujo significado era pequeno ao entrar e grande ao sair. Funcionava muito bem com objetos de Ká e mais ou menos com tudo o mais. Ainda assim ela achou que estava bom para ser apresentado. Pensou nos depósitos de Ká existentes na cidade e no espaço que poupariam. E também, dentro das casas poderiam guardar o resíduo de Ká para as lareiras.
Na verdade seu artefato foi a segunda grande revelação daquele ano, pelo qual foi bastante aplaudida. A primeira grande revelação foi uma carroça automática, movida à bateria de Urká, que finalmente conseguiram concretizar.
Ela completou doze anos com Ani, Serg, Lene e Neve. Não quis uma festa. Preferiu um dia calmo e tranquilo. Sua mãe estava fraca e não quis muita agitação ao seu redor, paparicando-a e ocupando-se de todas as tarefas.
– Liara, não sou uma inválida!
– Eu sei, Iá. É apenas algo que quero fazer hoje. Não é meu aniversário?
– Sim. Está tão bonita e grande! Sinto tanto orgulho de você.
Liara fingiu aceitar o cumprimento e gostou da nova miniatura, colocando-a no alto da lareira junto com as demais.
– O tempo está passando rápido. Parece que foi ontem que você era um bebê com fraldas. – Comentou a mãe, com nostalgia.
– Sim, é verdade. – Liara preferia que passasse mais devagar. Cada ano de sua vida era um ano a menos da vida de Ani.
Olhou para mãe. Ela agora usava bengalas e parecia diminuir a cada mês, com o rosto muito enrugado e os cabelos completamente brancos. Liara gostaria de ter um pouco de cinzas de Fênix para dar à sua Iá. Gostaria que fosse imortal. Não conseguia imaginar como seria sua vida sem ela e procurava não pensar muito nisto, embora a idade de Ani fosse um fantasma que atormentava sua mente quando estava distraída.
Infelizmente os próximos dois anos passaram ainda mais rapidamente e apesar de Liara poupar Ani de qualquer trabalho e evitar que qualquer problema chegasse até ela, viu sua mãe envelhecer ainda mais. Ela agora quase não andava, passando longas horas em frente à lareira tecendo e adormecendo com o trabalho em mãos.
O povo de Sur continuava vindo e suas visitas ajudavam a preencher seus dias. Lene ajudava tanto quanto podia com os serviços da casa e a amizade entre elas ficou ainda mais forte.
Liara passava todo tempo disponível em casa. Para se ocupar, começou a construir artefatos animados de miniaturas de animais. O primeiro foi um passarinho que batia as asas e voava por alguns segundos. Ani ficou tão encantada que Liara entusiasmou-se e aperfeiçoou o modelo, usando todos os recursos que possuía. Conseguiu fazer um modelo que voava conforme a vontade de Ani. Este foi o projeto que apresentou no final do primeiro destes dois anos.
No ano seguinte ficou obcecada com a ideia de reproduzir também suas vozes e conheceu um construtor que trabalhava há anos tentando montar um artefato para gravação e reprodução de vozes. Como seu trabalho estava bastante adiantado, ela pode usá-lo em seu pássaro e finalmente fez um modelo que piava suavemente. Chamaram-no de Pio e Ani mantinha-o em seus ombros e conversava com ele como se fosse real.
Liara pensou em construir algo mais prático para ela, um ajudante de verdade, que pegasse coisas ou fizesse pequenas tarefas. Construiu um pequeno robô, mas foi um fracasso, porque não executava nada com perfeição, antes destruindo tudo que pegava. Assim, deixou este projeto de lado e voltou-se à execução de outras miniaturas. Fez um tendo Neve como modelo. Era minúsculo, cabendo na palma da mão. Corria e ladrava como Neve.
Elas riram com a reação de Neve que parecia enfrentar a luta com um Gigante cada vez que via o Nevinha em ação. Ele colocava-se em posição de guarda e latia desesperadamente para o modelo, como se quisesse destruí-lo aos gritos. Tinha verdadeiro medo do pequeno, embora tentasse fingir que não.
Este foi o projeto que apresentou na conclusão dos estudos e tornou-se uma febre na cidade. Todas as crianças queriam um Nevinha e Liara teve que ensinar outros construtores a fazê-lo para dar conta da demanda. Isto porque ela não queria ficar fazendo réplicas. Queria miniaturizar outros animais e já estava envolvida até o último fio de cabelo na elaboração de um urso em miniatura. Nunca vira um, mas conseguira alguns desenhos. O maior desafio seria seu urro, que não conhecia.
Seu aniversário de 14 anos foi singelo, com outra miniatura das duas.
Com Loua finalmente conseguira atirar uma flecha de madeira a cento e vinte metros e dominava a manipulação da matéria até cinquenta metros, o que ele considerava pouquíssimo. Ultimamente insistia na manipulação da fumaça do fogo, fazendo-a movimentar, dispensar ou desenhar com ela e isto com fogueiras montadas a cada vez mais distante.
Começou a compreender vagamente o objetivo daquele treino exacerbado com distâncias pelo discurso que ele proferia sobre a cortina de névoa, do quanto deixava o povo atrasado e como todos lucrariam se pudessem ter uma passagem livre para o mundo exterior.
Ela não concordava. Sabia que a cortina era considerada a vontade de Ur e que as pessoas de Sur não queriam o contato com o mundo exterior. Não se arriscaria a infligir esta regra. Nem mesmo por Loua.
Este debate passou a ser cada vez mais intenso, com Loua pressionando e ela se negando até o dia em que se recusou a prosseguir com os exercícios de fumaça.
No dia seguinte ele apareceu em sua casa com uma carroça puxada por cães. A mesma que os levava até o acampamento. Este era o destino, de fato.
Liara ficou surpresa, pois nunca mais tinha voltado àquele local. A Vila dos Gigantes agora era desabitada. Os Surs haviam recolhido todo Urká nestes quase três anos e os mineiros partiram para outras minas.
Desceram até a caverna. Embora tivesse ficado escura após a retirada das pedras e sem a luz do sol, os mineiros haviam instalado um completo sistema de iluminação que ainda funcionava.
Andaram pelos escombros da aldeia e pararam na praia que ainda existia e de frente para o lago de águas salgadas. Liara não estava preparada para a onda de emoções que sentiu ao rever aquele lugar. Lembrou-se dos momentos que passara ali, com Mundo e Nahla, sentindo o coração apertado de saudades.
– Sempre quiseram saber o que eu fazia próximo ao navio e nunca contei. – Ele começou a dizer.
– Sim, é verdade. O que fazia lá?
– Eu estava dentro de um dos barris que Pata de Urso jogou em Mundo.
– E por quê?
– Porque queria sair deste mundo pequeno, pobre e sem qualquer perspectiva.
– Ah…
– Você não se arrependeu, Liara? Esteve dentro do navio e resolveu voltar no último instante. Eu não acreditei quando soube. Tanta coisa que existe fora deste lugar miserável e você prefere enterrar-se aqui.
– Naquele momento era o certo a fazer. Não me arrependi não.
– Já pensou em sua vida daqui a uns dez anos?
– Não, mas penso que continuarei construindo artefatos.
Sim. Será provavelmente o que te restará. Sua mãe terá morrido. Nenhum homem de Sur casará com você e estará sozinha, exceto por aqueles amigos, todos mais velhos.
– Posso fazer novos amigos. Talvez possa dar aulas.
– Ah, que vida emocionante! – Bateu palmas, cínico.
– E quem diz que quero emoção? Eu quero ficar bem, em paz e … – Ser amada, é o que ela ia dizer, mas parou a tempo.
– Ser amada? – Ele pareceu ler seus pensamentos. – Talvez os bichos te amem.
– Não, eu ia dizer sentir-me segura. – Droga! Estava mentindo, mas não queria que ele tivesse algum ponto fraco seu. Ele já era bem cruel sem isto.
– E quando ficar velha? Todos seus amigos terão morrido, não terá filhos. A esquisitona e seus bichos.
– Nós não sabemos de nosso futuro. Tudo pode acontecer pela vontade de Ur.
– Ah, a vontade de Ur. Acredita mesmo neste monte de baboseiras que nos enfiam goela abaixo para nos controlar?
– Como assim nos controlar?
– Você seria tão boazinha quanto é se não tivesse medo de Ur? – Mais uma vez ele acertava em cheio. Sim, ela seria, agora que podia usar todos os seus dons, mas não teria sido antes, quando era menor.
– O que poderia fazer que já não fizesse?
– Como, por exemplo, sair de Sur e procurar por sua mãe?
– Não há como.
– Mesmo que houvesse você não saberia, não é? Porque se recusa a procurar uma saída. A menos que Ur escancare uma porta imensa e coloque um letreiro com letras garrafais dizendo “Saia Liara”, você continuará aqui, escondida nas saias de sua mãe, querendo ser uma eterna menininha.
– Eu realmente não quero sair daqui enquanto Iá estiver viva.
– Mas quer saber de sua verdadeira mãe, não quer? Impossível que não tenha curiosidade para saber por que está aqui, porque a abandonaram neste ninho de imprestáveis de onde não pode sair. Será que foi para sua segurança? Ou terá sido porque não a queriam? – Neste momento as lágrimas explodiram. Ele colocou em palavras o pior temor de Liara. Ter sido abandonada ali para que nunca mais voltasse porque eles não a queriam.
– Oras, seu… – Ela correu para a saída.
– Acha que pode correr da verdade também? – Ele gritou.
Neve estivera rosnando para Loua durante todo tempo. Liara o conteve, mas agora desejava não ter feito isto.
– “Miserável!” – Pensou, enquanto voltava pelo tunel, com as lágrimas a cegando. – “Ele faz isto por prazer, apenas para me atormentar.”
Parou sentada na carroça. Não podia voltar a pé, infelizmente. Teria que esperar por ele. Felizmente demorou e teve tempo para se acalmar.
– Podemos continuar nossa conversa agora? – Ele falou aproximando-se lentamente.
– Não estou entendendo o objetivo desta conversa. Quero ir embora.
– O objetivo é simples: quero sair daqui e você é a única pessoa que pode me ajudar.
– Como? O que posso fazer?
– Você pode desmanchar a cortina de névoa, se não totalmente, ao menos o suficiente para abrir uma passagem.
– Está louco! Eles me matariam.
– Não, não matariam. Eles também querem isto. Podem fingir que aceitam e que gostam, mas com os argumentos certos eles entenderiam as vantagens de se abrirem novamente para o mundo exterior.
– Mesmo que isto fosse verdade, não entendo como eu poderia.
– Sim, você entende. É por isto que estivemos praticando magia à distância durante estes três anos.
– Uma coisa é atingir um pouquinho de fumaça a cento e poucos metros, outra bem diferente é desmanchar uma cortina de fumaça a três quilômetros.
– Você pode, Liara. Sei que pode.
– Mas não vou. Exceto se eles me pedirem para fazer isto. Porque não é o que Ur quer.
– Não? E como sabe?
– Se ele quisesse, desmancharia a cortina, não precisaria de mim.
– Talvez ele queira que os Surs façam isto, por livre e espontânea vontade.
– Talvez sim e talvez não. Como não há qualquer indicação de que deseje, acredito que não queira. É apenas você quem quer e está tentando me convencer que seria bom para todos, mas não acredito em você.
– Tudo bem. E o que você acha? Uma passagem para o mundo exterior seria ou não boa para todos?
– Não sei. Nunca pensei nisto.
Que tal pensar então, antes de ficar contra?
– Tudo bem, Loua. Posso pensar, mas agora vamos embora. Estou cansada.
Loua entendeu que era o máximo que conseguiria agora. Resolveu dar-lhe algum tempo. O medo que sentia dos Surs e de Ur era muito forte.
– Sim, vamos. Eu gostaria que fizéssemos alguns exercícios com a cortina enquanto você pensa a respeito. De repente estou enganado e você não é mesmo capaz.
– Está certo. Faremos. – Ela concordou mais para que fossem embora. Estava cansada e confusa. Precisava pensar.
– Só uma última coisa, vamos manter isto entre nós até que tenhamos tudo resolvido, por favor. Não quero ninguém comentando. Pode fazer isto?
– Nem mesmo Iá?
– Não
– Tudo bem. Eu acho. – Concordou meio indecisa ainda, mas louca para encerrar aquilo e pensar em paz.
Ela pensou mesmo, já que não conseguia esquecer. Primeiro e mais importante: será que estava realmente se escondendo ali, para se proteger contra uma eventual verdade que não gostaria de encarar? Quando Loua colocou seu pensamento pela primeira vez em palavras ditas não podia mais simplesmente fazer de conta que não se preocupava com isto, e não podia porque ele, dentre todas as pessoas, sabia que ela se preocupava e tinha que dar-lhe alguma resposta. Sem alternativa pensou no assunto seriamente, pela primeira vez.
Não, considerou. Não estava. Ela tinha motivos sólidos para estar ali, tanto quanto tinha motivos para sair. Ali tinha sua mãe e, lembrando-se de que só tinha quatorze anos e que era uma criança, ali tinha o que precisava: segurança, amor, estabilidade e paz. E nos últimos tempos até mesmo aceitação.
Havia certa verdade no que dizia respeito ao futuro ou a ausência dele, mas o que tinha lá fora? Mundo e os Gigantes em uma sociedade tão fechada quanto a sua, embora mais calorosa e afável e onde teria tanto futuro quanto. Nahla e uma ainda mais improvável vida no fundo do mar. O restante eram possibilidades. Nada concreto. Onde e como viveria? Com quem? Não tinha estas respostas. Seria uma aventura.
Porque ela trocaria o que tinha de real por possibilidades? Apenas para saber sua origem? E importava tanto assim? Importava, ela sabia. Mas, o quanto era importante saber agora e não dali a alguns anos?
