– Maise! – Ela não estava à vista, mas assim que chamei apareceu na porta da varanda.

– Humm… Você está lindo com estas calças jeans e camiseta preta. Sabe que é minha roupa predileta? – Perguntou despudoradamente como sempre, enquanto pegava meu braço e levava-me em direção à mesa. Sentamos.

– Você também está linda hoje. Mais do que linda, deslumbrante. – Sentia cheiro de Tana neste jantar. O que estava acontecendo aqui? – Querida, o que estamos comemorando?

– Decidi ficar em Portal do Sol. Não vou mais voltar a morar na cidade. Quero ficar com você e Tana, no lugar onde meus pais se conheceram. Quero ficar aqui. É meu lugar. Não acha que merece uma comemoração?

– Você só está aqui há algumas semanas. Não é pouco tempo para uma decisão tão importante?

– Não tenho nada na cidade mais importante do que o que tenho aqui.

– E a faculdade? Fará falta para você em sua pintura e talvez futuramente em sua carreira.

– Não. Meus professores não se incomodarão de continuar orientando por email, caso possa ir até lá algumas vezes para mostrar a evolução de meu trabalho.

– Querida, tem certeza? É tão distante da civilização, está isolada até mesmo da vila. Não é saudável.

– Adriel! Você não me quer aqui? É isto? – Vi em seus olhos a mágoa.

– Não, Maise! Você sabe o quanto gosto de sua presença. Estou pensando em você, no seu futuro.

– Meu futuro é com você, Adriel. Não quero outro. – Os olhos já estavam úmidos e o apetite para o jantar parecia perdido, de forma que levantei, peguei em sua mão e fomos para o sofá.

– Maise, amor. Queria tanto, mas não existe futuro para nós. – Disse isto com cuidado, enquanto acarinhava seus cabelos.

– Porque não, Adriel? Porque não podemos continuar deste jeito para sempre? Somos felizes aqui. – Uma lágrima ameaçava cair de seus olhos marejados.

– Por tantas coisas. Para começar sou um anjo. Não sei quanto tempo permanecerei aqui e quando terei que retornar para minha cidade. Lá meu futuro já está definido e não existe espaço para este tipo de amor. Não posso iludir você, deixar acreditar em algo que pode ter fim amanhã.

– Você irá embora? – As lágrimas que segurava caíram pelo seu rosto delicado. Não gostaria nunca de vê-la chorando, mas saber que eu tinha as provocado era ainda pior. Queria apagar minhas palavras e fazer de conta nem que fosse por uma única vez que era humano como ela, jantar dizendo amenidades e depois beijá-la até saciar esta fome selvagem, mas não seria correto.

– Vivo já há milhares de ano e conquistei há tempos a imortalidade. Não preciso mais passar por vidas em planetas como a terra. A evolução que resta é tornar-me cada vez mais imaterial e fundir minha consciência à de outras em igual estágio, deixando de ser uma “pessoa” e passando a ser parte de um coletivo.

– Como assim?

– Digamos que toda energia têm que passar por determinados estágios desde o momento em que se origina como centelha imperfeita, promessa de vida, até o momento em que retorna à fonte que a gerou como centelha novamente, mas desta vez, de luz perfeita. De pedra bruta a diamante lapidado. É este o ciclo que mantém a fonte da vida em constante fluir. Entende?

– Acho que sim.

– Ultrapassei quase todos os estágios evolutivos enquanto consciência individualizada, que é o que chamamos de “eu”. Somente os “eus” possuem corpos. Deste ponto em diante vamos perdendo o corpo e a individualidade. Deixamos de ser “um” e passamos a integrar o “nós”. É uma união de mentes na mesma sintonia que formam uma mente mais poderosa, capaz de agir mais efetivamente pelo universo através da vibração potencializada.

– Mas isto é como morrer!

– De certa forma. Morremos como individualidades, mas prosseguimos enquanto essência.

– Não, Adriel. Você não pode!

– Antes de vir para a Terra era meu destino, querida. Ao perceber que não estava pronto, os conselheiros deram-me esta tarefa. Não tenho um prazo delimitado, mas não penso que poderei continuar indefinidamente aqui, desta forma. Mesmo o que faço para parecer humano é algo novo. Ninguém sabe por quanto tempo poderei continuar mantendo esta forma.

– Como assim, “parecer” humano?

– Meu corpo real é feito da mesma substância de minhas asas. É tão leve que parece imaterial para os humanos. Não sei como você consegue vê-las. Ninguém da Terra consegue. Para que consigam me ver e ouvir utilizo o mesmo recurso que todos os anjos que necessitaram ser vistos utilizaram no passado: absorvo energias mais pesadas do planeta. Elas preenchem os vácuos de minha matéria fluídica dando-lhe aparência e consistência de corpo, apesar de não ser carne, pele e ossos de verdade.

– Não? – Tocou meu braço, incrédula.

– Não. Tem a mesma forma e funciona como corpo humano, mas não é. Mantém-se pela vontade apenas e quando quero posso desfazer-me do excesso acumulado e retornar à imaterialidade e transparência. O que ocorre é que estas duas etapas, tanto a materialização quanto a desmaterialização são desgastantes e doloridas. Serve bem quando é feito eventualmente, mas quando é constante fica impraticável.

– E é por isto que você fica sempre da mesma forma?

– Exato. Quando surgiu esta tarefa deparamo-nos com a dificuldade de ter que materializar-me constantemente para ser visto e ouvido pelos humanos. A saída que imaginamos foi manter-me materializado pelo maior tempo possível, embora ninguém soubesse como se daria isto na prática, uma vez que nunca foi feito.

– Nunca?

– Nunca. Nos primeiros tempos foi difícil ter estas energias pesadas impregnadas em meu corpo. É como se estivesse poluído. Aos poucos fui acostumando-me e hoje nem percebo direito. Também, no início ia mais a Celes, minha cidade no astral. Comecei a espaçar as viagens porque demorava a adaptar-me tanto lá quanto aqui, no retorno. Agora já estou há quase um ano aqui, mas terei que visitar Celes o mais breve possível. Devo fazer os testes clínicos para avaliar as condições de meu corpo astral e também falar com os conselheiros sobre o andamento de meu trabalho.

– E qual é seu trabalho? – Não queria falar sobre isto. Ela iria chorar novamente.

Nota: Embora este não seja um romance religioso, sendo o personagem principal um anjo não tenho como explicá-lo sem entrar neste campo. O que Adriel menciona neste post e no seguinte é baseado em conceitos comuns à várias correntes espiritualistas. Para quem se interessar, apenas como exemplo, cito o Espiritismo de Allan Kardec ou consultas na net sobre os 7 planos astrais e os 7 corpos humanos. Sobre estes últimos um livro sensacional é Mãos de Luz de Barbara Ann Brennan.

No que diz respeito à materialização, o processo em si é baseado nos conceitos já mencionados, mas sua manutenção por tempo prolongado é uma extrapolação à teoria que foi necessária para a estória.


Texto registrado no Literar.

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