Ela não queria ficar ali eternamente. Queria permanecer em Sur enquanto sua mãe vivesse o que infelizmente não seria muito tempo. Depois ela teria muito tempo para sair e encontrar as respostas.
Sim. No momento o melhor para ela era ficar em Sur. Sair de Sur não era o melhor para ela e sim para Loua.
Seria o melhor para Sur? O quanto ter uma passagem para o exterior seria bom ou ruim para os Surs? Ela não sabia. Teria que descobrir.
Foi amadurecendo estes pensamentos ao longo dos dias, enquanto exercitava com Loua para o desmanche da cortina. Fazia isto sem o menor problema, porque percebera uma falha em seu pensamento. Ainda não entendia como ele não percebera.
O problema para a saída não era a cortina de fumaça e sim o fato de que esta se afastava conforme tentavam aproximar-se. Se abrissem um buraco na cortina, continuaria tudo igual, porque ninguém conseguiria chegar até ele.
– “E ele se acha um gênio!” – O único jeito de atravessar seria manter a cortina presa ao chão, fixa.
– Vamos tentar de novo. Liara, caramba, não pode se concentrar direito?
– Loua, meu alcance máximo é de pouco mais de uma centena de metros e a barreira está a mais de três. Não consigo!
Sim, você consegue. E agora entendi que este é o problema. Você está limitando seu alcance mágico a uma distância pré-determinada, mas isto não é verdade. Quando aprender que sua mente pode atingir qualquer alvo, em qualquer lugar, conforme sua vontade, você conseguirá.
– Hum… Entendi. Só não sei como fazer isto.
– Você consegue fazer magia à distância imaginando que seu braço estica até sua mão tocá-lo, não é?
– Sim.
– É aí que está errado. Não é sua mão que contém a magia, não é seu toque e sim sua mente. É ela quem deve alcançar o alvo. Suas mãos são apenas uma forma representativa do verdadeiro poder.
– Estou entendendo.
– Você tem que concentrar-se no alvo, tê-lo inteiro dentro de sua mente. Só ele e nada mais. E então atingi-lo com seu poder, com sua magia.
– Faz sentido. Acho que teremos que começar com alguns alvos mais simples.
– Tudo bem. Mas, pelo amor de Ur, nada de levar meses e meses nisto, ok?
– Vou tentar, Loua.
– Começamos amanhã.
Se o que ele estava falando fosse verdade, se fosse possível, daria um novo impulso aos seus poderes. Ela podia entender a divisa. Suas mágicas até então seriam brincadeiras de criança perto daquilo. E queria aprender, mesmo. Independente da questão da cortina. Se Loua podia usá-la para atingir seu objetivo, porque ela não podia ganhar algo com isto, pensou.
– Iá, você acha que os Surs gostam mesmo desta cortina de névoa? – Decidira começar sua pesquisa pela mãe.
– Boa pergunta. Acostumamo-nos a ela de tal forma que nunca mais nos perguntamos se gostamos ou não. Aceitamos e isto é tudo.
– Mas e se um dia deixasse de existir. O que acha? Seria melhor ou pior? – Elas estavam preparando a mesa para o jantar e Liara colocava os pratos, enquanto Ani dobrava os guardanapos.
– Bem, nós somos um povo sem qualquer poder especial, pouco mais do que os Comuns.
– Comuns?
– É como chamam os seres sem poderes mágicos que habitam os reinos.
– Ah.
Cada raça é abençoada por Ur com um poder especial que lhe serve como defesa ou ataque. Nós não temos nada. Talvez por isto Ur nos tenha colocado aqui, protegidos.
Liara pensou nos Gigantes que tinham o tamanho e a força, no povo do mar que tinha a habilidade de respirar na água e controlar os peixes e o povo das fadas que tinha o poder de aumentar e diminuir. O que tinham os Surs além de sua fé e uma magia muito fraca?
– E nosso reino, além de pequeno, não tem nada aqui.
Também era verdade. A paisagem árida, o solo arenoso, pouca água, pouca vegetação.
– E o Ká e os construtores?
– O Ká acabaria rapidamente. Assim que os Outros soubessem dele e de seu potencial invadiriam nosso reino para comprá-lo ou roubá-lo ou requisitá-lo. De todas as formas. Levariam tudo. Talvez nos trouxesse alguma riqueza, mas seria passageiro. Nossos construtores são especializados nele. Depois que acabar não serão nada.
– E o que aconteceria depois?
– Acredito que Sur desapareceria, seria abandonada como uma mina esgotada. Não de uma hora para a outra. No início os mais jovens começariam a partir e com o tempo só ficariam os mais velhos e mesmo estes também partiriam ou morreriam.
– E não poderia continuar como um local de paz, de culto à Ur?
– Um paraíso, um refúgio?
– Sim. – Agora já estavam sentadas, jantando.
– Lá fora existem muitos lugares melhores e mais belos do que Ur para esta finalidade, com certeza.
– Então seria o fim?
– É o que imagino.
– E isto seria ruim para os Surs?
– Lógico, Liara. Seria o fim de nossa sociedade.
– Sim, da sociedade sim. Mas estou dizendo para as pessoas. Para quem partir. Não serão mais felizes lá fora?
– Quem sabe, querida? Pode ser que sim e pode ser que não. Há mais de 500 anos não temos notícias do exterior. Mundo não sabia quase nada sobre a situação atual e Nahla não disse nada. Será que continuam em paz? Será que lá é um lugar onde as pessoas são felizes? Será que teriam oportunidades de trabalho lá fora?
– Sim, é verdade. Não sabemos nada.
Aqui não há fome, não há pobreza. Todos possuem um lar aquecido, comida suficiente e thugas. Não há guerra. Todos tem uma profissão.
– Entendi, mamãe. Uma passagem somente seria boa para nós se houvesse algo importante aqui dentro, algo precioso para os Outros, que permitisse um intercâmbio sábio, uma balança equilibrada.
– Sim! Justamente isto. Se tivéssemos algo atrativo, nossos jovens poderiam continuar aqui.
– Que pena que não temos.
– Bem, eu não sinto falta de nada. Não me importo com a cortina. Tive uma vida boa, especialmente depois que você veio para nós.
– Ah! – Voltou a comer, compenetrada, para disfarçar a emotividade que surgia sempre que sua mãe dizia coisas como esta.
Mais tarde no quarto, olhava distraída para o teto, relembrando a conversa. Pareceu tão lógica que quase desistiu de consultar outras pessoas.
No outro dia, entretanto, decidiu que deveria ouvir algumas pessoas mais jovens. Puxou conversa com um ou outro quando foi até a cidade em busca de alguns mantimentos.
– Liberdade. – Falou um.
– Aventura – Disse outro.
– Riqueza – Mencionou o terceiro.
– Sol, cores, vida! – Falou uma moça.
Eles queriam sair de Sur. Voltou com esta certeza. O que só comprovava o que Ani dissera sobre Sur acabar se a cortina sumisse. Em Sur existiam as certezas sem surpresas. Fora, as surpresas sem certezas. O que seria melhor para eles? E, mais do que isto, ela teria direito de decidir e agir?
O que a incomodava era a impossibilidade da escolha, de que as pessoas que não queriam estar ali fossem obrigadas a estar. Isto não parecia certo, mesmo que fosse para o bem delas. Ou seria?
Ela não sabia. E sua cabeça dava voltas e mais voltas e sempre chegava ao mesmo ponto de partida.
Os novos exercícios começaram, mas ela estava consumida pelas dúvidas e não conseguia se concentrar. Foram semanas inúteis, sem qualquer avanço.
– Loua, precisamos conversar.
– Sim, também acho. Estou perdendo tempo aqui.
Eu só vou abrir uma passagem pela cortina se esta for a decisão do povo de Sur. Não quero ser responsável pelo que acontecerá depois.
– E o que acha que acontecerá? Todos serão livres para fazerem o que quiserem. Os que quiserem ficar aqui ficarão e os que desejarem sair, sairão.
– Os jovens sairão e os velhos ficarão sós e morrerão. Sur acabará.
– E daí? Por acaso o mundo estaria perdendo uma grande coisa?
– Você pode não gostar, mas as pessoas vivem bem aqui. De qualquer forma, não é isto. Não quero discutir com você. Você e eu Loua, não temos direito de decidir por eles. Eles é que devem tomar a decisão de quererem ou não que se abra uma passagem.
– Ah, entendo. Está com medo?
– Apenas isto é o certo.
– Tudo bem. Você abre a passagem, eu saio e você fecha novamente. Está bem assim?
– E se eu não conseguir fechar?
– Se consegue abrir, também pode fechar. Faremos testes até que tenha certeza disto.
– E se virem?
– Céus! Estou tentando ser paciente, mas você está conseguindo levar-me ao extremo, mocinha tola. Você é uma covarde, apenas isto.
– Não é questão de covardia. Se eu acreditasse que isto é o certo, eu faria.
– E o que é certo? Manter-me aqui, preso ao nada, até o restante de minha vida? – Liara não teve resposta.
– Não acha que me deve isto, Liara? Por tudo que aprendeu comigo?
– Eu poderia fazer isto por você, mas não acho que seria possível fazer sem que todos vissem.
– Amanhã eu lhe mostrarei como poderemos fazer.
Loua estava a ponto de perder o controle e achou melhor encerrar a conversa por ali. Ele gostaria de explodir aquela pirralha. Se não precisasse dela ele o faria com prazer, mas precisava. Dependia dela. Tinha que se controlar e conseguir convencê-la.
Liara por sua vez sabia que algo a incomodava nesta estória de abrir uma passagem na cortina, mas não sabia exatamente o quê. Porque não tinha como responder ao último argumento de Loua, de abrir, deixá-lo passar e então fechar novamente em retribuição a tudo que lhe ensinara nestes anos e ainda assim não queria fazer isto. Não entendia bem por que.
Eles recomeçaram os exercícios em um local um pouco afastado. Loua tampou seus olhos com uma faixa de pano depois de mostrar-lhe uma fogueira acesa. Andaram um pouco, em círculos
e em um traçado irregular, de forma que ela perdeu completamente a noção de onde a fogueira estaria.
– Podemos parar. Lembra-se da fogueira? Tem sua imagem na mente?
– Acho que sim.
– Focalize-a e apenas a ela. Deixe que se torne o centro de sua mente, que seja tudo que exista neste momento.
– Sim. – Fechou os olhos e concentrou-se. A imagem da fogueira era meio incerta. Não lembrava corretamente de seu formato.
– Pronto? Tente apagar a fogueira em sua mente. Visualize isto. Veja as chamas apagando aos poucos até sobrarem apenas brasas e fumaça.
– Estou tentando, mas não lembro direito de como é. Posso olhar novamente? – Ele tirou sua venda e percebeu que estavam a poucos passos da fogueira. Olhou-a atentamente agora. Fechou os olhos e só quando teve certeza de que sua imagem estava inteira em sua mente foi que vendou os olhos novamente. Refizeram o trajeto e ela sabia que agora parariam em um local diferente.
– Pronta?
– Sim. – Procurou apagar o fogo da fogueira que estava em sua mente e sua imaginação não colaborava, mantendo as chamas acesas. No máximo conseguiu visualizar um ventinho passando por elas.
– Está funcionando? As chamas balançaram? – Perguntou.
– Sim. Isto mesmo. Continue. Você consegue.
– Não consigo. Tenho que usar algo para apagar.
– Areia! Visualize a areia ao redor levantando-se e cobrindo-a. – Boa ideia. Água seria mais efetivo, mas não havia água por perto.
– Aconteceu algo? – Tinha visto em sua mente um pouco de areia subindo.
– Muito pouco, mas a areia se moveu. Aumente a força. – Ela forçou a imaginação um pouco mais. Estranho que não conseguisse imaginar isto. Com muito custo juntou bastante energia e jogou-a toda ao redor da fogueira, agitando a areia com um redemoinho forte.
– Consegui! – Ao menos em sua mente. Tirou a venda.
A fogueira estava completamente apagada. Loua e ela tinham areia na roupa e no rosto.
– Talvez tenha sido um pouco demais até. – Ele comemorou achando graça.
– Uau!!! Que máximo!!! – E era mesmo! Imaginou tudo que seria possível com aquela nova magia.
Não precisaria mirar fisicamente as flechas? Poderia mirar em sua mente e a flecha encontraria o caminho? E a invisibilidade? Funcionaria? Teria muitos testes pela frente.
– Sim. Muito bom.
– Mas cansativo também. Sinto-me muito cansada.
– Deve usar muito mais suas energias. Vamos encerrar por hoje e continuamos amanhã.
Prosseguiram pelas próximas semanas, testando em todos os tipos de matéria: fogo, água, terra, madeira e principalmente vento, que seria o que utilizariam para abrir a passagem. Conseguiu atingir o alvo mirando apenas com a mente, mas era extremamente cansativo e percebeu que utilizaria este expediente apenas como último recurso.
Qualquer matéria era cansativa, aliás. Alguns mais e outros menos. Logicamente o Ká era o mais fácil. Objetos físicos também. Atirar e mirar, fazer duas coisas juntas parecia ser o pior. Lidar com os elementos da matéria também era desgastante.
Por isto os exercícios progrediam lentamente. Liara só conseguia completar um por dia. E Loua parecia incrivelmente pacífico e tranquilo. Neve até mesmo deixara de rosnar em sua presença, observou contente.
Finalmente começariam a pensar em fazer testes práticos, na própria cortina. Era complicado porque tinham que ir até seus limites. Escolheram o ponto mais próximo à cidade, distante duas horas usando a carroça.
Saíram após o almoço. Liara estava tensa e preocupada. Esperava não conseguir, mas mesmo que conseguisse, sabia que não adiantaria nada, porque a passagem se afastaria conforme ele se aproximasse.
Mas não conseguiu. Nem neste dia e nem nos dias seguintes que se tornaram semanas e depois meses. Liara não sabia qual o problema. Talvez fosse seu subconsciente bloqueando, talvez fosse porque a cortina era mágica, talvez porque necessitasse mais energia do que a que possuía.
– Desisto. É impossível, Loua!
– Não é impossível. Estamos fazendo algo errado, apenas isto.
– Você está visualizando apenas este cenário, não é?
– Sim.
– Então talvez seja este problema. Talvez tenha que tentar visualizar toda a barreira.
– Ou talvez ela não reaja a magia. Pensou nisto?
– É fumaça! Você já dispersou toneladas de fumaça em nossos exercícios.
– E como vou visualizar toda a barreira se nunca a vi inteira, só por partes?
– Imaginando. Observe: ela é redonda e é mais alta no centro. É como metade de uma bola. – Ela fechou os olhos e concentrou-se.
– Tudo bem, tenho sua imagem.
– Ok. Agora, como não sabemos onde estamos em sua imagem, tente abrir o topo.
Ela demorou vários minutos tentando. A imagem parecia viva em sua mente e resistente à alteração.
– Pense no vento tocando seu topo. Um pequeno redemoinho aproximando-se, devagar e descendo até ficar metade acima e metade abaixo da cortina, bem ao meio.
– Sim. Está lá.
– Faça-o girar, aumentando aos poucos a circunferência!
– Sim. O que é isto? – Abriu os olhos assustada com a súbita claridade e ficou cega, a retina ofuscada pelo brilho.
– Você conseguiu! Agora feche o topo novamente ou todos ficarão cegos com o sol!
Ela fez isto o mais rápido que conseguiu, mas foi difícil voltar à imagem anterior por causa do branco que invadira até sua mente.
– Pronto. – Abriu os olhos e estava como antes, o sol novamente pálido. Ela também estava pálida. – Não acredito! Eu consegui mesmo? – Sentou-se, extremamente esgotada, sentindo que até o último fio de energia se fora.
– Pode acreditar. – Ele sorria de ponta a ponta. Fez-lhe um carinho nos cabelos.
– As pessoas! Elas devem ter visto! E agora? Que faremos?
– Liara, elas não importam. Você vai abrir um buraco na base amanhã e eu sairei. Isto é tudo que importa.
– Mas… E se me acusarem? Podem ver. Podem ligar-me ao que aconteceu hoje.
– Você ficará calada e negará. Ninguém tem provas. Não há ninguém por perto. Ninguém viu. Ninguém sabe. No máximo terão a suspeita, mas sem provas não poderão te acusar diretamente.
– Não quero mentir.
– Escute, garota. Estou pouco me importando para o que fará ou não, desde que não me envolva nisto até que eu saia. Depois pode falar a vontade.
– Não sei, Loua. Uma coisa é pensar em fazer isto, outra é fazer.
– Não sabe? Vou te ajudar a saber. Tem idéia do quanto sou poderoso, Liara?
– Não. Nunca vi você fazendo mais do que manipular o Ká.
– Então veja. – Ele foi até os cachorros e desamarrou um deles, puxando-o através da corda que o mantinha preso pelo pescoço. Levou-o até uma árvore próxima onde amarrou a corda. Voltou para ela. – Olhe bem.
– Sim. – O que iria fazer? Neve rosnava perigosamente. – Calado, Neve.
Loua fez um gesto com as mãos e a cabeça do cachorro explodiu, voando pedaços de pele, osso, carne e sangue para todos os cantos. O corpo caiu, sem nada onde antes existia sua cabeça.
– Oh! Porque fez isto? – Liara fechou os olhos para não ver, assustada. Neve pulou em Loua.
– Tire seu animalzinho de cima de mim se não quiser que faça o mesmo com ele.
– Neve, aqui! – Abraçou-o, protetoramente.
– Posso explodir a cabeça dele, a sua e a de sua mãe se quiser. Talvez comece com sua mãe, o que acha?
– Não! Eu vou fazer, Loua. Amanhã.
– E fique de bico calado, entendeu? Não importa o que falem ou perguntem. Eu não tenho nada a ver com isto.
Ela começou a correr. Não voltaria com ele na carroça, por nada. Só pensava em sair dali e afastar-se dele. Neve corria ao seu lado. Ela pensou em como gostaria de ser ele para correr tão rápido ou mesmo um dos cachorros que eram ainda mais rápidos. Imaginou-se disparando em direção à sua casa, com as patas mal tocando o chão, veloz, muito veloz.
Sentiu o vento em seu rosto e percebeu que se transformara. Em um dos cachorros selvagens, deduziu pela cor dos pelos das patas. Não importava. Continuou correndo.
– “O que faria? Contaria para Iá? Não! Não podia! Ela poderia adoecer de preocupação. Não. Teria que resolver sozinha. Mas, como?” – Por mais que pensasse não encontrava uma solução. Teria que abrir a passagem amanhã. E, o pior seria que ele não iria conseguir passar. Exigiria que desfizesse toda a cortina. Só assim conseguiria avançar. E ela não poderia. Isto não.
Parou perto do rio e voltou à forma humana. Sentou-se em um tronco com Neve.
– Que enrascada, amigão. E agora? – Ele latiu em resposta.
– Não sabe, não é? Fui tola em prosseguir. Queria tanto aprender a fazer magia com a mente que fiquei cega para o perigo. – Ele latiu algumas vezes, consolando-a.
– Eu sei. Ele queria tanto. Não teria mesmo como evitar. O que vou fazer? – Sentia tanto desamparo, sem saber a quem recorrer.
Serg a ajudaria? Como? O que ele podia fazer? O que alguém poderia fazer contra aquela magia? Loua explodiria quem quer que se oponha à sua saída. Exceto se tivessem proteção contra sua magia, o que não tinham. O que fazer? O que fazer? Ficou quase uma hora ali, sentada com Neve, pensando, sem chegar a uma conclusão. Resolveu entrar. Ani deveria estar preocupada já.
Serg e Suri estavam na sala, com a mãe e ela levantou-se preocupada ao vê-la.
– Liara, você está bem?
– Sim, mamãe, desculpe a demora.
– Liara, você foi a causadora do que aconteceu hoje?
– O que aconteceu?
– O sol, Liara. Impossível que não tenha visto. Todos em Sur ficaram cegos quando a cortina de fumaça desapareceu do topo e o sol brilhou como nunca havia brilhado em Sur.
– Ah, sim. Porque acham que fui eu? O que tenho a ver com isto?
– Faya. Ela te acusa. Disse que viu você com seu professor fazendo isto.
– Viu o quê? – Liara não queria mentir. Olhou para sua mãe. Suas mãos estavam tremendo.
– Você estava ou não estava com seu professor no Campo do Norte?
– Sim, estávamos. Fazendo nossos exercícios. Ela por acaso me viu disparando raios ou algo parecido em direção à cortina? – Ela não podia ter visto nada, exceto Loua e ela conversando. Não havia como provar, mas ela teria que negar. Teria que mentir.
– Liara, você terá que comparecer ao conselho. Eles estão te esperando.
– Mas, Serg, o que Faya viu? – Ela teria que negar, entendeu.
– Ela diz que viu você fazendo aquilo. Não entrou em detalhes. Quando falou, todos acreditaram. A cidade está agitada. Temos que ir e convencê-los de que não foi você.
– Acho melhor mamãe ficar aqui. Esta agitação pode fazer mal a ela.
– Nem pensar, querida. Irei com vocês. Não deixarei que aquela mulher continue a espalhar seu veneno impunemente.
– “Ah, Iá. Como eu gostaria de te contar a verdade!” – Liara sentiu os olhos molhados.
– Não chore, meu amor. Tudo ficará bem. – Ani acariciou seu braço, em apoio.
Foram na carroça de Serg. Suri estivera calada todo tempo e falou pela primeira vez.
– Liara, antes que cheguemos lá, há algo que queira nos contar? Sabe que somos seus amigos. Estaremos ao seu lado, mesmo que tenha feito isto. – Suri falou.
– Não, Suri. Não há nada a contar. – Que Ur a perdoasse. Não podia dizer a verdade. Eles também morreriam se confrontassem Loua. A mãe segurava sua mão, dando-lhe algum conforto.
– Estamos chegando. Por favor, não reajam. Apenas sigam-me. – A praça estava lotada. A carroça teve dificuldade em avançar.
– Bruxa! Demonio de Er! – As ofensas vieram tão logo foi reconhecida. Ani pressionou mais sua mão, pedindo calma. Liara tentou não chorar.
Uma pedra passou voando, pouco acima de suas cabeças.
– Morra, feiticeira! – Alguém gritou.
– Vamos sair do carro antes que nos acertem. – Serg ordenou enquanto tentava manobrar a carroça de forma a criar uma saída protegida. Ele conseguiu parar na entrada de uma rua, fechando-a com o veículo.
Saíram apressados. Liara preocupava-se com a mãe que não poderia correr.
– Serg, leve-a no colo! – Pediu. O povo aproximava-se rapidamente, tentando afastar a carroça e liberar a passagem. Pedras voavam pela rua. Ele fez o que ela pediu e correram até a esquina. A Casa de Sur estava próxima e dirigiam-se a ela.
– Rápido! Suri foi a primeira a entrar, seguida por Liara e Neve. Serg ficou por último e olhou para trás.
– Até meus assistentes estão entre eles! – Disse ao entrar. Procurou um lugar onde deixar Ani enquanto elas fechavam a porta.
– Iá!!!! – Liara gritou ao ver o sangue que escorria pela cabeça de sua mãe. Fora atingida por uma das pedras.
– Ela desmaiou! – Disse Suri. Correu para os fundos e voltou com um pano molhado, limpando o sangue e tentando ver a extensão do ferimento.
Todos ficaram calados ao ver o tamanho do corte. A pedra devia ter passado pela lateral de sua cabeça, sem parar, rasgando o couro cabeludo por quase toda lateral.
– Meu Ur! – Falou Suri baixinho, chorando.
– Ela precisa de cuidados, agora, Serg! – Exigiu Liara.
Ele levantou-se bufando de raiva e foi para fora, fechando a porta às suas costas. Parou em frente ao povo, que se calou ao vê-lo.
– Seus irresponsáveis, inconsequentes! Uma de suas pedras acertou nossa Ani, a mãe de todas as mães! Estão contentes agora?
Um súbito silêncio tomou conta da praça.
– Vão agora para suas casas ou prendo todos vocês! Amanhã resolveremos isto. Tragam o médico, rápido. Se algo acontecer com ela vocês todos serão responsáveis.
Eles começaram a dispersar-se lentamente, alguns envergonhados e outros ainda relutantes. Mas Serg era o chefe da segurança e Ani era venerada por todos. Não havia como insistir. Alguns ainda ficaram por ali, querendo saber de Ani. O médico devia estar na confusão, pois apareceu imediatamente.
– Fora! Eu disse para irem para suas casas! Agora! – Serg esbravejou antes de abrir a porta e entrarem.
Ele a examinou rapidamente, com expressão preocupada. Ela ainda estava inconsciente. Chamou Serg a um canto.
– Preciso de meus materiais. Vou buscar e volto rapidamente.
– O que acha? – Ele apenas abaixou o olhar e fez um gesto de negativa com a cabeça.
– Vamos. – Sairam juntos. A praça estava quase vazia. Ele olhou atentamente para assegurar-se da segurança do médico. – Volte o mais rápido possível. – Entrou novamente.
– Liara. – Ani acordava.
– Estou aqui, mamãe. – Ela pegou sua mão. Tentou não chorar para não assustá-la.
– O que houve?
– Está tudo bem, Iá. Estamos na Casa de Ur.
– Fique tranquila. O médico já vem.
– Não. Por favor, não toque. Não se mova. – Serg segurou a mão que ela levava à cabeça para tocar o machucado.
– Está doendo um pouco. – Liara olhou para Suri, desesperada.
– Tenho uma poção para dor aqui. Espere. – Entrou em uma porta e voltou rapidamente com um copo. – Tome. Vai ajudar.
– O que é? – Serg perguntou baixinho.
– Tônico de Acepor. – Era um anestésico forte. – Para emergências. – Ela explicou.
– Serg. – Ani chamava.
– Sim, Ani.
– Serg, leve-me embora. Quero voltar para casa.
– Logo, Ani. Assim que o médico voltar. – Felizmente ele acabava de retornar.
Levaram Ani para uma mesa grande na sala de refeições e ficaram esperando na sala anterior. Nenhum deles falava. Liara abraçava-se a Neve e chorava compulsivamente enquanto rezava a Ur.
Sabia que era sua culpa. Ela abrira uma fenda na cortina que ele fizera para a proteção dos Surs. Agora entendia o que a incomodava antes. A cortina era o dom daquele povo, assim como seu dom de transformação era o dom de sua raça. Foi como ter escarnecido de Ur, como se o tivesse menosprezando, como se quisesse ser mais sábia ou mais poderosa do que ele.
– Poderoso Ur, imploro para que poupe minha mãe. Puna a mim. Eu que pequei contra sua lei. Tire todos meus dons, toda minha magia. Faça o que quiser comigo. Não me importo. Sei que devo, que sou culpada, mas, por favor, por favor, poupe minha mãe. Ela não tem culpa. – Ficava repetindo estas frases, sem conseguir pensar em outra coisa a dizer. Não tinha mais promessas a fazer. Nada seria suficiente.
Suri também chorava abraçada a Serg. O médico saiu.
– Como ela está?
– Eu fiz o que pude. Ela precisa descansar.
– Ela quer ir para casa. Será que devemos? – Perguntou Suri.
– Não é bom. Melhor seria que ficasse aqui, mas… – Ele não queria terminar e dizer que talvez devessem atender a seu pedido e deixa-la morrer em sua casa. Não faria diferença. Serg compreendeu.
– Vou buscar a carroça. Esperem aqui.
– Mais tarde irei ver se precisa de algo. Quanto menos pessoas na carroça melhor. – Ele falou, saindo também.
Suri foi até Ani. Liara já estava lá, fazendo carinhos em Ani, que dormia.
– Liara, venha comigo. Vamos improvisar uma maca, para não movimentá-la demais até o carro.
Juntas foram ao depósito onde pegaram uma toalha de mesa e dois canos longos. Amarraram as quatro pontas nos canos, fazendo uma maca bem segura.
– Vamos tentar passar por baixo de seu corpo enquanto ainda está sob o efeito do anestésico.
Tiveram que desamarrar um dos lados e com muito cuidado passaram o tecido por baixo da velha senhora que continuou dormindo. Serg chegou quando terminavam.
– Meus assistentes estão de volta. Não se preocupem. Vão proteger nossa saída. Acho que é seguro.
Serg e um deles levaram Ani até a carroça e colocaram-na na parte de trás, onde também foi Liara, sentada ao seu lado. Suri foi na frente com Serg. Neve ia a pé, junto com os assistentes. Seguiram devagar, evitando sacolejos mais fortes.
A cidade estava vazia, mas viam os olhares pelas janelas. Liara sentia o ódio que vinha deles e arrepiou-se com o temor de que atacassem novamente. Conseguiram sair da cidade sem incidentes. O trajeto até a casa pareceu demorar horas para Liara.
Levaram Ani até sua cama. Ela dormia ainda e continuou dormindo até a manhã seguinte com febre alta e delírios. O médico veio e deu poções para a febre que só cedeu na alvorada. Ele foi embora, prometendo voltar dali a algumas horas. Tinha um parto a fazer, explicou.
Liara adormeceu enquanto velava por Ani, recostada à cama.
– Liara. – Acordou com a voz muito fraca chamando-a.
– Mamãe! Você está bem?
– Sim. Não há com que se preocupar. É a vontade de Ur.
– Você vai sarar, Iá. O médico veio.
– Estou com sede. – Liara ajudou-a a levantar-se um pouco e deu-lhe água.
– Obrigada. Liara, pegue o colar de meu pescoço, por favor. – Liara fez o que pedia. Era o colar que usava o tempo todo e que tinha a chave do baú.
– Fique com ela. Eu pensava em mostrar-lhe tudo logo, mas agora não há mais tempo.
– Depois você me mostra, Iá. Descansa agora. – Liara sabia que sua mãe estava se despedindo e não queria ouvir.
– Não. É importante. Quero que você veja tudo que tem ali, com calma. Quando os Surs vieram para cá trouxeram muita coisa que tinham. Uma parte deles não concordava em destruir tudo que ficou do outro lado. Achavam importante preservar, para que soubéssemos de onde viemos e também para o caso de ser necessário. Muito se perdeu ao longo destes anos e neste baú está tudo o que restou. Minha família era a Guardiã da sociedade.
– Não preciso disto, Iá.
– Sim, menina, precisa. Quero que estude tudo, aprenda sobre eles e depois, saia daqui. Seu lugar não é em Sur, nunca foi. Seja por qual motivo que você tenha vindo para cá, agora é tempo de sair. Vá, Liara e não olhe para trás. Busque seu futuro. Encontre sua família se houver e se não houver, viva entre aqueles que são iguais a você.
– Iá. – Ela chorava muito agora.
– Eles nunca aceitarão seus dons, Liara. Não totalmente. Não estará segura aqui. Prometa-me que fará isto.
– Sim, Iá. Prometo. – A vida em Sur sem ela não teria sentido. Ela partiria.
– Tenha cuidado lá fora, querida. Não confie em todo mundo. Não se mostre antes de saber com quem está falando.
– Tomarei cuidado, mamãe. Prometo.
– Liara… – Ela parou de falar, tomando fôlego. Liara deu-lhe mais água.
– Querida, não se culpe pelo que aconteceu. Quero que saiba que não poderia ter sido mais feliz. Você foi um presente de Ur e deu sentido a toda minha vida. Não tenha raiva com o povo. A vingança não resolve nada, nunca.
– Iá, eu te amo. Por favor, não vá. – Levou a mão dela à sua face.
– Eu também te amo. Muito. – Ela fechou os olhos por um período curto, como se estivesse reunindo forças. Abriu-os mais uma vez.
– Você será feliz, Liara. Você é muito especial para Ur. Não tenha medo. Confie nele.
– Sim. – A voz de Ani estava muito fraca, quase inaudível e Liara teve que aproximar-se.
– Eu te amo. – Ela disse mais uma vez, já com os olhos fechados, antes de dar o último suspiro.
Suas mãos ficaram leves nas mãos de Liara.
– Mamãe! Iá! Por favor, não!
Serg e Suri haviam entrado em algum momento e agora se aproximavam.
– Liara. – Suri a tocou levemente, procurando afastá-la de Ani.
– Não! Deixe-me ficar com ela!
– Liara. – Serg a abraçou com força, afastando-a. Ela bateu em seu peito.
– Não! Ela está só dormindo. Quero ficar com ela.
– Shhhh… – Ele falou baixinho, as mãos tocando suas costas em movimentos rítmicos.
Liara chorou até a exaustão. Ele levou-a para a sala e deixou-a chorar, sentados no sofá. Neve os acompanhava muito silencioso, como se compreendesse a gravidade do momento.
– Serg, não quero ninguém aqui. – Ela falou.
– Seria difícil impedir, Liara. Todos amavam sua mãe.
– O suficiente para matá-la. – Ela falou, amarga. – Não vou permitir que ninguém entre em casa. – Deu um pulo, erguendo-se. – Eu já volto.
– Onde vai?
– Não se preocupe. É apenas uma providência que devo tomar. Eu já volto. – E saiu.
Liara foi para a entrada da casa e andou um pouco pela estrada até avistar seus amigos animais. Ela sabia que eles deveriam estar rodeando a casa. Deveriam saber o que acontecera. Nada acontecia sem que eles soubessem.
– Iá morreu. – Ela trancou a emoção. Tinha que ser fria agora. – Não quero que ninguém venha aqui. Eles a mataram. Não deixarei que entrem em nossa casa.
Estava rodeada por eles. Cachorros, esquilos, cabras, pequenos pássaros, formigas, ratos, cobras, vários deles estavam ali e os demais viriam, ela sabia.
– Por favor, não quero que passem da metade do caminho, por nenhum lado. Nem pela estrada, nem pela entrada do rio. Podem fazer isto?
Eles aceitaram sem restrições saindo imediatamente para as fronteiras que ela estabeleceu. Liara voltou para a casa. Sentia-se fria e vazia de emoções.
– “Primeiro Iá. Depois pensarei.” – Não podia fraquejar agora. Tinha que cuidar dela, dar-lhe uma última morada.
– E agora, Serg? Onde ela ficará?
– Temos um local preparado para as mães, lá. – Ele não disse onde, mas ela sabia que era o cemitério da cidade.
– Não. Ani não sairá daqui. Ela amava esta casa. Ficará aqui perto.
– Liara, eles não vão permitir.
– Não se preocupe com eles. Já resolvi isto. Ninguém entrará aqui.
– Como? – Ele pensou preocupado que ela estava muito perturbada com a morte de Ani.
– Não importa. Eles não virão. Vamos procurar um lugar?
– Amanhã, Liara. Está escuro demais hoje. Ani merece uma despedida melhor, não acha?
– Tem razão, Serg. Você ficará aqui?
– Claro. Daqui a pouco Lene deve chegar. – Eles subiam a escada em direção ao quarto.
– Lene não virá, Serg. Seremos apenas nós. – Abriu a porta. Suri estivera arrumando Ani. Liara se aproximou.
– Está tão bonita, Iá. – Beijou sua mão, que já esfriava. Serg conversava baixinho com Suri.
– Vamos ficar com ela esta noite. Não quero que mamãe fique sozinha. Ela pode ter medo. – Olhou-os com olhos suplicantes.
– Claro, querida. Ficaremos aqui. – Suri falou.
Eles haviam resolvido fingir que estavam de acordo com os planos. Dali a pouco alguém chegaria, com certeza e poderiam resolver a situação com mais calma.
– Vou fazer algo para que coma, Liara. – Ela falou encaminhando-se para a porta.
– Não estou com fome, Suri. – Seria impossível comer.
– Então farei um leite quentinho. – Ela concordou com a cabeça. Estava muito cansada para discutir.
Serg sentou-se na cadeira e Liara foi para o outro lado da cama, onde ficou olhando para Ani e tocando seus cabelos e rosto muito suavemente.
Estava cansada. A magia com a coluna, a transformação, a corrida até a casa e tudo que acontecera depois tinham a esgotado além do limite. Seus olhos fechavam contra sua vontade. Acabou dormindo antes que Suri voltasse com o leite. Serg fez-lhe um sinal de silêncio e saíram do quarto.
– Vamos leva-la para seu quarto? – Ela perguntou.
– Tome cuidado para não acordá-la. Precisa descansar. Talvez quando acordar volte à realidade. – Ele falou.
– E o que faremos enquanto isto? Porque ninguém chegou ainda?
– Liara parece ter certeza de que ninguém virá. Deve ter feito alguma magia.
– Será possível?
– É melhor que fiquemos aqui. Se sairmos podemos não conseguir voltar. – Ele estava começando a acreditar que fizera algo.
– Durma um pouco então. Eu ficarei com elas. – Ela propôs.
– Vou apenas comer algo e descansar um pouco no sofá. – Olhou-a preocupado. – Tem certeza?
– Estou acostumada, Serg. – Era parte de sua função. Velara em muitos funerais. – Pode ir. Chamo se precisar.
Suri sentou-se olhando a amiga, com o coração pesado.
– “Minha amiga, não merecia partir desta forma.” – Pensou, dirigindo-se a Ani, em pensamentos. – “Não se preocupe. Vamos cuidar dela.” – Prometeu.
– “Pobrezinha. Não é certo que viva estas coisas nesta idade.” – Muitas vezes se perguntara do porque de Ur trazê-la a Sur. Parecia tão errado com ela. – “Deveria ter crescido entre os seus, sendo amada e protegida como toda criança deve ser.”
Embaixo, Serg recostou-se no sofá após comer e em pouco tempo dormia. Acordou com a luz da aurora entrando pela janela que ficara aberta. Assustou-se por haver dormido. Pelo silêncio da casa entendeu que ninguém viera e subiu as escadas.
Lure e Lene foram os primeiros a se dirigir para a casa. Encontraram uma barreira de cachorros selvagens que latiram furiosamente e não os deixaram avançar. Quando tentaram espantá-los, rosnaram em ameaça. Decidiram voltar e ir por outro caminho. Encontraram outros que iam para lá, incluindo o médico e seguiram juntos.
Na trilha que corria paralela à estrada foram enxotados por uma revoada de pássaros. Eles não foram agressivos, mas eram tantos que ficaram cegos e foram recuando sem perceber.
Durante aquele dia e nos outros que seguiram quem quer que entrava na área próxima à casa de Ani e Liara dava de encontro com algum tipo de animal.
Pessoas ficaram cobertas de formigas dos pés à cabeça. Cobras tapavam uma entrada. Próximo ao rio, peixes e sapos pulavam fora da água atingindo-os. Cabras disparavam com os chifres em riste a quem ousasse avançar além do limite. Pássaros e morcegos voavam em bando nos Surs. Não havia como avançar.
Na casa as duas terminavam os preparativos para o funeral de Ani. Ela foi enrolada em um lençol muito fino e depois a cobriram com a tapeçaria da árvore do mundo, que tanto gostava. Enquanto isto Serg escavava próximo ao jardim, o local mais bonito no entorno da casa.
O enterro foi completamente simples e despretensioso. Liara sabia que eles três não eram nada perto da multidão que teria gostado de oferecer de suas despedidas à Mãe de todas as mães. A precariedade dava um aperto esquisito no peito de Liara. A sensação de irrealidade era ainda mais forte. Um sonho ruim do qual despertaria com a voz de Iá chamando-a para algo.
Em vez disto ouvia a voz de Suri pedindo a Ur que recebesse a amiga em seus braços. E em seguida Serg começou a jogar de volta a terra. O embrulho que continha sua mãe foi desaparecendo aos poucos. Ela sentia vontade de berrar, gritar, espernear, arrancar seu corpo daquele buraco ou fazer qualquer outra coisa que a trouxesse de volta, embora soubesse que não havia nada e por isto continuou parada, olhando, até que estivesse totalmente tapado.
Sem falar, dirigiram-se de volta a casa. Liara precisava pensar. Sabia que tinha que pensar, mas a cabeça estava embotada, lerda, recusando-se a cooperar, insistindo em voltar aos eventos da noite anterior.
– Acho que vou até a cidade. Trago Lene e alguma comida pronta. – Serg falou, cuidadoso, olhando-a. Ela assentiu, concordando.
– Vai me deixar voltar? – Ele perguntou. Ela não respondeu, abaixando a cabeça.
– Liara, vai me deixar voltar? – Insistiu, segurando seu queixo para que o olhasse.
– Serg, eu preciso ficar só um pouco.
– Não vou sair daqui enquanto não concordar.
– Preciso que avisem o conselho. Pessoas estão se machucando por tentar entrar aqui. Pode ficar pior. – Ela tinha que fazer aquilo. Precisava ficar só, sem a piedade deles por perto.
– Avisar o quê, Liara? – Era Suri quem perguntava. Liara olhou-a, tão bela em seu traje branco.
– Eu fiz aquilo. Eu abri a cortina. Se continuarem tentando entrar, posso fazer novamente. Por inteiro desta vez.
– Você fez? Mas, por quê? – Ela ignorou a ameaça.
– Foi um acidente. Estávamos fazendo exercícios de magia a distância e aconteceu. Não era para ter sido assim. Não pensei que faria de verdade. – De certa forma era verdade.
– Eles vão entender. Posso explicar. Esqueça a assembleia. – Serg tentou contemporizar.
– Esquecer? – Aquilo parecia uma afronta. Como esqueceria? Pela segunda vez em sua existência fora convocada para uma assembleia, por ter usado seus dons. E desta vez Ani morrera. Como poderia esquecer. – Não. Não posso.
– Ani não gostaria que … – Suri começou a dizer.
– Ani não está mais aqui, Suri. Eu estou. Agora é o que eu quero que conta. – Ninguém a manipularia mais usando sua mãe, decidiu.
– Quero evitar mais violência. Preciso que avisem a assembleia e que ela determine que ninguém deve me procurar.
– Não sei se farão isto. – A expressão de Serg era impassível e Liara não sabia o que pensava.
– Eles farão qualquer coisa para manter sua preciosa cortina onde sempre esteve.
– Mas porque, Liara? – Ele perguntou.
– Porque quero ficar só? – Não ia dizer. Sabia que se falasse começaria a chorar e aceitaria o colo que queriam lhe dar. Ela não podia ser fraca agora. – Não morro de amores pelos Surs neste momento. Sinto muito, mas não vou abrir exceções. Quero ficar só.
– Nós não podemos deixar você só, querida. É uma criança. Tem apenas quatorze anos! Ani confiava em nós para isto. – Suri aproximou-se tentando acaricia-la.
– Entendemos o que está sentindo, mas não podemos. – Serg completou.
– Por favor. – Isto não era para ser tão difícil, ela pensou.
Serg entendia realmente, muito mais até do que ela poderia pensar. Já não via Liara como um agente de mudanças para Sur. Agora ela era para ele apenas a menina que amava como se fosse sua filha. Sabia que ela era especial demais para restringir-se a Sur. Entendera na caverna que ela pertencia ao outro lado. Mas agora ela estava aqui. Ele via a batalha que travava para não soçobrar. Só queria saber o que dizer para ajudar, para demonstrar que estava ao seu lado para o que quer que fosse.
– Suri pode ir. Eu fico com você. – Anunciou e sentou-se no sofá, calmamente.
Liara pensou um pouco. Teria que ceder em algo, mas não podia ter ninguém lá. Tinha que cuidar de Loua primeiro. Ele ainda era uma ameaça, não apenas para ela.
– Vocês me deixariam ficar um pouco sozinha? Prometo que poderão voltar. Daqui a uma semana. Está bem assim?
Eles se olharam perdidos. Melhor um acordo do que nada, pensaram.
– Você promete?
– Prometo. E pode trazer Lene também. Mas só ela. – Avisou.
– Não é o certo. Mas não nos deixa alternativa. Tem certeza de que ficará bem? E se mudar de ideia? – Suri perguntou.
– Envio um passarinho. – Falou com ironia. Eles suspiraram, desanimados.
– Liara, quero que saiba que pode contar comigo, para o que quiser, mesmo que seja para colocar a cortina de fumaça abaixo ou tacar fogo em todo o povoado. – Serg exagerou um pouco, mas queria que ela soubesse que tinha um amigo em que poderia confiar. Ela assentiu com a cabeça.
– Eu sei. – Começou a se encaminhar para a porta, com os amigos.
– Não posso me comprometer com isto, mas se quiser conversar ou ajuda com a casa, comida ou apenas companhia, estou à disposição, sempre. – Falou Suri, querendo fazer graça.
– Obrigada. Desculpem por isto. Sei que são amigos. É só… – Fez um gesto com as mãos. – E, podem dar um recado para Loua?
– Lógico. – Serg ficou aliviado. Talvez ela quisesse falar com ele. Qualquer contato seria bom, mesmo que fosse com o maluco do Loua.
– Diga-lhe que assim que estiver melhor eu o avisarei. – Precisava ganhar tempo e este aviso talvez o acalmasse.
– Certo. Direi. – Eles abraçaram Liara com carinho e partiram.
Ficou olhando-os com um súbito receio de ficar só, a tristeza rondando ao pensar na casa vazia. Teve vontade de chamá-los de volta e foi só a lembrança de Loua que impediu.
Fez o caminho de volta, com o sangue fervendo de raiva. Loua era o culpado de tudo. E ele não iria parar até conseguir o que desejava. Liara precisava encontrar uma forma de se defender. Se não a atacasse, poderia atacar Neve ou algum de seus amigos. Tinha que pará-lo.
– “Como?” – Era nisto que teria que focar sua energia agora. Depois teria tempo para chorar por sua mãe e entristecer-se. Agora tinha que pensar. – “Como???”
Ela pensou em matá-lo. Não seria tão difícil. Podia surpreendê-lo e ser tão rápida que não lhe desse tempo para reagir. Estaria morto antes de perceber como ou quem. Mas ela não era uma assassina e ele não merecia este benefício.
Ela queria que ele sofresse por toda vida, ali, preso, querendo sair, sem conseguir. Não era vingança, pensou. Era apenas o desejo de partilhar sua dor com alguém. Ela teria que viver com a dor da morte de sua mãe, sabendo que aconteceu porque fez a magia. Por mais que tivesse sido obrigada, ela sabia que fora culpada. Não iria se esquivar da dor. Iria conviver com ela durante o restante de sua vida. Mas não era justo que sofresse sozinha. Loua também iria sofrer as consequências de seus atos. Se o matasse, para ele seria bom. Não sofreria mais, não sentiria ansiedade ou desejo de estar fora, não se desesperaria com o passar dos anos, não se revoltaria com a pequenez daquele mundo. Não faria este favor a ele.
E, já que não o mataria, precisava fazer algo para torná-lo inofensivo.
Liara lembrou-se da Pedra da Lua que o chefe dissera ser um amuleto contra feitiços. Se funcionasse contra magia seria exatamente o que precisava.
Entristeceu-se novamente com a lembrança de que não devolvera o amuleto para o chefe. Simplesmente não se lembrara no momento em que decidira não ir com eles. Agora sabia que teria que sair de Sur em algum momento não muito distante. Eles falaram que a Fênix renasceria novamente em poucos anos e isso tinha sido há mais de dois anos atrás.
Colocou o colar pendurado em um galho de árvore e tentou jogá-lo ao chão apenas com o uso da magia associada ao vento. Infelizmente conseguiu de primeira.
– “A ideia está correta, apenas o amuleto não está preparado para repelir magia.” – Considerou.
Como fazer um amuleto destes? Pensou no Ká, mas ele era tão reagente à magia que parecia impossível. Experimentou com madeira e pedra sem sucesso. Pensou que o problema parecia sem solução. Ao mesmo tempo em que precisava não ser reagente a magia, precisava aceitar a magia do encantamento e nem a madeira e nem a pedra tinham este potencial.
Voltou o pensamento ao Ká, agora interagindo com a escrita mágica e teve uma tímida reação, mas algo ainda estava errado. Talvez o problema fosse o que fazer com a magia quando chegasse até ele. Primeiro pensou em refletir, mas poderia atingir alguém inocente. Absorver seria o melhor, mas necessitaria que o objeto tivesse onde armazenar a energia da magia. Anular, esta seria a solução. – Concluiu enfim.
Fez o primeiro modelo, uma simples e pequena placa de Ká com a inscrição, presa por um cordão de lã de cabra. Ele conseguiu anular pequenas magias, mas fracassou conforme aumentou a intensidade. Fez um novo modelo com Urká e finalmente funcionou. Testou o raio de alcance, pois embora fosse pequeno, precisaria absorver magia enviada para qualquer parte de seu corpo, não apenas pescoço e cabeça. Novo fracasso. Ou aumentava consideravelmente seu tamanho ou teria que ter um amuleto para cada parte do corpo.
– “Uma Thuga de Urká!” – A solução veio em um relance. – “Como nunca pensei nisso?” – Agora considerava as outras utilidades de uma Thuga inteira feita de Urká. Primeiro que, por ser muito mais reagente que o Ká, poderia ser mais frio ou mais quente, conforme necessitasse. Segundo que o Urká era transparente. Isto significava que poderia até mesmo usar a Thuga de Ká por cima, para que Loua não desconfiasse de nada.
– Perfeito! – Soltou entusiasmada, já imaginando as possibilidades. Olhou para Neve que acompanhava os testes ao seu lado. Teria que fazer uma Thuga para ele também.
Agora a questão era conseguir o UrKá necessário. Precisaria de uma quantidade maior do que a que tinha em casa. E o restante estava armazenado na cidade, lembrou desanimada. Eles tinham retirado todo UrKá da caverna.
– “Será mesmo?” – Lembrou-se do desabamento. Talvez houvesse algum UrKá dentro da água. Muito provável até.
Levantou-se para arrumar alguns mantimentos. Iria à caverna amanhã e dependendo do quanto fosse difícil localizar as pepitas de UrKá passaria a noite por lá.
Saiu com Neve bem cedo e na forma de lobo chegaram em menos de cinco horas na caverna.
Tirou a Thuga assim que entrou, já com a roupa da tribo por baixo. Não esperava encontrar ninguém ali e o calor lá dentro era agora ainda mais insuportável com a entrada da gruta tapada.
A água estava quente e tépida. Mergulhou em forma humana, agradecendo a Nahla pelas guelras. Teria que usar os braços para levar o UrKá. Trouxera até ferramentas para desprender o minério caso estivesse preso.
Encontrou o que queria mais para o fundo, próximo ao desabamento. Havia muito UrKá ali. Surprendeu-se com o fato de que os Surs não houvessem pensado em fazer buscas na água, mas lembrando-se de que poucos sabiam nadar tão bem e do calor do ambiente entendeu o motivo.
Alguns estavam fortemente presos às pedras, mas vários estavam soltos no fundo. Encheu os braços com meia dúzia das maiores pepitas que encontrou e voltou à praia onde Neve estava meio enlouquecido.
Por segurança fez mais duas viagens. Trouxera uma mochila grande semelhante à bolsa das fadas e conseguiu guardar todo ele. Era bem pesado e dificultaria a volta, mas dava para levar tudo em uma viagem.
Saiu imediatamente para não perder mais tempo e chegar em casa antes do anoitecer. Corria bem mais lentamente e teve que fazer várias paradas para descanso, levando quase sete horas no total. Chegou no meio da noite, muito cansada. Tomou um banho rápido para tirar o suor que grudava em sua pele como uma segunda camada e despencou na cama. Ainda teve tempo de agradecer por este dia. Se não estivesse tão ocupada certamente não teria forças para lidar com a dor.
No dia seguinte acordou com as lambidas de Neve no rosto.
– Coitado. Está com fome, não é? – Ela não sentira fome, praticamente, desde que tudo ocorrera, mas ele devia estar esfomeado.
Depois de um café da manhã rápido, correu à sala onde, em um canto, haviam organizado uma oficina para seus equipamentos. Trabalhou na forja o dia inteiro e parte da noite, dormindo novamente exausta, mas satisfeita com o UrKá pronto para receber a magia do formato amanhã. E depois seria apenas fazer as inscrições mágicas.
Ainda assim, as atividades ocuparam quase todo o dia seguinte e só no final da tarde obteve a névoa virgem das Thugas. Separou uma parte para a sua e outra para a de Neve e testou primeiro em si.
Ficou admirada da leveza da nova Thuga e encantada em como respondia imediatamente aos seus comandos. Olhou-se no espelho, vendo seu corpo parecer tão nu como se nada o cobrisse. Experimentou colorir com a cor da Thuga de Ká normal e imediatamente a roupa surgiu, fazendo a rir de contentamento.
– Nem mesmo precisarei usar a Thuga de Ká! – Era muito melhor do que esperava.
Acalmou Neve com o pensamento enquanto era envolvido por sua Thuga. Isto era inédito até onde sabia. Nunca houvera roupas para os animais. Esperava que funcionasse igualmente e ficou satisfeita quando a nuvem desapareceu no corpo do cachorro lobo.
Demorou um pouco para torná-la visível o suficiente para certificar-se de que Neve estava totalmente coberto. Incluíra no encantamento escrito a excessão de aceitar apenas sua magia ou não conseguiria fazer o que desejava.
O problema agora era que não conseguiria testar sua eficácia, algo que não considerara antes. Praguejou em silêncio quando percebeu que teria que fazer outra thuga, mesmo que menor, sem a excessão, o que ocupou todo o dia seguinte. O trabalho valeu a pena pelo alívio que sentiu ao ver como anulava toda e qualquer magia com que tentou atingi-lo.
Seis dias haviam transcorrido. Serg e Lene provavelmente viriam no dia seguinte. Seus amigos animais contaram que as pessoas já não tentavam transpor o limite, o que lhe deu a segurança de que o conselho acatara sua vontade.
O confronto com Loua não poderia esperar mais. Teria que ser nesta noite.
Pensara muito em como fazer e percebera que teria que agir a noite. Não apenas por que não poderia entrar na cidade durante o dia, com as pessoas despertas, como por desejar pegar Loua desprevenido, de preferência adormecido.
Esperou a lua estar alta no céu e saiu com Neve em direção à cidade. Entrou cautelosamente, escondendo-se sempre que pensava ouvir algum barulho, pronta para ficar invisível com Neve no caso de necessidade. Ao fim chegaram à casa de Loua sem qualquer incidente. Os Surs dormiam tranquilamente.
Como imaginou a porta de Loua estava apenas encostada. Nunca ouvera necessidade de trancas no reino. Afastou a madeira devagar, esperando que não rangesse e entrou pisando com cuidado. A lua cheia, mesmo que pálida, facilitava a visão e encontrou Loua em seu quarto, dormindo como desejava.
Ao seu comando Neve saltou caindo com as quatro patas por cima de seu corpo. Ele acordou assustado.
– Silêncio, Loua. Não vai querer acordar toda Sur, não é mesmo? – Liara falou.
– Liara? O quê…
– Calado! Neve pode arrancar sua cabeça se fizer o mínimo movimento. Quero que ouça o que tenho a dizer.
– Não há necessidade disto. Deixe-me sentar. Vamos conversar. – Liara deixou que Neve se afastasse, mas era apenas porque queria que ele tentasse usar magia e soubesse que era inútil.
– Liara! Sinto muito! Eu não queria que fosse assim. – Ele não tentou nada e parecia realmente sentir, mas ela não se deixaria enganar tão fácil.
– É mesmo, Loua? Não queria, não é? Mas também não pensou nas consequências de seu ato e porque não pensou, Ani morreu!
– Sinto muito, mesmo, Liara.
– Não, não sente Loua. Eu sei que não sente. Sei o que pensa de todos. Sei que não tem sentimentos pelo povo daqui e que para você tanto faz se alguém outro se machuque, desde que consiga sair de Sur.
– Não, não é verdade. – Ele tentou negar.
– Você sente é porque agora não tem como me atingir ou chantagear, Loua. E sabe disso! – Ela percebeu que o encurralara pelo movimento súbito com que se levantou.
– Eu não queria que fosse assim, mas aconteceu! Isto não muda nada! Você vai me ajudar do mesmo jeito. Quer que exploda a cabeça de seu amiguinho?
– Fique a vontade para tentar. – E embora confiasse na Thuga, Liara ainda estremeceu de medo.
Ele gesticulou rapidamente em direção a Neve e ele apenas arreganhou os dentes para ele. Tentou novamente, parecendo mais concentrado e nada. Virou-se surpreso para ela.
– Como?
– Não importa como. Ele é imune a seus ataques, Loua. Não pode atingi-lo. – Viu que ele gesticulava em direção a ela. – Nem eu, aliás. – Isto o deixou desesperado e antes que pudesse prever ele pulou em seu pescoço, estrangulando-a com as mãos.
– É imune a magia, mas e à força física? – Liara estava completamente sem ar. Ele apertava muito forte. Poderia quebrar seu pescoço a qualquer momento.
Neve mordeu sua perna com toda força e por um momento pareciam ambos dispostos a irem até o fim, mas ele finalmente soltou seu pescoço, sendo arrastado pela perna para longe dela.
Liara lutou com o ar e a dor até recuperar-se o suficiente para falar. Neve ainda mantinha a perna dele em sua boca.
– Neve, morda! – Loua gritou com a dor. Liara sabia que em poucos minutos o povo de Sur chegaria e ordenou que Neve soltasse. Pode ver a carne estraçalhada e um osso saltando para fora.
– Você também não é imune à força, Loua, não se esqueça. E, mais importante: não se esqueça de que não é imune à minha magia. Posso arrebentar sua cabeça tão fácil como fez com aquele cachorro. – Ele apenas gemia no chão.
– Eu só não vou fazer isto porque quero que sofra preso aqui, até o final de seus dias. Não me procure novamente e não se atreva a tocar em qualquer um de meus amigos. Se o fizer, eu prometo que quebro todos os seus ossos, mas o deixo vivo, para viver como um inválido incapaz. Espero que fique manco com a mordida de Neve e que sirva de lembrança do que estou dizendo. Adeus, Loua.
Neve e ela saíram rapidamente agora. As luzes estavam acesas nas casas próximas e ela teve que contornar a cidade, esgueirando-se pelos fundos das casas, até chegar na estrada de sua casa.
Seu coração parecia explodir, mas ela não pensava em nada, exceto em conseguir chegar até a segurança de sua casa. Ninguém poderia fazer mal contra ela ou Neve, mas não queria ver nenhum deles.
Assim que abriu a porta, entrou e despencou no sofá foi que percebeu seu rosto lavado com as lágrimas que corriam abundantemente. Estava chorando sem perceber. Tremia compulsivamente.
Não conseguia parar de chorar ou tremer. Quis ir até a cama, mas seus membros não obedeceram e deixou-se no sofá, chorando pela primeira vez desde a morte de Ani. Os soluços sacudiam seu corpo e só conseguia chamar pela mãe.
– Iá! Iá! Mamãe, onde você está? Não pode me deixar! Iá, preciso de você! Volta, por favor! Não me deixe!
Ela não sabe quanto tempo chorou desesperada até dormir, ainda choramingando, com Neve lambendo suas lágrimas e ganindo.
Acordou com batidas fortes na porta e demorando a entender o que era o barulho. Arrastouse até ela, deixando Serg e Lene entrarem.
– Liara! Meu Ur! – Lene abraçou-a forte e ela voltou a chorar compulsivamente.
Serg levou-a até sua cama, enquanto Lene corria à cozinha para fazer um chá calmante.
Dias confusos se seguiram em que ela chorava sempre que estava acordada, o que felizmente não era muito. Lene fazia-a beber um chá tão logo começava a chorar e ela agradecia pela benção do sono.
Sonhou com Ani, muitas vezes. Quase sempre ela estava viva e sorria-lhe, mas ela nunca conseguia chegar até ela e abraçá-la como desejava. Acordava já chorando e gritando por Ani, sendo confortada por Lene ou Serg com nova rodada de chá calmante.
Quando conseguiu parar de chorar, quando já não havia mais lágrimas em si, sentiu-se completamente sem energia, sem forças para levantar ou falar ou sequer incomodar-se com o que ocorria ao seu redor.
Lene e Serg fizeram com que se levantasse, tomasse banho e davam-lhe comida com colher. Quando esteve suficientemente forte para descer, levaram-na até a sala, onde ficou sentada, imóvel no sofá por um tempo.
Depois insistiram para ir fora da casa e ficava sentada em uma cadeira na entrada da casa, sentindo o sol pálido. Os animais a rodeavam e foi sobretudo eles que a fizeram aos poucos retornar à vida.
Traziam pequenos presentes, frutas, flores e depositavam aos seus pés. Olhavam-na com tanto carinho que Liara não conseguiu não agradecer, fazer-lhes um carinho ou outro. Contavam sobre as novidades do campo, um nascimento, um acidente. Fatos corriqueiros de suas vidas.
Um dia pediram ajuda para soltar um gato preso sob um galho de árvore, no outro quiseram mostrar uma árvore que florira e sem que percebesse, acompanhando-os, foi revivendo até o dia em que ficou próxima de sorrir.
Contou a Lene e Serg o que acontecera com Loua, desde o início e eles contaram o que houve depois. Primeiro a assembleia onde fora banida para sempre e depois, com o acidente de Loua, quando foi considerada extremamente perigosa e Lene e Serg, por a defenderem, foram também banidos.
– Ah… Sinto muito! Vocês não tem culpa de nada! – Abraçou-os entristecida.
– Menina, você nos fez foi um favor, sabia? – Lene riu. – Eu não iria mesmo querer viver com aqueles malucos por nada deste mundo!
– E você, Serg? Perdeu sua casa, seu cargo, o que fará agora?
– Liara, também não gostaria de viver lá. Eles a atacaram, julgaram e condenaram sem que tivesse oportunidade de se defender. As pedras… – Ele parou, não querendo lembrá-la de Ani, mas ela entendeu.
– Sim, mas não queria que pagasse por mim. – Ela respondeu, entendendo.
– Eu tenho minhas economias. Deixaram-nos retirar nossos pertences. – Levou-a até uma imensa carroça coberta nos fundos da casa.
– Mocinha, não se preocupe! Eu nunca vivi em Sur, minha família toda é de Feng, um vilarejo ao sul, onde ninguém se importa com o conselho. Nós iremos para lá quando você estiver pronta e continuaremos nossas vidas livres deste povo gagá. – Lene não parecia mesmo preocupada.
– Obrigada. – Foi só o que conseguiu falar.
Ainda não pensara em seu futuro, mas de algum modo sabia que não ficaria em Sur e que iria até o outro lado. Tinha que devolver a Pedra da Lua, conversar com a rainha das fadas para saber de sua mãe, encontrar seu povo. Sua vida não era ali. Falou com os dois.
– Sim, Liara. Nós também pensamos assim, mas achamos que ainda não está na hora. Você está fragilizada agora. Vamos dar um pouco mais de tempo antes de decidir, o que acha? – Era Serg, sempre tão racional e tão adorável.
– Eu amo vocês. Não posso agradecer nunca por isto. Obrigada. – Abraçou-os emocionada. E eles retribuíram em silêncio até que Lene pigarreou.
– Isto está muito bom mesmo, mas temos questões práticas a resolver, como nossa alimentação e mantimentos e tudo o mais.
Ani tinha uma pequena horta no fundo que os supriria com verduras, mas precisariam de grãos, legumes e uma variedade de outros mantimentos. Decidiram que Serg iria com a carroça até o vilarejo mais próximo uma vez por mês para abastecimento. Durante o restante do tempo ele plantaria mais variedades de verduras e alguns legumes. Isto o ocuparia. Lene tinha toda a casa para cuidar e a cozinha que amava. Liara ficou com o tempo livre.
Com o quarto de Ani sendo ocupado pelo casal, o baú de sua avó agora estava em seu quarto. Ela o olhava, dividida entre o desejo de abrir e o receio do que encontraria, até que decidiu abrir.
Certamente continha magia, pois os objetos que continha já teriam virado pó sem alguma proteção, nestas cinco centenas de anos. Estavam como novos, sem pó ou qualquer sinal da passagem do tempo.
A primeira coisa que viu foi a manta rosada que Ani dissera que viera junto com ela e o prendedor dourado. Liara revirou-o em suas mãos tentando descobrir alguma abertura secreta e não encontrou nada. Colocou-o na cabeceira de sua cama, disposta a tentar depois.
Voltou ao baú. De um lado havia duas pilhas de livros, que deixou de lado, pois obviamente demoraria na leitura deles. Do lado oposto havia alguns objetos de tecido. Colocou-os em cima da cama e desdobrou um por um.
– “Roupas! Dos Outros!” – Percebeu, incrédula. Eram de tecidos variados, dos mais leves, parecidos com o tecido da bolsa das fadas, até o mais pesados, feitos com delicadas correntes de metal, passando por outros feitos de couro ou de peles. Todos coloridos e ricamente enfeitados. Procurou separar as peças de acordo com o material e percebeu que tinha um conjunto completo de cada tipo. O mais leve era minúsculo, parecendo ser feito para bonecas e imaginou que teria pertencido a uma fada. Era um vestido tão belo que a fez suspirar, de um rosa tênue, em um tecido diáfano. Um corpete delicado e sem alças e uma saia em muitas camadas que se sobrepunham. Acompanhava um par de sapatilhas e uma pequena tiara com pequeninas pedras incrustadas.
A seguir vinha um vestido longo de tecido um pouco mais encorpado, mas ainda leve e macio. Tinha o fundo azulado e era todo bordado em linhas prateadas e também incrustrado com minúsculos cristais prateados. Parecia brilhar inteiro. Acompanhava um par de sapatos e uma espécie de capuz. Era pequeno para Liara.
A roupa de couro era feita com um couro que desconhecia. Fino, macio e maleável. Encostou-o ao rosto apreciando o toque aveludado. Parecia pano, mas era mais resistente. Havia uma calça curta de cor castanha, semelhante ao que usavam por baixo da Thuga na caverna, mas ainda mais curto, praticamente sem as pernas. Uma camisa de cor creme, com mangas longas que iam se alargando em direção aos punhos, com delicados botões de pérolas e um bordado delicado nos punhos, barra e gola. Liara achou adorável.
Acompanhando o conjunto seguia um colete curto da mesma cor das calças e que se amarava na frente com cordões de couro verde, um chapéu muito pequeno e com uma única pena da cor da camisa e outra verde e uma pedra verde como fecho, um par de sapatos muito macios e duas peças iguais que ela, após alguma demora, entendeu que eram como as pernas da calça ou um prolongamento dos sapatos. Todas estas peças eram da mesma cor castanha, mas com detalhes em couro ou bordado verde e creme.
– Nossa, que bonito! – E pareciam ser de seu tamanho. Liara decidiu provar as peças, mas antes quis ver as outras roupas.
Havia ainda um conjunto composto por calça e camisa de um tecido pesado, branco aos quais se soprepunham calças e colete de malha de metal, com botas e um tipo de capacete para a cabeça e rosto. Eram de tamanho grande e pareciam bem incômodos de usar.
Seguia-se um conjunto de casaco de pele com capuz e botas forradas, também imensos e extremamente quentes.
– Para homens. – Lembrou-se de Mundo falando sobre a Montanha Nevada e achou que seriam apropriados para o frio que ele disse haver lá.
O último conjunto era uma túnica de tecido macio, que era muito longa com talvez de uns dois metros de altura e fina, um par de botas delicadas e um chapéu pontudo. Liara imaginou que tipo de raça usaria aquele conjunto.
Despiu suas roupas e colocou a veste de couro, embora com um pouco de dificuldade na hora de colocar o protetor de pernas que era todo fechado com cadarços de couro entrecruzados e que chegava apenas até o meio de suas coxas, terminando em uma dobradura do couro, ricamente bordada em creme e com pequenas pedras verdes incrustradas.
Pegou o espelho para colocar o pequeno chapéu e passeou-o pelo corpo, chocada com a nova aparência. Embora fosse um espelho pequeno, de mão, o conjunto que se revelava era perturbador, com aquele pedaço de coxa à mostra, o protetor torneando suas pernas e deixando-as ainda mais longas e o colete pressionando seus pequenos seios para cima. Pareceu indecente e as faces de Liara logo ficaram vermelhas imaginando que algum dos Surs a visse daquela forma.
-“Ainda assim…” – Considerou em pensamento que ainda assim sentia-se atraída pela mulher que via no espelho, tão diferente da que costumava ser. Teve certeza de que esta era a roupas dos elfos. Embora estivessse um pouco, quase nada, grande, servia perfeitamente em seu corpo. Os cadarços de couro podiam ser ajustados e havia espaço para mais carne do que tinha, mas lhe servia. Apenas as calças balançavam soltas nos quadris e Liara pensou que bastaria um pequeno ajuste ou talvez um cadarço para fixar.
Suspirou com pesar ao tirar as roupas e dobrou-as. Não resistiu à tentação e guardou-as em seu armário e não no baú com as demais.
Voltou sua atenção aos objetos restantes, que estavam ao centro, entre a pilha de roupas e a de livros. Eram pequenos artefatos e não compreendia para que serviam todos. Alguns pareceiam ser moedas de diversos metais e imaginou que serviriam como o dinheiro deles, que era feito com Ká. Alguns ela pensou que eram instrumentos musicais e outros claramente eram objetos de adorno: colares, pulseiras, tornozeleiras, brincos. Não saberia qual era mais belo.
– Definitivamente os Outros são vaidosos! – Falou, observando-os extasiada.
Mas uma pequena coleção de artefatos permanecia inexplicável e sem qualquer sentido. Talvez os livros explicassem.
O restante era composto de alguns pergaminhos, sendo que alguns continham mapas, muito mais bem detalhados do que o que servira aos Gigantes. Os demais continham textos que leria depois.
Desceu contente para contar a Serg e Lene, mas eles não quiseram ver nada. Ainda eram Tat para eles. Ela não gostou, mas aceitou, contente em apenas contar o que vira.
Os meses passaram muito rápidos. Seu aniversário de quinze anos veio e passou sem comemorações a seu pedido. Outros meses seguiram pacatos e tranquilos, com ela dividindo seu tempo em longos passeios com Neve, treinamentos de magia, construção de miniaturas e a leitura dos livros do baú.
Alguns livros narravam toda história do Reino de Ur, desde o princípio. Às vezes de forma narrativa e objetiva, às vezes de forma romanceada. Alguns eram mesmo de fantasia, estórias imaginadas, incluindo dois romances que ela não conseguiu largar antes de terminar, ficando dois dias inteiros lendo na cama, parando apenas para ir ao banheiro, comer ou dormir. Não existiam livros daquele gênero em Sur e Liara descobriu que gostara muito.
Outros livros mostravam ou detalhavam aspectos da geografia, do clima, da natureza dos diversos reinos. E havia um livro para cada raça, contando sua história, seus hábitos, mostrando suas casas e cidades. Logicamente Liara devorou o de sua raça, os elfos.
Os desenhos eram elaborados e detalhados e ela quase pode sentir-se caminhando por Duelf, a capital do reino élfico, na Floresta Eterna. Via suas ruas feitas com pedras planas com as bordas arredondadas, as casas entremeadas às árvores, quase que um prolongamento destas, a praça central, tão arborizada e florida e o pavilhão do governo, uma estrutura grande, estruturada ao redor e acima de grossas e antigas árvores, totalmente aberta e ventilada.
Quase podia se ver correndo com eles pelas copas das árvores, acompanhando os rastros de um animal ou banhando-se nas águas da imensa cachoeira, virando peixe ou correndo como um imenso gato. “Tão belo seu povo!” – Admirou novamente as muitas faces retratadas, todos com seus traços, embora variasse levemente a cor dos olhos e dos cabelos e as peles deles fossem mais bronzeadas.
Também leu com atenção os livros sobre o Reino das Águas, vendo o desenho do impressionante castelo no fundo do mar do pai de Nahla, e o do Reino dos Gigantes e da Terra do Fogo.
Liara parou de respirar algumas vezes, admirando a beleza da Fênix e até mesmo dos lagos de fogo, da terra preta e dos Gigantes do Fogo.
A capital, Rutai, pareceu pobre frente aos demais reinos, mas ainda assim era imponente, com mais construções do que ela poderia imaginar e uma bagunça colorida de raças e cores caminhando por suas ruas de pedra.
Os céus de Rutai eram povoados de montarias aladas dos mais diversos tipos e Liara perdeu dias apreciando outro livro, das criaturas aladas. Leu sobre todos os tipos de dragões, cavalos alados e aves voadoras existentes, cada tipo mais impressionante que o outro.
Aquele mundo parecia maravilhoso demais para ser real, embora ela soubesse, pela leitura da história do reino, que a vida podia ser bem difícil ali.
Ela suspirava, enlevada, sonhando, imaginando-se encontrando a mãe ou vivendo entre seu povo ou ainda reencontrando Nahla e Mundo ou conhecendo o Reino das Fadas e os outros todos, mas ainda não decidira partir. Embora começasse a considerar a ideia com mais seriedade.
Quase todas as noites ela dormia com o medalhão nas mãos, já conformada em que não contivesse nada.
Um dia, quando acordou com ele sob a bochecha, meio adormecida, pensou que deveria tentar com magia e subitamente pulou totalmente desperta. Não entendia como não tinha pensado nisto antes. Ordenou ao objeto para se abrir e ouviu o barulhinho metálico quando se abriu em dois como um livro.
De um lado um desenho a cores, uma miniatura como as que Ani a presenteava, apenas mais bem feita, trabalhada com traços infinitamente delicados que mostrava a face de uma mulher belíssima, com o mesmo tom de cabelo e a mesma cor dos olhos sorrindo.
– Lene! Serg! – Gritou por eles, já correndo para a sala, com o broche em mãos. Lene vinha enxugando as mãos no avental e Serg entrava com os pés sujos de terra pela porta da frente.
– Minha mãe! Vejam! – Liara sabia que era sua mãe. Tinha que ser. A semelhança era muito grande.
Os três olharam, embevecidos.
– Não é linda! – Perguntou Liara.
– Muito! – Concordaram.
– O que é isso? – Perguntou Serg, observando um pequeno volume na parte abobadada do broche.
– Parece papel. Deixa ver. – Estava encaixado nas bordas e Liara soltou-o com cuidado, revelando um papel muito fino, dobrado muitas vezes.
– Um bilhete! Dela! Para mim! – Tremia tanto que teve medo de rasgar o papel tão delicado.
– Dê aqui! – Lene pegou-o. – Demora tanto para saber da mãe para destruir antes de ler! – Zangou brincando.
– Nem adianta. Não consigo ler isso. Veja você, Serg. – Passou-o para ele.
– Não. As letras são muito pequenas. Não dá. – Ele desistiu de muito apertar os olhos para tentar entender.
– Deixe-me tentar. – Também ela não conseguiu. Podia ver que era uma carta, com palavras e linhas, mas era tão pequeno que era impossível compreender.
Depois de muito pensarem, imaginaram um espelho que ao invés de refletir, aumentasse as letras. Liara acreditava que conseguiria fazer um com UrKá e pôs se ao trabalho imediatamente.
Suas mãos ainda tremiam e interrompia o trabalho todo momento para olhar novamente para o desenho de sua mãe, sem acreditar que pudesse estar vendo-a, depois de tanto tempo ou que fosse tão bela. Demorou algumas horas até conseguir que um pedaço bastante achatado de UrKá funcionasse como queria.
Querida filha,
Se estiver lendo esta mensagem é porque sobreviveu entre os Surs, tal como ousei ter esperanças e que, mais do que isto, aprendeu a usar magia e talvez esteja de posse de todos os dons que herdou de mim e de nossa raça.
Espero que um dia possa me perdoar por este abandono. Não posso explicar em poucas palavras, mas saiba que não foi por falta de amor que a deixei com eles e sim por que esta era a única possibilidade de assegurar sua vida.
Se algum dia conseguir sair de Sur procure-me em Rutai, na Casa de Ur. Eu mal posso esperar para enfim te abraçar novamente.
Sua mãe que tanto te ama.
Sylie
Liara leu e releu várias vezes, até ter certeza de que as palavras eram reais e não um sonho atrapalhado pelas lágrimas que corriam pelo seu rosto.
– Mamãe… Ela me amava! – Abraçou Lene.
– Ochê! É lógico! Você duvidava! – A mulher exclamou.
– Ah, Lene. Eu esperava, mas não sabia. Tive tanto medo…
– Boba. Como se fosse possível não amar você! – Sorriu, piscando-lhe.
– Olhem para isto. – Serg olhava a pequena pedra amarrada a uma linha delicada e que antes estivera prendendo o papel.
Era uma pedra muito branca, mas de um material desconhecido para eles. Minúscula, mas claramente em formato de lua.
– Que bonita! De que será feita? – Liara olhava-a através da luz e parecia brilhar ainda mais branca.
– Não sei, mas é bom que guarde. Pode ser importante. – Ele comentou.
– Sim. – Liara dobrou o papel novamente e como antes, amarrou com o fio e usou a pedra para fixar, prendendo-o às bordas. Sorriu ao olhar para sua mãe.
– Talvez possa usar no seu colar, junto com a Pedra da Lua, o que acha? – Sugeriu Lene e Liara fez isso imediatamente. Não iria separar-se nunca daquele broche. Ele era sua única ligação real com sua mãe.
Este achado mudava tudo. Agora não havia mais como prolongar a partida. Sentaram-se na sala, com chá e biscoitos e conversaram sobre o assunto por muitas horas.
A questão principal era como sair, mais uma vez. Embora Liara pudesse derrubar a barreira, nenhum deles era a favor desta medida, cada um por seu motivo.
Liara pensou que talvez pudesse abrir uma passagem na caverna e sair para o mar. Esta parecia a melhor hipótese. Ainda haveria o problema de sair em pleno mar. Liara pegou o melhor mapa do seu baú e debruçaram-se sobre ele examinando a região.
– Vejam isto. – Apontou com o dedo uma área próxima à saída da gruta. – A distância entre a gruta e esta pequena praia parece ser muito pequena.
De fato, embora a distância entre a gruta e o outro lado do mar, onde ficava a Terra dos Gigantes, era grande, se permanecesse do mesmo lado e apenas seguisse o paredão pela esquerda, logo encontraria uma entrada para o reino. Poderia seguir caminhando por terra depois, até chegar em Rutai.
– Sim. Parece bastante possível. – Concordou Serg.
– Quanto tempo a nado? – Perguntou Lene.
– Acho que umas quatro horas. Não muito mais do que isso. – Respondeu Liara.
Olharam-se satisfeitos. Era isto, este era o caminho. Conversaram mais um pouco, agora apenas organizando as tarefas. Liara iria com Neve até a gruta no dia seguinte examinar o local e tentar descobrir um ponto mais acessível. Serg e Lene providenciariam alimentos e remédios que pudesse levar em uma sacola de encolher. Liara também gostaria de levar seus artefatos e um pouco de Ká de cada tipo.
Serg tentaria conversar com Sire ou Lure para isto. Embora estivessem banidos, ambos tinham ido até a casa uma vez, contrariando as ordens e manifestando novamente o apreço que tinham por eles. Talvez ajudassem.
Naquela noite, Liara dormiu satisfeita e ansiosa pelo novo dia enquanto que Serg e Lene demoraram a dormir, tristes com a partida de Liara e também preocupados com seu destino.
– Se ao menos pudéssemos ir juntos. – Ele falou.
– Pois é. Se pudéssemos… – Lene emendou, sonhadora.
– Impossível. – Lene não sabia nadar e Serg mal dava uma braçada ou outra. Comprometeriam a segurança de Liara. Ela era muito rápida e poderia desviar caso visse peixes maiores e perigosos. Eles poderiam até mesmo morrer se tentassem.
– É. Impossível. – Ela concordou, com tristeza.
– Talvez ela volte algum dia. – Ele consolou, abraçando-a.
– Sim. – Ela concordou, sabendo que poderia nunca voltar.
– Nós sabíamos que este dia chegaria. Ela não pode mais ficar. Morreria aqui, sem estímulos, tendo apenas dois velhos como amigos. – Ele falou o que ambos já tinham debatido tantas vezes.
Lene pensou que era mais fácil quando apenas falavam, do que agora, que era tão eminente a partida.
– Tão nova! Tenho medo que adoeça ou que não encontre seus amigos! – Choramingou.
– Temos que ter confiança em Ur, querida. Ele a protegerá, tenho certeza.
– Sim. Vamos rezar muito por ela. Ur ouvirá, certamente.
Ainda assim dormiram com o coração apertado em um misto de saudades antecipadas e preocupação.
Liara e Neve saíram muito cedo e logo corriam velozmente pelo caminho. Liara pensou em como faria para levá-lo com ela. Teria que ensiná-lo a nadar, decidiu. Todos os cachorros nadam, ela sabia. Apenas ele, bobo, não nadava. Medroso, isso era o que era.
Na caverna tirou a Thuga e entrou na água, chamando-o. Ele ficou indeciso, latindo, colocando uma pata e tirando.
– Venha, Neve. É fácil. – Ela instigava, indo um pouco mais para o fundo.
Ele entrou mais um pouco e ela afastou-se ligeiramente. Assim, muito aos poucos, ele foi vencendo o medo e quando percebeu já estavam longe da praia, brincando. Depois de entender que não iria se afogar, Neve ficou totalmente solto e parecia muito alegre na água.
Liara foi seguindo a parede lateral até chegar onde estaria o início da abertura. Percorreu toda a extensão, sentindo-se agora desanimada. Não parecia haver qualquer fresta. Toda a área era uma mistura grossa de pedras e terra vermelha.
Usando uma grande pedra como apoio ergueu acima do mar, testando a parede. Ela esfarelava, de forma diferente da área submersa que havia formado uma parede compacta e dura.
– Olha Neve. Se eu tiver uma picareta, acho que posso cavar um buraco aqui. O que acha?
Ele latiu como resposta, parecendo aprovar. Liara voltou à praia em busca da ferramenta, que trouxera com esta ideia em mente. Tentou um pouco e viu que poderia fazer. Demoria alguns dias, certamente, mas poderia fazer.
Resolveu voltar para casa e voltar com suprimentos. Ficaria ali, escavando, até conseguir. Talvez Serg pudesse vir junto e ajudar.
Voltaram os três, na carrossa, trazendo uma barraca e suprimentos para uma semana, além de mantas, um fogareiro e todo o suficiente para um acampamento.
Serg e Liara cavaram juntos por dois dias, conseguindo escavar um bom pedaço. O trabalho andava devagar porque tinham que tomar cuidado com as pedras soltas. Um nada e a parede toda ou uma boa parte ao menos poderia desabar em cima deles. Até mesmo Neve parecia ajudar, escavando com as patas ou empurrando pedras em direção à água.
No terceiro dia pensaram que seria inteligente se usassem algumas estacas de madeira para segurar a parede, evitando desmoronamento. Não havia madeira e em seu lugar desmontaram uma das estacas de Ká que fortalecia o piso da primeira caverna.
Com elas em mãos dirigiram-se para a abertura. Neve foi o primeiro a chegar, pois agora nadava mais rápido do que Liara. Subiu rapidamente o que agora já era uma plataforma com a terra e as pedras que retiraram da parede e entrou no buraco.
Liara viu uma pedra do topo balançar.
– Neve! Saia daí agora! – Ele ouviu e virou-se para obedecer. Ele já era muito grande e sua traseira bateu em uma das laterais provocando justamente o que Liara queria evitar.
Eles viram impotentes, o buraco desabar de uma só vez em cima de Neve e ouviram seu latido alto seguido do silêncio. Foi tudo muito rápido. Em um minuto, Neve estava lá, olhando-os e no outro, apenas uma nuvem de terra cobrindo o lugar em que estava.
– Neve! – Liara gritou, correndo para a plataforma e seguida por Serg.
Tateando com as mãos, encontrou seu focinho em meio a terra e pedras. Começou a cavar com as mãos, procurando livrar sua cara. Serg ajudou, também desesperado. Era inútil. Neve estava morto.
Conseguiram retirar seu corpo dos entulhos e levá-lo até a praia, ambos em estado de choque e sem falar. Foi só quando chegaram, exaustos, que Liara chorou, abraçada ao corpo do que era seu único amigo além de Serg e Lene. Serg também chorava, sem saber o que dizer ou fazer.
– Liara, vamos levá-lo para trás. Precisamos enterrá-lo. – Disse após muito tempo, apenas para dar alguma ocupação a ela, para tirá-la daquele desespero.
– Não, Serg! Neve não! – Ela relutou, embora soubesse que era o certo e acabando por ajudálo a arrastar o imenso corpo do animal até o fundo da caverna.
– Parece tão certo… – Ela falou, lembrando-se que ali estava enterrada a família dele.
– Sim. – Ele concordou, entendendo. – Liara, vá até Lene, precisamos de enxadas e de um pano para cobrir Neve.
Ela foi, meio anestesiada e ele procurou o lugar certo, tirando plantas com a mão enquanto isso. Liara voltou muito rápido, com Lene chorosa, seguindo-a. Liara não chorava mais. Parecia um pouco vidrada e ele preocupou-se.
Trabalharam juntos até terem um buraco adequado para ele. Lene e Serg envolveram o enorme animal com um lençol e os três ergueram-no e depositaram no fundo do buraco. Quando Serg ia começar a tampar o buraco, Liara pediu para esperar.
Pegou uma faca que trouxeram para ajudar a cavar e com um único golpe cortou seu cabelo próximo à nuca, separando a imensa trança avermelhada e colocou-a sobre Neve.
– Durma em paz, meu amigo. Obrigada. – Disse, novamente chorando.
Serg jogou a primeira pá de terra e Liara afastou-se em direção à saída da caverna. Lene e ele olharam-se e a mulher a seguiu, enquanto Serg continuava.
Liara saiu no exterior. Estava muito frio, mas embora ela tivesse recolocado a Thuga, a cabeça permanecia descoberta. Ficou ali, parada, olhando para o céu e chorando.
– Liara, filha, vamos para a carroça. – Lene falou sem aparentemente ser ouvida. Liara começou a soltar longos sopros de ar pelo nariz. Lene estava apavorada, mas felizmente Serg chegou.
– Liara, vamos embora. – Ele tocou em seu braço. Ela recuou, olhou para o céu novamente e gritou.
– Ur!!! – Foi mais como um berro ou um urro. Não foi um choro e nem um pedido.
– Ur, está me ouvindo, desgraçado? – O casal olhou-se assustados.
– Ur, seu infeliz, seu Deus de araque! Está vendo meus cabelos? Eu cortei para que você saiba que eu não te reconheço mais como meu Deus. Está ouvindo?
Liara andava agora, rapidamente, agitando os braços e olhando para os céus. Uma chuva fina começou a cair.
– É esta sua resposta? Está chorando, por acaso? Pensa que comove? Não, infeliz! Não mais. Você me colocou neste mundo feio, seco, sem vida e estéril para viver com pessoas que nunca me amaram e nunca me aceitaram, exceto alguns poucos. E o que você fez com eles, Ur? Você matou Ani e agora Neve. Vai matar Lene e Serg também? – Ela parecia esperar por uma resposta.
– Passei minha infância com medo, fazendo tudo que você queria. E o que ganhei em troca, Ur? Que espécie de deus é você que precisa inspirar medo para que sua vontade seja feita? Eu te digo: um deus pobre, ridículo. Uma criança mimada! É isto que você é, Ur. Alguém que não merece respeito, quanto mais obediência ou respeito.
A chuva agora era intensa, ensopando-os. Liara parecia não sentir e continuava gritando.
– Você não queria que eu fosse embora? Tinha que matar Neve para me dizer isto? Pois bem, Ur, esta foi a última vez que me puniu. Não mais. Eu não permitirei que continue a manipular minha vida à custa das pessoas que amo. Eu vou embora, Ur. Eu vou embora e você não vai me impedir. E não vou mais sair pela gruta, como se fosse uma criminosa. Nem vou destruir sua barreira. Seu povo merece ficar aqui, preso nela. Eu vou sair passando pela barreira e quero ver você impedir.
Lene tentou aproximar-se, mas Liara afastou-se. A chuva era agora uma tempestade, raios espoucando ao entorno.
– Pensa que me assusta com isto? Veja, Ur, o que eu posso fazer com sua tempestade. – Liara gesticulou e o vento concentrou-se por baixo dela, suspendendo-a no ar. – Você vê? Eu não sou mais Liara, a que caminha com seus olhos. Não quero nada seu em mim, nem mesmo em meu nome. Agora sou Ayra, a tempestade. Não sou mais a menina dócil, que tem medo de sua ira. Agora eu sou a ira. Não te obedeço mais, nem às suas ridículas regras deste mundo morto.
Serg e Lene abraçavam-se, assustados. Liara estava cada vez mais alta, ereta, com os braços abertos, jogando rajadas de vento para o topo da cortina.
– Eu te odeio, Ur! Ouviu? Eu te odeio! E um dia você sentirá minha ira. Não se esqueça.
Ela parecia já sem forças e foi caindo lentamente, parecendo desfalecer. Serg correu a tempo de pegá-la no ar, desmaiada já.
Eles fizeram os cães correr todo o possível, ansiosos por distanciar-se daquele lugar. Liara estava gelada. Puxaram a Thuga sobre sua cabeça e cobriram-na com as mantas, embora estivesse tudo igualmente encharcado.
Conforme se afastavam, distanciavam-se da tempestade e chegaram em casa já sem qualquer sinal de chuva, apenas com muito vento e frio. Todos tremiam, gelados.
Colocaram-a na cama, tirando sua Thuga ensopada e cobriram-na com muitas mantas. Ela havia recobrado os sentidos, mas parecia muito fraca. Eles sabiam que devia ter gastado todas suas energias na manipulação do vento.
Tão logo trocou de roupas, Lene fez uma sopa quente e ela tomou docilmente antes de dormir. Eles se revesaram ao seu lado durante a noite, mas Liara parecia dormir calmamente.
No dia seguinte ela acordou triste, mas parecendo decidida disse que iria embora o mais rápido possível.
– Liara… – Lene começou a dizer.
– Não, Lene. Ayra. Não sou mais Liara. Vamos sentar na sala – Ela falou calma e esperou até todos estarem sentados.
– Mãe, pai. Acho que posso chamá-los assim. É como sinto que foram e são para mim. – Eles concordaram emocionados.
– Tudo que eu falei lá permanece. Eu me sinto livre de Ur. Leve. Pela primeira vez não sinto medo dele ou de perder alguém por fazer algo errado. Sei que Ur matou Neve porque não queria que eu saísse ou sei lá, talvez não quisesse que eu o levasse, não sei. Pobre Neve. Ele, assim como Iá, pagaram com a vida por me amarem. Não quero que aconteça o mesmo com vocês e sei que é o que aconteceria seu eu permanecesse aqui. O povo está quieto, mas isto pode mudar e também há Loua, aquele maluco pode usá-los contra mim.
– Mas, filha, talvez não tenha sido assim. Talvez eles tenham morrido por uma fatalidade, por ter sido o momento deles. – Serg disse.
– Não. Eu sei que não. Eu sei que foi por minha causa. Minha mãe levou uma pedrada porque eu furei a barreira e Neve foi soterrado porque eu tentei fazer outra abertura na barreira. É tão óbvio. – Eles suspiraram sem saber o que dizer.
– Eu já planejava ir embora. Apenas agora vou sair da forma correta.
– Mas Li…, Ayra, como acha que será possível?
– Eu apenas sei que posso. Sei que Ur não vai me deter desta vez. Ele não se atreveria. – Eles se olharam duvidando, mas resignados. Teriam que esperar para saber se conseguiria.
– E quando pretende ir? – Serg perguntou.
– Agora. Não há porque esperar. Você conseguiu as amostras de Ká? – Ela perguntou.
– Sim. Consegui. Ali. – Apontou vários pedaços que faziam uma pilha na oficina de Liara.
– Então, é isso. Vou guardar as coisas. Mãe, você pode fazer alguma comida para eu levar?
– Claro que sim, querida. Mas eu preferia que esperasse alguns dias.
– Não. Não há motivo. Já deixei de viver minha vida por muito tempo. Agora quero recuperar o tempo perdido. Não quero perder mais um único minuto além do necessário.
Assim as próximas horas foram agitadas. Ayra guardou os minerais na sacola grande e separou o que levaria na sacola das fadas: as miniaturas de Ani, o arco e flecha, as miniaturas (embora tenha deixado um Pio e um Nevinha para ambos, como recordação.), a roupa dos Gigantes, uma Thuga de Ká reserva, roupa de baixo.
Do baú não levaria quase nada. Não teria como levar tudo. Pegou apenas as moedas, pensando que talvez precisasse e algumas joias, pelo mesmo motivo.
Lene permaneceu na cozinha enquanto Serg ocupava-se com a mudança de ambos, pois decidiram partir junto com Ayra para a aldeia dos familiares de Lene. Não havia motivo para permanecerem ali sem ela.
Almoçaram tristes e silenciosos, não apenas pela morte de Neve como pela eminente separação.
Depois do almoço, Ayra pediu a Lene para ajudar a arrumar o corte de seu cabelo e Lene repicou-o com cuidado. Ambas gostaram de ver o resultado. Pequenos cachos emolduravam sua face que pareceu mais iluminada e seus olhos maiores desta forma. Ayra não voltou a cobrir a cabeça com a Thuga.
Finalmente ela foi para o quarto e vestiu a roupa dos elfos por cima da Thuga de UrKá, agora transparente. Olhou-se novamente no espelho e teve a certeza de que aquela imagem combinava perfeitamente com sua nova personalidade: parecia forte e ousada. Exatamente como sentia-se naquele momento. Pegou a bolsa das fadas, fechou o baú, guardando a chave em sua bolsa e deu um último olhar para o quarto antes de sair, fechando a porta atrás de si.
Serg e Lene ficaram abismados com sua aparência. Serg não queria permitir. Insistiu que tirasse. Achou indecente. Ela riu.
– Oras, papai. É assim que meu povo se veste. É assim que devo parecer a eles. Imagina eu surgir vestida com a Thuga? Nem tem graça. – Riu à ideia e ele acabou cedendo, embora a contragosto.
Caminharam pela casa pela última vez, despedindo-se dos ambientes, dos móveis e utensílios antes de partir. Lá fora, Ayra olhou o balanço na árvore, a casa no telhado e sorriu. Apesar de tudo fora feliz naquela casa, graça a Ani. Querida Ani. Foram até seu túmulo.
– Iá, minha mãezinha querida. Estou indo, como te prometi. Não se preocupe. Tudo vai ficar bem. Um dia voltarei para te visitar. Você foi muito mais do que eu merecia. A melhor mãe do mundo. Obrigada por tudo. – Despediu-se emocionada, lembrando-se de sua pequena figura, frágil e encurvada, mas forçou um sorriso, levantou-se e foi até a carroça. Serg e Lene a seguiram.
Iriam juntos até os limites do reino, já próximos ao vilarejo onde ambos morariam.
A despedida foi simples. Ayra abraçou cada um por muito tempo, querendo transmitir neste abraço todo amor e gratidão que sentia. Eles choravam.
– Adeus. Obrigada. Eu amo vocês! – Ela disse antes de virar-se para a barreira e caminhar decidida para ela. Eles ficaram parados observando. Não iriam embora antes de ter certeza de que ela conseguiria. Ela sabia disso.
Ayra caminhava, sem medo, sem qualquer receio. Sua vontade prendia a barreira ao chão, impedindo-a de recuar e foi aproximando-se passo a passo até que estava a um palmo e podia tocá-la. Só então virou-se e olhou para o pontinho distante onde eles estariam e acenou de volta, mesmo duvidando que vissem.
Depois virou o corpo e entrou resoluta na barreira, desaparecendo do Reino de Sur.
FIM DA PRIMEIRA PARTE